Ninguém sabe, ao certo, quantas pessoas morreram na guerra na Síria – um conflito que se arrasta há anos e que, há poucos dias, ficou marcado pela queda do regime de Bashar al-Assad. O acesso de jornalistas estrangeiros ao país é altamente condicionado e a própria ONU já reconheceu, no passado, que não consegue apresentar contagens fiáveis sobre as vítimas do conflito. Este é um vácuo de informação que tem vindo a ser preenchido por organizações ativistas, com posicionamentos mais ou menos declarados, em que se destaca o Observatório Sírio dos Direitos Humanos – um nome pomposo para uma organização que, na realidade, é gerida por apenas um homem, um exilado sírio que tem uma loja de roupa no Reino Unido.

Perante a quantidade de vezes que este organismo era citado na imprensa internacional, jornais como o The New York Times quiseram, há vários anos, perceber que organismo era este. Os dados deste “observatório”, mais conhecido pela sigla SOHR, tornaram-se uma referência até na Casa Branca, segundo o jornal, não só pelas suas contagens de mortos e feridos – soldados e civis – mas, também, pelos seus relatos detalhados sobre acontecimentos relacionados com o conflito na Síria. A investigação levou o The New York Times até ao discreto dono de uma boutique em Coventry.

É a partir dessa pequena cidade inglesa que um homem, que usa o pseudónimo Rami Abdul Rahman, passa “quase todas as horas do seu dia a monitorizar o que se passa na guerra na Síria”, escreveu o jornal. Rahman é um sunita sírio que, de acordo com o que disse à reportagem, vive dos rendimentos de um pequeno negócio de venda de roupa na cidade que o acolheu quando fugiu da Síria, na viragem do século.

Antes de fugir do seu país-natal, Abdul Rahman – cujo nome verdadeiro é Osama Suleiman – tinha sido preso três vezes pelo regime de Assad por causa do seu ativismo anti-regime. Era ele um dos autores dos panfletos que eram distribuídos pela população, documentos onde se criticava os privilégios da clique dominante em contraste com a miséria vivida por boa parte da população.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando, em 2020, dois colegas seus foram presos, e por temer ser levado para a cadeia pela quarta vez, Rahman fugiu para o Reino Unido com a ajuda de um contrabandista ligado ao tráfico humano. E foi a partir daí que, usando meios tecnológicos rudimentares, começou por fazer uma newsletter por e-mail que rapidamente se transformou numa base de dados detalhada sobre o conflito, muito graças à revolta da Primavera Árabe.

O que alguns questionam é se essa base de dados, por muito detalhada que seja, é mesmo verdadeira.

Números de vítimas “são uma treta completa”, acusou especialista na Síria

A imprensa israelita, quando cita relatórios do observatório, frisa – sem dar exemplos concretos – que esta é uma organização “gerida só por um homem” e que “tem vindo, frequentemente, a ser acusada por analistas do conflito sírio de apresentar dados e notícias falsas, exagerar nos números de mortos ou, até mesmo, inventá-los“.

Em julho de 2013, a ONU contabilizou 100 mil mortos na guerra na Síria mas anunciou, nessa altura, que ia deixar de apresentar esta contagem porque não tinha confiança nos números que ela própria contabilizava. Mas poucos meses depois, o SOHR já avançava com 150 mil mortos, o que levou um conhecido especialista no Médio Oriente, James Miller, a colocar em causa os números de Abdul Rahman.

“Tudo nesta tabela tem aspeto de treta completa! Onde é que o SOHR obteve estes números? Estão todos errados“, afirmou James Miller, acrescentando, mais tarde, que não conhecia ninguém na Síria que alguma vez lhe tivesse dito que conhecia ou se tinha cruzado com alguém que contribuísse para o SOHR.

De acordo com o seu site, o SOHR apresenta-se como uma organização “independente e imparcial” que foi fundada em 2006 por Rami Abdul Rahman. Não se esconde que os dados são compilados no Reino Unido, pelo próprio, mas garante-se que a informação utilizada se baseia nos relatos feitos por “centenas de ativistas que se dedicam a defender os direitos humanos na Síria“. Essas pessoas, de acordo com o próprio, obtêm e verificam informação ao nível local – e enviam-na, depois, para Coventry.

