O carro da família Cabaço entra em ruas sem saída, volta atrás, pára, arranca e pára novamente. Maria Teresa Cabaço, a mãe, abre a porta e sai: “Vou perguntar onde é”. Maria Teresa e as filhas, Marina e Catarina, escolheram um dia de férias no meio de agosto para procurar manuais escolares nos bancos de recolha e partilha gratuita de livros. O Observador juntou-se a elas.
“A nossa filosofia não é pedir aos ricos para dar aos pobres”
Catarina Cabaço tem 14 anos e a partir de setembro vai frequentar o 10º ano de Ciências e Tecnologias na Escola Secundária Miguel Torga em Massamá. Na terça-feira, a família Cabaço foi até uma papelaria no Restelo, para deixar os livros que Catarina utilizou no ano letivo anterior e tentar encontrar os manuais de que precisa para o regresso às aulas.
A “Papelaria miq”, que abriu portas em maio, aderiu ao projeto Reutilizar, um “movimento pela reutilização dos livros escolares”, dinamizado por Henrique Cunha. Este explicador de Matemática, que um dia incentivou os alunos e os amigos a deixarem no seu escritório os livros de que já não precisavam e viu a sua ideia espalhar-se ao resto do país em pouco tempo, acha que os portugueses querem reutilizar os livros escolares e tenta promover esse objetivo. Para isso, preparou um manifesto para “Tornar a reutilização de livros escolares uma prática Universal em Portugal” e assistiu à criação de uma rede que conta já com 191 bancos a funcionar em drogarias, floristas, complexos desportivos, supermercados e outros estabelecimentos espalhados por todo o país. Henrique Cunha explicou ao Observador que não se trata de caridade, – “a nossa filosofia não é pedir aos ricos para dar aos pobres” – mas de uma tentativa de mudar um hábito que, na sua opinião, só tem paralelo no mundo subdesenvolvido. “Os países com níveis de ensino mais ricos têm livros mais pobres. Não há uma relação direta entre gastar 300 ou 400 euros por ano em manuais e o sucesso dos filhos nas escolas. Todos os países europeus têm soluções que resultam na reutilização de livros. A negociata que se passa com os livros em Portugal é um terceiro mundismo”.
À “Papelaria miq” chegam todos os dias dezenas de pessoas à procura de livros gratuitos. Elisabete Moldes, uma das sócias gerentes, diz que há quem percorra longas distâncias – “há pessoas de Évora, de Sintra, de Loures…” – e nota que a ideia agrada a todos os estratos sociais – “muitas vezes aparece gente que não precisa, mas que se puder poupar… Não são apenas pessoas carenciadas”.
“Pedimos aos professores que não corrijam os exercícios a caneta”
Num dos cantos da papelaria estão centenas de livros arrumados em pilhas. O uso dos manuais é visível porque as capas apresentam algumas dobras e nas primeiras páginas há etiquetas com os nomes dos antigos donos. Fora isso, há apenas alguns textos sublinhados a marcador e exercícios resolvidos a lápis. Elisabete Moldes e a outra sócia, Ana Querido, fazem parte da Associação de Pais da Escola Básica Moinhos do Restelo e dizem que já expressaram a preocupação com o uso dos livros junto dos professores. “Pedimos-lhes que não corrijam os exercícios a caneta”.
Henrique Cunha diz ao Observador que a mudança tem de começar precisamente dentro da comunidade escolar e que os alunos “deveriam ser ensinados a transcrever para os cadernos, fazendo aí os seus trabalhos e permitindo que a maioria dos livros fossem reutilizados. Há cadernos e livros e não pode haver uma confusão entre as duas coisas”. O explicador de matemática critica também a existência de livros com folhas destacáveis, principalmente no ensino básico.
Nos vários sacos que todos os dias chegam à papelaria, Ana Querido encontrou alguns dos livros que os seus filhos, alunos do 4º e 6º ano, vão utilizar no próximo ano letivo. Se conseguir encontrar todos os manuais de que os filhos precisam, Ana Querido estima uma poupança de 300 euros. Elisabete Moldes também levou livros para a filha de sete anos que vai frequentar o 2º ano e pensa que poupou 65 euros. A família Cabaço está à procura do mesmo: se Catarina encontrar todos os livros de que precisa, a mãe poupará cerca de 200 euros. A Agência Lusa fez um levantamento dos preços dos manuais e concluiu que as despesas das famílias com estes materiais de estudo podem ultrapassar os 250 euros, principalmente se frequentarem o 3º ciclo ou o ensino secundário.
Catarina Cabaço procura na pilha do 10º ano os livros que constam da lista entregue pela escola. Mas não tem sorte. Marina Cabaço, 26 anos, já não é estudante, mas quis ajudar. Aproximou-se dos livros do 7º ano e encontrou os dois livros de História do filho de uma amiga da família. A mãe, Maria Teresa Cabaço, e as filhas levam estes manuais e seguem viagem. Trazem na mão uma lista de cinco páginas onde estão escritas cerca de 50 moradas de bancos de livros nos concelhos de Lisboa, Vila Franca de Xira, Amadora e Sintra. “Fazemos o raio Lisboa-Amadora-Queluz-Massamá. Para fora disto não vamos”, diz Maria Teresa Cabaço.
“É de louvar as pessoas que fazem isto”
“É muito emocionante. Partimos para a descoberta. O ano passado foi assim também. Este ano já conhecemos alguns dos locais”, diz Maria Teresa Cabaço. Depois da papelaria, seguem para a Amadora, onde, após alguns enganos, encontram a Florista Celeste.
– “Boa tarde. Vimos por causa dos livros”, diz Maria Teresa ao entrar na loja.
