O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) perdeu a ação no Supremo Tribunal Administrativo (STA) contra a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o exercício de poderes hierárquicos em processo penal. A decisão é desta quinta-feira e foi tomada por unanimidade pelos conselheiros Helena Mesquita Ribeiro (relatora), Cláudio Monteiro e José Veloso.
Na origem desta ação estava uma diretiva assinada pela anterior procuradora-geral da República, Lucília Gago, em novembro de 2020 que o organismo sindical queria que fosse alvo de “declaração de ilegalidade com força obrigatória geral”. A propósito de alegadas inferferências políticas, os conselheiros do STA chegam a dizer que o procurador-geral da República não é “um núncio do poder político”.
O objetivo da diretiva de Lucília Gago foi regular a transmissão de instruções ou ordens por superiores hierárquicos a procuradores titulares de inquéritos criminais. Para o SMMP, liderado atualmente pelo magistrado Paulo Lona, a diretiva violava normas do Estatuto do Ministério Público, do Código de Processo Penal e da Constituição.
Ministério Público em guerra com diretiva de Lucília Gago que limita autonomia de magistrados
Segundo o acórdão de quarta-feira do STA, a que o Observador teve acesso, a juíza conselheira relatora Helena Mesquita Ribeiro considerou que “a impressão com que se fica” da diretiva contestada pelo SMMP “é que a mesma se limita a uniformizar procedimentos dos magistrados do Ministério Público envolvidos no âmbito de uma relação hierárquica” e criticou a rejeição da possibilidade de intervenção hierárquica.
“Não pode aceitar-se a conceção que o Autor [SMMP] preconiza sobre a autonomia interna dos magistrados do MP enquanto titulares do inquérito criminal, que, a ser como indica, considerando a impossibilidade de recurso das decisões do Ministério Público, equivaleria a reconhecer aos magistrados do MP uma autonomia superior à independência decisória dos juízes“, lê-se no acórdão.
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STA defende mais-valia da intervenção hierárquica
O STA realçou também que a posição do SMMP, com uma conceção muito limitada da intervenção hierárquica, levaria “a aceitar-se que a hierarquia do MP no âmbito da ação penal seria praticamente inexistente”.
No entanto, o STA foi mais longe e não só afastou uma suposta ilegalidade da diretiva, como defendeu a mais-valia da intervenção hierárquica em inquéritos criminais. “Salvo o devido respeito, espera-se de uma magistratura hierarquizada que os titulares de poderes de direção e de coordenação os exerçam efetivamente, com respeito pelos critérios de legalidade e de objetividade”, observaram.
Segundo os conselheiros do STJ, o exercício dos poderes representa o cumprimento de uma responsabilidade, “ao invés de deixar andar o processo ao sabor exclusivamente do subjetivismo do seu titular, à espera que o parto corra bem, sem cuidar de se ir diagnosticando eventuais problemas”.
Procurador-geral da República não é um “núncio do poder político”
Um dos argumentos apresentados pelo sindicato liderado por Paulo Lona indicava que o exercício da ação hierárquica por parte do procurador-geral da República poderia ter na sua origem uma alegada interferência política — uma memória do tempo do ex-procurador-geral Pinto Monteiro, indicado pelo Governo de José Sócrates para liderar a PGR, e da sua interferência na investigação do processo Face Oculta.
Contudo, os conselheiros do STA rejeitaram do ponto de vista jurídico que esse argumento tivesse fundamento.
“O facto de o PGR ser politicamente nomeado pelo Presidente da República sob proposta do Governo, não faz dele um núncio do poder político, garantindo a CRP a autonomia externa do MP, estando assegurada a autonomia do PGR relativamente a qualquer outro poder, encontrando-se apenas vinculado à legahdade e objetividade na sua ação”, lê-se no acórdão do STA.
Avocar inquéritos não choca com Estatuto do MP
A possibilidade de um superior hierárquico avocar um inquérito ou substituir um procurador em caso de recusa de cumprimento de uma ordem era outra das matérias contestadas nesta diretiva pelo SMMP.
Contudo, o STA entendeu que esses cenários já estavam previstos no Estatuto do Ministério Público e que a diretiva não mudou significativamente essa situação.
“Tratando-se de uma magistratura hierarquizada, impende sobre quem detém poderes de direção, de orientação e de coordenação, assegurar a eficácia da intervenção do MP, o que pode reclamar, a necessidade de avocação de processos”, lê-se no acórdão.
Segundo os juízes conselheiros do STA, as exigências da criminalidade atual “impõem ao MP que atue de forma a salvaguardar os interesses da investigação e dos sujeitos e intervenientes processuais, em prol das finalidades do inquérito”. Por isso, sustentaram que o MP tem autonomia para consagrar os meios e estratégias de atuação que aumentem a eficácia e rapidez das investigações.
“Em suma, os critérios de avocação que se encontram previstos no referido ponto da Diretiva integram-se nas competências de direção e coordenação atribuídas aos magistrados com funções de coordenação e direção”, concluíram.
Presidente do Sindicato garante que não muda nada
O presidente do SMMP, Paulo Lona, salientou que o sindicato ainda não foi oficialmente notificado da decisão do STA e que não teve oportunidade de ler o acórdão. Porém, em declarações à Rádio Observador, assegurou que esta decisão não vai alterar a prática quotidiana dos procuradores.
“Nada altera no dia a dia da atividade dos magistrados do Ministério Público, uma vez que essa ação — ao contrário do que por vezes cheguei a ouvir dizer — nunca teve nem tem efeitos suspensivos. Isso nada vem alterar a prática diária dos magistrados”, reforçou, remetendo uma posição do SMMP para mais tarde, após uma “leitura atenta dos fundamentos” do STA.