Ao fim de um processo marcado por litígios e muita discussão pública, os restos mortais de Eça de Queiroz são trasladados para o Panteão Nacional a 8 de janeiro — mais de um ano após a data originalmente estipulada para o ato, a 27 de setembro de 2023, adiado devido a uma providência cautelar movida por um grupo de bisnetos. O escritor, depositado num jazigo em Santa Cruz do Douro desde 1989, regressa assim a Lisboa. Cerca de um mês depois de ter morrido em Paris, em 1900, foi repatriado para Portugal e depositado no jazigo dos Condes de Resende, propriedade da família da mulher, no cemitério do Alto de São João.
Eça de Queiroz torna-se assim a 13ª personalidade portuguesa a ter os seus despojos depositados na Igreja de Santa Engrácia — a sétima com uma vida dedicada às letras, depois de Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, Aquilino Ribeiro e Sophia de Mello Breyner Andersen. Aliás, esta iniciativa vai obrigar os serviços do Panteão a abrir a última sala livre que tem, só sobrando mais três lugares.
Como é que o autor de Os Maias aqui chegou?
Para perceber como é que um vulto segue para o Panteão — o termo oficial para o ato é ter “honras de Panteão” — é preciso perceber a história do mesmo. O Panteão Nacional, enquanto instituição do Estado, foi criado por decreto em 1836, mas só 130 anos depois, durante o Estado Novo, é que os primeiros ocupantes vieram ocupar a Igreja de Santa Engrácia (cuja função para esse fim também só foi regulamentada em 1916). Foi no mesmo dia, 7 de dezembro de 1966, que Almeida Garrett, João de Deus, Sidónio Pais, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga e Óscar Carmona ali foram depositados.
Todos os outros ocupantes entraram no Panteão em democracia, sendo que a lei que “define e regula as honras do Panteão Nacional” foi publicada já em 2000. Esta estabelece que “as honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.
Para ter honras de Panteão, não é obrigatório que os restos mortais da pessoa sejam depositados na Igreja de Santa Engrácia; também consistem na afixação de uma “lápide alusiva à sua vida e à sua obra”. Foi o que aconteceu com Aristides de Sousa Mendes, que em 2021 foi assim distinguido, apesar do seu corpo permanecer no cemitério de Cabanas de Viriato, em Carregal do Sal.
Quem é que decide quem vai para o Panteão?
Essa pergunta é respondida por uma das alíneas mais importantes dessa lei de 2000: “a concessão das honras do Panteão é da competência exclusiva da Assembleia da República”. Quer isso dizer que a sociedade civil e membros da classe política podem fazer campanhas para determinado cidadão vir a receber honras de Panteão, mas a decisão última passa sempre pelos deputados.
Foi assim o caso de Eça de Queiroz. Como explicou Afonso Reis Cabral — escritor, presidente da Fundação Eça de Queiroz e trineto do homenageado — ao Público em 2023, a ideia de iniciar uma campanha para esta causa foi sua, mas coube a José Luís Carneiro levá-la a votação na Assembleia da República. Apresentada por si e por um conjunto de deputados do Partido Socialista no Projeto de Resolução 800/XIV/2, foi aprovada por unanimidade a 15 de janeiro de 2021. Como noutros casos, essa aprovação significou a formação de “um grupo de trabalho composto por representantes de cada grupo parlamentar com a incumbência de determinar a data e de definir e orientar o programa de trasladação”.
Ao Observador, Pedro Delgado Alves, coordenador do grupo de trabalho responsável pela trasladação de Eça de Queiroz, explica que a sua principal função é “integrar representantes dos familiares ou das instituições que representam a pessoa homenageada com deputados dos vários grupos parlamentares, que depois fazem a ponte com os serviços da Assembleia na planificação do cerimónia”.
Qualquer pessoa pode ir para o Panteão?
