Após anos de abandono, um incêndio que quase a destruiu e depois de a Câmara Municipal do Porto desistir da sua compra, a casa onde nasceu e viveu Almeida Garrett pode vir a tornar-se um prédio de habitação de luxo ou um hotel. Um grupo de cidadãos que pretende que se torne antes num espaço cultural vai promover uma ação de protesto este domingo, 8 de dezembro, na véspera dos 170 anos da morte do escritor e poeta oitocentista, sepultado no Panteão Nacional.

“O nosso objetivo é, enquanto se pode, salvá-la, obrigar a Câmara a classificá-la e a transformá-la na casa de Garrett, num centro de estudos garrettianos, ligado ao movimento liberal e ao movimento romântico do Porto”, afirma Francisco Alves ao Observador. Vizinho deste imóvel e diretor artístico do Teatro Plástico, critica a Câmara Municipal por “falta de vontade política” em comprar o edifício, localizado no número 37 da Rua Doutor Barbosa de Castro.

Foi aqui que Garrett — que viria a tornar-se num vulto não só das letras, como também da política portuguesa — nasceu, a 4 de fevereiro de 1799, e passou os cinco primeiros anos de vida. O edifício, que também dá para o Passeio das Virtudes, há muito que se encontra degradado, sendo por isso que o Teatro Plástico, em 2012, fez uma instalação “para chamar a atenção”. “Cobrimos a fachada toda com bandeiras portuguesas, havia uma instalação áudio com o hino a tocar em loop e que se ia degradando”, conta Francisco Alves.

Mais de 10 anos depois, ele e um grupo de cidadãos voltam a unir-se com o intuito de dar um uso público ao edifício, com uma série de ações onde se destaca o lançamento de uma petição nacional pública “que já tem apoiantes à partida”, afirma. “Estamos a endereçá-la mesmo ao primeiro-ministro, e à ministra da Cultura. Vão ter de tomar uma posição, porque isto é uma questão cultural. Uma vez que a Câmara não cumpriu este primeiro papel, de proximidade, o Ministério da Cultura tem de assumir aqui uma responsabilidade, não pode assobiar para ar”, defende o diretor artístico.

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Crónica de um abandono

Para compreender porque é que os defensores desta iniciativa criticam abertamente o papel do poder municipal neste processo, é preciso regressar ao final de março de 2019. Foi quando a Câmara Municipal do Porto aprovou por unanimidade uma recomendação da CDU para tentar adquiri-lo e ali instalar um potencial Museu do Liberalismo. “Vamos, primeiro, perceber o valor que a casa tem. Depois, entrar em contacto com os proprietários e perceber até que ponto conseguiremos chegar a um bom desfecho”, afirmou à época Rui Moreira, que sinalizou entusiasmo pela ideia, em particular porque a compra seria aproveitada para celebrar os 200 anos da Revolução Liberal, em 2020.

No entanto, apenas uma semana depois, já em abril, esse imóvel sofreu um violento incêndio que chegou até a resultar em dois bombeiros feridos e praticamente destruiu todo o edifício, à exceção da fachada. O fogo, ocorrido de madrugada, teve origem numa “intrusão ilegal do imóvel, feita através de uma porta que estava fechada a cadeado”, afirmou a Polícia Judiciária, citada pelo jornal Público. No entanto, as autoridades excluíram “interesses imobiliários” como motivação, sugerindo que “tanto pode ter ocorrido num quadro de vandalismo juvenil como resultar da negligência de indigentes ou consumidores de droga que tenham ocupado o imóvel”.

Para Francisco Alves, o trabalho da PJ foi insuficiente. “Foi feita uma vistoria, não uma investigação. Esse é um dos pontos. Queremos que reabram o processo e façam a investigação que não foi feita”, pede, estranhando que o processo tenha sido “imediatamente resolvido e despachado”. Parte das suspeitas do diretor artístico do Teatro Plástico advêm do facto do incêndio ter ocorrido na mesma semana em que a Câmara do Porto avançou com uma proposta de compra, fazendo uso do seu direito de preferência. Não obstante o incidente destrutivo, o município ainda assim disse manter a vontade em comprar o imóvel, mostrando-se até disponível para abrir um processo para classificá-lo como de interesse municipal.

Todavia, chegados a outubro de 2019, deu-se um volte-face e o executivo municipal revelou ter desistido da compra da casa de Almeida Garrett porque os proprietários tinham pedido um valor de quatro milhões de euros pelo lote dos edifícios, muito acima da avaliação que a Câmara fizera, tendo avaliado o conjunto em 1,5 milhões de euros. Desde aí, chegados a 2024, a situação pouco se alterou, com o edifício a sofrer progressiva degradação. Foi então que, em novembro, o Porto Canal noticiou que o lote se encontrava oficialmente à venda, por 3,8 milhões de euros, sendo possível consultá-lo na página da agência imobiliária Metro 3 Real Estate.

Descrito como um “lote de dois edifícios de aproximadamente 1600m2, com frente para duas ruas diferentes, situado no Centro Histórico da Cidade do Porto” e encontrando-se “por remodelar”, a informação mais importante surge logo abaixo. É a própria informação de venda que revela já existir tanto um Pedido de Informação Prévia (PIP) “aprovado para edifício de apartamentos e comércio, com 13 frações” como ainda um “projeto de arquitetura para Hotel de Charme de 29 quartos e 1 restaurante, o que permite uma diversificação de abordagem para investimento”.