– “Já não estamos na rede. Tive uns problemas de saúde e tive de deixar. Tenho pena. Assim que puder recomeço”, responde a florista.
A família deixa a loja. “É de louvar as pessoas que fazem isto. Não deixa de ser uma invasão do espaço delas”, diz a mãe. No ano passado, metade dos livros que Catarina usou foram encontrados nestes bancos de recolha e partilha. Mas este ano está mais difícil. Maria Teresa Cabaço acha que a iniciativa já está muito divulgada. Para além disso, está convencida que a partir do 10º ano se torna mais complicado encontrar manuais porque os estudantes guardam os livros até aos exames nacionais.
A família, que vive em Massamá, já percorreu alguns quilómetros e ainda só tem o livro de Biologia, o de Física e um de Matemática. Está numa espécie de corrida contra o tempo, uma vez que o prazo limite para encontrar os restantes é precisamente a terça-feira em que andam à procura.
O próximo nome na lista é uma loja de ferragens também na Amadora, mas depois de muito procurarem, não conseguem encontrar o local. Dirigem-se então para o Cacém. “Se hoje arranjarmos todos os livros compensa, mas se não, ficamos por aqui”. Os quilómetros já percorridos e litros de combustível gastos ditam que continuar a busca deixe de valer a pena. No carro, Maria Teresa Cabaço diz ter conhecimento de que há livros escolares usados à venda na internet por preços baixos, mas não frequenta esses sites por ter receio dos métodos de pagamento e das entregas.
Um negócio online
Maria Teresa Cabaço não será caso isolado ao recear comprar os manuais pela internet, mas os números parecem indicar que a procura por estes livros está a aumentar nos sites de classificados. De tal forma que o portal OLX lançou, no início do mês de julho, uma secção a que deu o nome de “Livros escolares”. Segundo dados fornecidos pelo site, até ao final do mês de agosto os anúncios de manuais devem chegar aos 100 mil. Uma procura por ‘livros escolares’ no site revela que neste momento há mais de 88 mil anúncios e que os preços variam entre os cinquenta cêntimos e os 100 euros (por pacotes que incluam todos os manuais de um determinado ano de escolaridade).
Fernanda Brito é a campeã de vendas do OLX. A produtora de moda e jornalismo começou por usar este site para escoar as peças que lhe sobravam das produções que realizava, mas tornou-se uma das grandes vendedoras de manuais escolares. Atualmente tem mais de 90 anúncios de livros de estudo. Tudo começou quando, no início do ano letivo 2013/2014, a enteada de 16 anos – “uma nova hippie”, nas palavras da produtora de moda – lhe pediu para encontrar manuais em segunda mão por achar “pretensioso” comprar todo os anos livros novos. Fernanda Brito conta ao Observador que começou a procurar os manuais e percebeu que eram fáceis de encontrar. Reuniu cerca de 150 livros junto das irmãs, das amigas da enteada e através de contactos nas redes sociais. Anunciou a coleção no OLX, pediu cinco euros por cada pacote de livros (que pode incluir até quatro unidades, entre manual de estudo e livros de exercícios) e vendeu tudo. Este ano, antecipou-se e começou a procurar livros logo em fevereiro. Até agora vendeu entre 40 e 50 livros, mas espera que o “boom” de vendas seja em setembro.
Fernanda Brito diz que nunca teve reclamações dos clientes, nem livros devolvidos por estarem desatualizados. Mesmo quando as editoras mudam os títulos e os códigos ISBN (o número oficial de registo). Já chegou a acontecer pedirem à produtora de moda o livro “Novo Tempo da História” e ela ter um livro chamado “O Tempo da História”. Ou livros com com o mesmo título e aspeto, mas com um ISBN diferente. Nesses casos, são os clientes que lhe asseguram que o livro é o mesmo e que avançam para a compra. “Os pais começaram a dizer-me que a alteração de ISBN e de nomes, acrescentando uma palavra, é uma manobra de distração para combater este mercado paralelo”. Se persistirem dúvidas, Fernanda Brito dá indicações aos clientes sobre a matéria presente numa determinada página e estes deslocam-se às papelarias para confirmar se os livros atuais têm as mesmas informações.
Uma prima de Catarina Cabaço, que este ano encontrou todos os manuais de que precisa em segunda mão, foi informada por uma professora que não podia usar os livros por terem ISBN’s diferentes. A jovem teve de comprar livros novos, contou Catarina Cabaço. Henrique Cunha disse ao Observador que nesses casos as associações de pais têm de intervir.
“Mais ano, menos ano acaba”
No Complexo Desportivo Carlos Paredes, no Cacém, todos os livros que entram e saem no banco são registados numa base de dados. Como resultado, Catarina Cabaço não tem de esperar muito tempo até duas funcionárias lhe dizerem que pode levar o livro de química e um livro de matemática para um amigo. Uma das funcionárias dirige-se a uma sala onde crianças jogam pingue-pongue e procura os manuais organizados em pilhas, dispostos em secretárias.
Atrás da família Cabaço há mais duas à espera. Todos os dias são atendidas 20 ou 30 pessoas em busca de manuais escolares usados.
De regresso a Massamá, uma última paragem na Paróquia de São Bento e Massamá. Catarina Cabaço não encontra mais nenhum livro, mas é-lhe dito para se registar no site da paróquia e aguardar que surjam os manuais que procura. “Mais anos menos ano acaba”, diz Maria Teresa Cabaço, sem grande esperança. “Para as editoras não é bom”.
O Observador tentou contactar a Comissão do Livro Escolar da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, mas foi informado que a equipa se encontra de férias.