Em teoria sim, desde que seja aprovada na Assembleia da República, mas há novas restrições desde a última personalidade que mereceu honras de Panteão: Eusébio, em 2015.
A lei de 2000 recebeu uma importante atualização em 2016. Até lá, estava estipulado que “as honras do Panteão não poderão ser concedidas antes do decurso do prazo de um ano sobre a morte dos cidadãos distinguidos”. A partir dessa atualização, passou a ser obrigatório deixar passar 20 anos desde a morte da pessoa distinguida no caso de depor os seus restos mortais no Panteão e cinco anos se o objetivo for colocar uma lápide comemorativa.
Sob esta nova definição, por exemplo, Amália Rodrigues (falecida em 1999, trasladada em 2001), Sophia (que morreu em 2004 e foi deposta em 2014) e Eusébio (que morreu em 2014 e foi trasladado em 2015) não poderiam receber tais honras.
“Estabilizou-se esta ideia que é importante que haja um consenso e alguma distância entre o momento do falecimento e o momento em que se definem as honras de Panteão”, afirma Pedro Delgado Alves, explicando que a Assembleia da República “fez uma reflexão e entendeu que não deve ser uma decisão tomada no calor do momento próximo da perda de alguém, porque pode ter um impacto muito relevante naquele momento da vida do país, mas depois o juízo da história não é tão intenso quanto isso”.
Quem é que trata da trasladação?
É aqui que entra outra lei importante para as honras a que Eça de Queiroz vai ser sujeito. É o decreto-lei de 30 de dezembro de 1998 que “estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, bem como de alguns desses atos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, e ainda da mudança de localização de um cemitério”.
O próprio texto fornece uma definição do que se trata uma trasladação: “o transporte de cadáver inumado em jazigo ou de ossadas para local diferente daquele em que se encontram, a fim de serem de novo inumados, cremados ou colocados em ossário”. Outros termos importantes a reter são a “inumação” — ”colocação de cadáver em sepultura, jazigo ou local de consumpção aeróbia” e “exumação” — “abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”.
Ora, no que toca às competências de proceder a uma trasladação, refere-se que tal tem de ser requerido “à entidade responsável pela administração do cemitério onde o cadáver ou as ossadas estiverem inumadas, em modelo constante do anexo i do presente decreto-lei”. Neste caso em concreto de Eça de Queiroz, foi preciso pedir autorização à Junta de Freguesia da União de Freguesias de Santa Cruz do Douro e São Tomé de Covelas, a entidade responsável pelo cemitério onde o escritor esteve enterrado desde 1989.
Lendo tal anexo, entende-se também que é sempre necessário envolver uma agência funerária para proceder a este tipo de operações, algo que é corroborado por Pedro Delgado Alves. “A Assembleia da República, neste caso, o que faz é contratar e externalizar os serviços, portanto, é através de uma agência funerária que todos esses trabalhos prévios têm lugar, assim como a articulação com as autoridades cemiteriais quando é o caso”.
Consultando o Portal Base, é possível constatar que a Servilusa foi a entidade escolhida pela AR para proceder à exumação dos restos mortais de Eça de Queiroz e à sua trasladação para o Panteão.
O primeiro contrato, datado de 16 de novembro de 2023 e com a descrição “Exumação urgente dos restos mortais de Eça de Queiroz”, teve um custo de 7.040,25 euros. Já o segundo, assinado a 5 de dezembro do mesmo ano, tem como fim “serviços de vistoria e preparação da trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional” e custou 6.395,25 euros.
Nenhum dos dois contratos foi ainda executado, visto que estes procedimentos, originalmente marcados para 2023, foram adiados para o início de 2025, devido à oposição legal de parte dos herdeiros de Eça de Queiroz em proceder à sua trasladação para o Panteão.
Há procedimentos a ter em conta?