No decurso destas revelações, ficou-se também a saber que tanto o edifício onde morou Almeida Garrett quanto o seu imóvel contíguo foram comprados em 2017 e 2018 pela sociedade anónima Midfield — Imobiliária e Serviços. Esta, adianta o Porto Canal, é detida pelas mesmas pessoas que compõem o conselho de administração da Teak Capital, que por sua vez é um fundo de investimento da família Moreira da Silva.

Confrontado com a possibilidade de um edifício de valor histórico e cultural ser destinado a uso privado, Rui Moreira defendeu que a Câmara do Porto não avançou com a compra devido ao desfasamento entre a avaliação do imóvel e o preço a que está a ser vendido. “Neste exercício, o direito de preferência é um nevoeiro, porque aquilo que é invocado pelos vendedores e pelos compradores no tribunal é que a Câmara Municipal do Porto quando exerce o direito de preferência não o faz plenamente, já que o direito de preferência decidido pelo presidente da Câmara, ou pelo Executivo, não é definitivo, na medida em que está depois sujeito à aprovação por parte da Assembleia Municipal e concomitantemente do Tribunal de Contas nos valores acima dos 300 mil euros”, justificou.

Uma questão de “vontade política”?

No entender de Francisco Alves e do seu grupo, a justificação de Rui Moreira “de que não há dinheiro é um argumento que não cala de maneira nenhuma”. Por um lado, o diretor artístico discorda da avaliação do imóvel em 1,5 milhões euros feita pela Câmara já que “há coisas a serem vendidas aqui na rua muito menos interesse e importância e área por esses valores”. Por outro, o dramaturgo acusa o município de gastar dinheiro noutros projetos sem necessidade e que poderiam ser canalizados para esta causa. “Estamos a fazer uma elencagem de todos os gastos, de todos os desperdícios, de todos os erros administrativos e de gestão, de todo o dinheiro deitado fora, e chegamos rapidamente à conclusão de que não falta dinheiro. A Câmara do Porto acabou de subir a taxa turística para três euros por noite. Para que é que isto serve, afinal? Se não está a servir para defender os portuenses, para lhes dar alguma qualidade de vida, serve então para quê? Há dinheiro, não há é vontade política”, atira.

Indo mais longe, Francisco Alves atira que a Câmara do Porto “podia até ter bases para expropriar” o imóvel se tivesse encontrado indícios de fogo posto, mas “não se preocupou em investigar”. Outro exemplo de “falta de vontade política”, acrescenta, passa por nunca ter classificado o imóvel como sendo de interesse público. Fazendo parte do Centro Histórico do Porto, o nº37 da Doutor Barbosa de Castro está incluído no perímetro protegido pela Unesco enquanto património da humanidade. No entanto, o que isso significa, adianta, é que “as fachadas estão protegidas, mas os interiores não. E agora o que se passa é que percebemos que há um projeto para um hotel, que implica a compra da casa do lado e juntar as duas, ou seja, demolir os interiores e ficar com as fachadas, no que é mais um plano de uma coisa que tem vindo a ser levada à prática e que está a descaracterizar a cidade”.

Se não “tem havido” vontade por parte do executivo municipal, “agora há de haver, à força”, declara Francisco Alves. “Está no Garrett, está em todos, as pessoas do Porto sempre se levantaram contra os opressores. Isto é uma forma de opressão que aqui estamos a viver. O que se passa é que estamos a destruir a alma da cidade para criar uma cidade artificial, turística, uma cidade cenográfica. Isto nós não vamos permitir”, avisa.

Inversamente ao potencial destino deste edifício, o que o grupo de Francisco Alves desejaria era, perdida a iniciativa de fazer do espaço um Museu do Liberalismo, torná-lo numa “numa casa-museu Almeida Garrett, que albergue um centro de estudos garrettianos internacional, porque ele foi um cosmopolita”, defende. Tendo o escritor sido um “autor múltiplo” com “obras-primas na poesia, no teatro e na narrativa”, o espaço jogaria com essas valências. Além da vertente da obra de Garrett, poderia também ter uma ligação “ao movimento liberal e ao romantismo no Porto.

É com base nessa premissa que no domingo haverá uma série de iniciativas a ocorrer em frente à casa de Almeida Garrett. Além de uma nova instalação na fachada do edifício, Francisco Alves cita o apoio de historiadores da cidade como Hélder Pacheco, Germano Silva, Joel Cleto, Arnaldo Saraiva, que ora estarão presentes, ora deixaram declarações para serem lidas no local. Dada a forte ligação de Garrett ao teatro, também haverá depoimentos de figuras como São José Lapa, José Wallenstein, Margarida Marinho e Lídia Franco, assim como leituras de excertos da obra do autor de Frei Luís de Sousa por atores de diversas gerações.

O protesto também terá atuações musicais, tendo sido convidada uma Tuna Académica “para fazer a ligação aos tempos de Coimbra de Garrett e à sua atividade de estudante universitário, assim como um rancho folclórico histórico, para recordar o “Garrett folclorista e etnógrafo, porque ele foi o autor do Romanceiro”. Outra iniciativa passa por uma feira do livro só com exemplares sobre Garrett e o Liberalismo. “Esta feira de um livro também tem como objetivo criar um fundo, uma base, para a futura biblioteca da casa”, informa.

Todas estas atividades decorrem das 15h às 19h, momento solene em que os presentes sairão em cortejo até chegarem à estátua de Almeida Garrett em frente à Câmara Municipal do Porto, na Avenida dos Aliados. “Vamos colocar uma grande coroa de flores aos pés da estátua. Isto dá por fim as nossas atividades, porque na segunda-feira é o dia nove, e passam 170 anos sobre a sua morte.”