“Uma sombra de terror cai sobre todas as minhas recordações da escola e da infância”, desabafa o protagonista de Há dois mil anos, o romance de 1934 de Mihail Sebastian, editado pela E-Primatur e traduzido por Tanty Ungureanu. Essa sombra tem que ver com o desafio de crescer numa Roménia em que o espancamento de judeus é prática comum, em que cânticos como “Pois os estranhos e judeus / não param de nos chupar / não param de nos chupar” são a música de fundo dos dias normais.

Sob a forma de diário, o romance faz-nos acompanhar os desafios e reflexões de um judeu romeno no início da vida adulta, desde os tempos da faculdade até à conclusão da primeira obra que assina em nome próprio como arquitecto. Todo o ambiente do livro é um ambiente de fim de época, desenhado a traços sombrios e com mão fria. A própria realidade física, feita de “quartos compridos com cimento rachado” ou “ondas de neve” que impedem as pessoas de sair de casa, acentua a impressão opressiva, a ausência de horizontes luminosos. Se o sol alguma vez brilha nestas páginas, é uma luz embaciada pela condição humana em geral e pelo destino judaico em particular.

Há, no entanto, sugestões de mudança no ar. Entre as personagens que desfilam na nossa imaginação – um marxista monotemático e um sionista fervoroso, para dar dois exemplos – não faltam referências à revolução por vir. Mas, se descontarmos os desacatos na refinaria nova que põem em causa a ordem estabelecida, as expectativas de mudança acabam por resultar apenas no regresso em força de uma fatalidade antiga: o anti-semitismo e, com ele, o sofrimento de um povo metafisicamente destinado a sofrer.

O principal mérito destas memórias ficcionadas está na maneira surpreendente como Mihail Sebastian explora o problema dos judeus na Roménia. Longe de qualquer exposição panfletária e recusando a polarização maniqueísta, Sebastian optou por explorar o problema a partir de um ponto de vista pessoal, com as rugosidades inerentes a um ponto de vista pessoal. Mais do que isso: a perspectiva a partir do qual temos acesso à “situação historicamente relevante” destacada na maioria das apresentações do livro corresponde a um ângulo peculiar e desconcertante, porque o narrador preza muito a independência do seu olhar e faz questão de rejeitar qualquer tipo de pensamento tribal. Deste modo, Há dois mil anos não se resume a uma denúncia judaica de uma situação com interesse extra-literário – embora o anti-semitismo apareça exposto na sua violência acéfala. Põe-nos antes perante o drama existencial de um indivíduo idiossincrático, avesso a categorizações fáceis, a quem cabe viver esse problema colectivo de larga escala. E se a injustiça específica do anti-semitismo é um drama para ele, a incerteza quanto ao que um homem deve fazer nesta vida – agudizada pela sobreposição de vozes que proclamam qual o caminho a seguir – é o pântano onde esse drama tem lugar.

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Não é por acaso que uma edição muito bonita dos Ensaios de Montaigne vai parar às mãos do protagonista. As referências a Montaigne repetem-se, estabelecendo um contraste descarado entre o modo de pensar do narrador e o “racionalismo cartesiano” professado por outros. Ao pôr o relato sob a alçada do homem que imortalizou a pergunta “Qui sais-je?”, Mihail Sebastian deixa claro que quis escrever uma história na qual a clareza não é a palavra de ordem, na qual as fronteiras são mais indeterminadas do que aquela linha infantil e grossa que separa bons e maus. Essa resistência do mundo a juízos simplistas é ainda intensificada pela presença de dois modelos existenciais antagónicos. O protagonista passa o romance a olhar para cima, para o professor Blidaru e para o arquitecto Vieru, que representam duas formas distintas de ver a vida e electrificam a acção através das suas ideias divergentes sobre a sociedade, o trabalho e a economia.