Sim, nomeadamente o tipo de transporte. Tanto para cadáveres como ossadas, é necessária uma “viatura apropriada e exclusivamente destinada a esse fim, pertencente à entidade responsável pela administração de um cemitério ou a outra entidade, pública ou privada”. Além disso, estes restos mortais têm de ser transportados em caixões ou caixas de madeira ou de “zinco com a espessura mínima de 0,4 mm”. Este material é especificamente requerido devido às suas propriedades de isolamento. As regras não são tão estritas no que toca a cinzas, cujo transporte “fora de cemitério, é livre desde que efectuado em recipiente apropriado”.
No caso de Eça de Queiroz, as várias partes consultadas pelo Observador foram omissas quanto ao estado dos restos mortais. “Esses aspetos estão à margem da organização da cerimónia. Portanto, o cumprimento das disposições funerárias é assegurado por quem trata de executar”, respondeu Pedro Delgado Alves.
O deputado, no entanto, aventa também que, tendo Eça morrido há mais de um século, “as questões que se poderiam colocar de questão cemiterial se fosse a trasladação de alguém recentemente falecido, neste caso não se colocam. Tudo isso é tratado pelas autoridades competentes e por quem está credenciado para executar os serviços funerários. Há um auto de saída do cemitério onde ele se encontra, onde deixa de estar no jazigo, portanto isso fica devidamente registado e de acordo com as regras de levantamento das pessoas sepultadas naquele cemitério e depois a entidade encarregada pelo transporte assegura todos esses procedimentos em função da própria avaliação que faz”.
Há algum protocolo de segurança a cumprir por tratar-se de alguém destinado ao Panteão Nacional?
Segundo Pedro Delgado Alves, não. Não é necessária presença de polícia, por exemplo, no transporte dos despojos até ao início da cerimónia oficial. O caso é tratado pela agência funerária sob os mesmos princípios com que trataria o transporte de quaisquer outros restos mortais,
“Evidentemente que o transporte é acautelado e, por razões de segurança, nem se divulga o local [do corpo]. O transporte é assegurado por quem presta o serviço e até lá ficará, como acontece nos serviços públicos, nos momentos entre o início das cerimónias de velórios e os sepultamentos no momento em que os corpos são libertados. Portanto, ficam em local adequado. Isto é, fora do circuito dos cerimoniais, não há nada de cerimonial e de protocolar, há apenas o cumprimento das regras sobre a conservação dos restos mortais”.
Onde há uma diferença de tratamento é, por exemplo, na autorização para sepultar fora de um cemitério público, sendo que o “depósito em panteão nacional” é uma das poucas exceções permitidas.
De resto, Pedro Delgado Alves explica que a atualização da lei do Panteão de 2016 veio pôr fim a potenciais desarticulações com este decreto-lei de 1998. “No fundo, tem a ver muitas vezes com exigências legais, prazos para levantamento de ossadas, para as trasladações e para as exumações. Há regras próprias sobre essa matéria funerária que, até à última revisão da lei do Panteão, não estavam necessariamente articuladas. Agora ficou claro que, obviamente, quando há decisão de atribuição de honras de Panteão, ela é um regime especial face a esse decreto-lei de 98”.
Tanto num como noutro documento, pode ler-se que “o disposto no presente diploma em matéria de prazos e procedimentos não prejudica a concessão de honras do Panteão Nacional”.
Há mais alguma particularidade a ter em conta numa trasladação para o Panteão Nacional?
Sim, há documentação especial que é assinada no final da cerimónia no próprio Panteão pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República e pelo primeiro-ministro. Trata-se de um Termo de Sepultura do Panteão Nacional, um auto de deposição onde as três figuras presentemente em funções confirmam a trasladação.
Nos arquivos online da Torre do Tombo, é possível ver exemplares dos termos de Aquilino Ribeiro — assinado por Cavaco Silva, Jaime Gama e José Sócrates, respetivamente — e de Amália Rodrigues — com assinaturas de Jorge Sampaio, Almeida Santos e António Guterres.