“A nossa organização monitoriza, documenta e publica os acontecimentos diários dentro da Síria, para proporcionar uma compreensão objetiva da situação dentro do país”, pode ler-se no site, onde se acrescenta que “os nossos ativistas mantêm o anonimato para garantir a sua segurança e para prevenir a corrupção dos dados que transmitem”. “A missão do SOHR é preservar a verdade, de forma a apoiar a justiça, a igualdade e a liberdade na Síria”, lê-se, ainda, no site.

Poucos meses depois de anunciar 150 mil mortos, o SOHR voltou a fazer manchetes na imprensa internacional (no final de 2014), anunciando que a guerra na Síria tinha atingido a marca dos 200 mil mortos. Mas o próprio Abdul Rahman dizia que, na realidade, o número de mortos as vítimas (mortais) da guerra já estaria perto das 280 mil.

“Acho que os nossos números estão mais próximos da realidade, mas ninguém conhece toda a realidade”, afirmou Adbul Rahman, sublinhando que se “certifica de que nada é publicado antes de verificar com fontes fidedignas para garantir que é tudo confirmado”.

Apesar de o portal ser gerido apenas por Abdul Rahman, o responsável pelo SOHR garante que, além das “centenas” de ativistas voluntários espalhados pela Síria, havia (em 2013) quatro pessoas dentro da Síria que o ajudavam a organizar a informação recebida. No centro de tudo, porém, está Abdul Rahman, que passa horas no seu pequeno escritório, em casa, em contacto constante com as suas fontes na Síria. Em 2011, num artigo citado pela BBC, o responsável dizia que vários ativistas tinham sido detetados e tinham-se transformado em “mártires” – seis, até então.

“Geralmente a informação sobre mortos de civis é muito boa”, garante investigador britânico

Citado pelo The New York Times, Neil Sammonds, investigador britânico na altura ligado à Amnistia Internacional (em Londres), elogiou o trabalho feito por Rahman: “Geralmente, a informação sobre as mortes de civis é muito boa, definitivamente uma das melhores, incluindo os detalhes sobre as condições em que as pessoas foram alegadamente mortas”.

Com um trato descrito como afável e gentil, Abdul Rahman afirmou ao The New York Times que é apenas um “simples cidadão, vindo de uma família humilde, que conseguiu criar algo muito grande usando meios básicos – tudo porque acredito realmente naquilo que estou a fazer”. Nas redes sociais, Rahman apresenta-se como “jornalista”, embora não tenha qualquer formação nessa área: terá apenas completado o ensino secundário e teve uma formação técnica na área do marketing.

Há quem especule, diz o jornal norte-americano, que tem apoio do governo do Qatar. Mas também já foi acusado de ser uma ferramenta da Irmandade Muçulmana e, até, da norte-americana CIA. Foi, também, apontada a hipótese de ter proximidade com Rifaat al-Assad, tio de Bashar al-Assad (irmão mais novo do seu pai), que viveu exilado em França até 2021 e voltou, nessa altura, para a Síria, quando estava em perigo de ser condenado a pena de prisão em França.

Apesar de garantir que cobre os próprios custos, Abdul Rahman disse em 2014 que também tinha recebido (pequenos) subsídios da União Europeia e, também, de um país europeu que não quis identificar. Por outro lado, também já terá recebido dinheiro do contribuinte britânico, noticiou em 2018 o portal Media Lens, no âmbito de um contrato para cedência de equipamentos de comunicação.

“Vim para o Reino Unido no dia em que Hafez al-Assad morreu. E irei voltar para lá quando Bashar al-Assad se for…”. O regime de Bashar al-Assad caiu há poucas semanas, mas Abdul Rahman, que se saiba, continua em Coventry a tratar da boutique de roupa, com a mulher, e a contar ao mundo o que (diz que) se passa na Síria.