Título: “Há dois mil anos”
Autor: Mihail Sebastian
Tradução: Tanty Ungureanu
Editora: E-Primatur
Páginas: 256

A descrição do lar dos estudantes judeus, logo nas primeiras páginas, é ilustrativa do tratamento habilidoso a que Sebastian sujeita o tema quente do livro. Talvez esperássemos encontrar neste lar um reduto empático, em contraponto com a selvajaria das ruas. Mas não. O narrador irrita-se várias vezes com o orgulho barato de Marcel Windsor, por exemplo, o estudante que contabiliza e anuncia, dia após dia, quantos espancamentos já sofreu. E confessa o desânimo por viver num sítio tão sujo, rodeado de colegas que perturbam o seu desejo de independência. Ao mesmo tempo, não deixamos de sentir que guarda no coração uma ligação profunda com os judeus que o acompanham. Esta parte inicial do livro está muito bem construída, tanto na forma de retratar a complexidade de uma cabeça que pensa por si mesma como na forma de fazer com que a reflexão sobre a condição dos judeus suba da própria acção, do choque entre o narrador e os acontecimentos relatados, sem cair no pecado mortal dos “romances de ideias”.

Ainda no primeiro caderno, várias passagens atestam o virtuosismo de Mihail Sebastian, ligado à capacidade de replicar formalmente, num estilo sóbrio mas incisivo, o modo de pensar do protagonista. Um exemplo possível, entre outros:

Agora que me lançou o desafio, espera que eu o enfrente, e os seus olhos brilham com chamas curtas, chamas frias, que vêm «da cabeça», tenho essa convicção, não do coração.

Ele está tenso como uma lâmina curva a vibrar à espera da distensão. Mas eu recebo o seu olhar, aguento-o, embora sinta como arde, e continuo calado, deixando o seu ímpeto suspenso sobre um silêncio no qual ele irá inevitavelmente despenhar-se.

Infelizmente, os cadernos intermédios – relativos aos primeiros passos como arquitecto e à passagem por Paris – não dão continuidade ao promissor início de Há dois mil anos. O texto parece não encontrar recursos para resistir à toada sufocante da narração, e perde o oxigénio. Passa a alternar momentos em que a reflexão do protagonista anda às voltas sobre si mesma, sem ser alimentada por qualquer matéria narrativa digna desse nome, com momentos em que a narração é simplesmente desenxabida, como acontece em grande parte das entradas sobre Uiora. Algumas das personagens secundárias que entram em cena nesta altura deixam também a desejar. Continuamos, é certo, a saborear fogachos de um talento literário serenamente virtuoso. Mihail Sebastian não desaprendeu a escrever de um capítulo para o outro. Mas temos agora a impressão, demasiadas vezes, de ler um diário onde alguém escreveu o que queria escrever sem levar em conta as altas exigências da ficção. O retrato da Roménia no período entre as grandes guerras, numa prosa bem burilada, não chega para levar o romance às alturas que o próprio romance prometia.

Na última parte, quando o protagonista assume a responsabilidade do seu primeiro projecto arquitectónico a solo, o autor parece subitamente recuperar a mão. O enfrentamento com o mestre Vieru, no qual vem à luz o ponto de vista deste acerca da questão judaica, é poderoso. Alimentando-se da carga afectiva de uma relação desenhada com cuidado nos cadernos anteriores, a discussão entre o arquitecto e o seu mestre precipita a narração para um final pungente, em que a sombra do anti-semitismo perde de vez a sua qualidade espectral e faz-se carne, na carne inesperada de um amigo. A reflexão e o enredo, que tinham virado costas um ao outro, voltam a casar-se: os sinos da literatura tocam com alegria. Seja como for, é um pouco tarde demais. Fica a estranha sensação de se ter lido uma obra de talento, cuja construção inconsistente impede de aceitar sem reservas a qualificação de “obra-prima” que a contracapa da edição portuguesa apregoa.

Ainda assim, Há dois mil anos é uma obra com qualidades literárias muito consideráveis e dá seguimento ao excelente projecto que a E-Primatur tem levado a cabo: corrigir lacunas da edição em português, seja por meio de clássicos que têm de estar disponíveis em qualquer cultura civilizada, seja por meio de textos que, oriundos de línguas mais distantes, se encontram no ângulo cego do mercado editorial. Neste caso, tirou do desconhecimento Mihail Sebastian, autor que fez parte do círculo de Cioran, Ionesco e Mircea Eliade, num período particularmente vigoroso das letras romenas.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.