A internet nem uma miragem era. A televisão por cabo, cheia de canais para entreter o zapping, estava por criar. Valia-lhe o avô e os aviões que pelo ar traziam as cassetes que o ajudavam a matar, uma e outra vez, uma saudade viciada em ressuscitar. Com cinco anos saiu dos EUA a reboque do pai, que o levou para Itália, onde a distância, a língua e os amigos que não tinha, cedo fizeram do basquetebol um refúgio. O avô “costumava gravar os jogos da NBA” e “enviava as cassetes” por saber que Kobe não os podia ver na televisão, “onde seria só carregar no botão”. Ele esperava, cuscava o correio e o hábito tornou especiais os momentos em que se “sentava para ver um jogo”. Tornou-se num ritual de emigrante. Era o início de um vício: “Desenvolvi uma paixão e uma relação com o desporto. Quando voltei, muitos miúdos não a tinham”. O basquetebol agarrou Kobe tanto quanto Bryant o agarraria.

Dear Kobe,

Thank you.

Por isso é que se o basquetebol tivesse uma consciência e lhe dessem uma folha em branco e uma caneta para a escrevinhar, a resposta teria de começar assim. Mas uma folha não chegaria para as palavras que o desporto de acertar com uma bola no cesto precisaria para agradecer a carta que, no domingo, Kobe lhe enviou: “Dear Basketball. Esta época é tudo o que me resta dar. O meu coração pode aguentar as tareiras. A minha mente pode lidar com a rotina. Mas o meu corpo sabe que é tempo de dizer adeus”. Uma folha de papel não chegaria. Faltaria espaço, como faltou a um miúdo que, durante oito anos (de 1983 a 1991), se fartou de agradecer ao avô, enquanto o pai o arrastava por Itália fora, para adiar o final da carreira de basquetebolista. Durante esses tempos, Bryant apenas regressava aos EUA no verão.

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Era na época do calor e das férias que aproveitava para tirar o pó dos músculos na Future League (torneios de verão de basquetebol), a jogar pelo liceu Sonny Hill, no estado da Pensilvânia. Houve um ano do qual nunca se esqueceu, por ter passado segundos, minutos e horas sem acertar com uma bola no cesto. Zero pontos. “Esse foi o número de pontos que marquei durante todo o verão, quando tinha 12 anos. Não houve um lançamento livre, um ressalto acidental, nem um lancei-a-bola-para-o-ar-e-ups-acabou-no-cesto. Estava a envergonhar a minha família”, admitiu, já bem trintão. O pai, afinal, era Joe “Jellybean” Bryant e tinha como tio John “Chubby” Cox, dois jogadores de NBA e “ambos lendas no seus tempos” de Future League.

CHICAGO, UNITED STATES: Los Angeles Lakers guard Kobe Bryant(L) and Chicago Bulls guard Michael Jordan(R) talk during a free-throw attempt during the fourth quarter 17 December at the United Center in Chicago. Bryant, who is 19 and bypassed college basketball to play in the NBA, scored a team-high 33 points off the bench, and Jordan scored a team-high 36 points. The Bulls defeated the Lakers 104-83. AFP PHOTO VINCENT LAFORET (Photo credit should read VINCENT LAFORET/AFP/Getty Images)

Foto: VINCENT LAFORET/AFP/Getty Images

O miúdo pensou em esquecer o basquetebol e dedicar-se ao futebol que fazia as bolas rolarem pela relva. Estava triste, atropelado pelo insucesso, vencido pelos zero pontos veraneios. Mas foi aí que soube da história de Michael Jordan. Aos ouvidos de Kobe Bryant chegou a história de como o papa pontos da NBA fora rejeitado na equipa de basquetebol do liceu, quando estava no 10.º ano. E de como Jordan pegou na frustração e desilusão para “o alimentarem” e “tornarem mais forte”. Por isso tentou fazer o mesmo. O miúdo passou a treinar como um louco, a encher o conhecimento com a história do desporto, a querer melhorar em tudo, e resultou. Vinte e quatro anos depois de passar um verão sem acertar no cesto, Kobe Bryant ultrapassava Michael Jordan como o terceiro jogador com mais pontos marcados na história da NBA. Hoje vai com 32.683, mas não deverá marcar muitos mais.

“Dear Basketball,

I fell in love with you.”

Foi o amor, a paixão pelo basquetebol que se tornou num vício em treinar e trabalhar, que empurrou Kobe Bryant até aqui — ao momento em que, com 37 anos, cinco títulos da NBA, duas medalhas de ouro olímpicas e 17 vezes selecionado para a equipa All-Star da liga norte-americana, anunciou a retirada do basquetebol. Fê-lo por carta, escreveu em vez de falar, juntou palavras numa espécie de poema que endereçou ao desporto que deu “a um rapaz de seis anos o seu sonho em ser Laker”. Esse miúdo amou o basquetebol até chegar a graúdo e nunca jogar por outro clube que não os Lakers, sediados em Los Angeles. Essa caminhada começou no tal verão que teve aos 12 anos: “Não estava só determinado em nunca mais ter um verão a zeros, motivei-me para infligir o mesmo sentimento de falhanço que os meus adversários, sem saberem, infligiam em mim. Nascia o meu killer instinct para marcar [pontos]”.

O instinto, no campo, foi fatal para muita gente. O rapaz — a quem os pais deram o nome do mais cobiçado pedaço de carne japonês — foi o primeiro que a NBA caçou no liceu. Bryant não chegou à universidade porque o talento era demasiado para ficar escondido numa college. Foi a 13.ª escolha no draft pelos Charlotte Hornets, mas um acordo já tinha combinado que clube teria de o fornecer aos LA Lakers. O ano de estreia viu-o poucos minutos em campo, os suficientes para, na altura, ser o mais jovem de sempre a jogar na liga norte-americana. “Há uma escolha que temos de fazer, como indivíduos, se quisermos ser fantásticos a fazer algo. Tens que fazer os sacrifícios que se herdam de uma escolha dessas: o tempo com a família, estar com os amigos. Aos 18 anos, sabia que não ia ser parado. Isto era a minha vida. Todos podemos ser mestres do nosso ofício”, disse, este ano, no “Kobe Bryant’s Muse”, um documentário feito sobre a sua carreira.

https://www.youtube.com/watch?v=98wR6-r2bbI

“I never saw the end of the tunnel

I only saw myself running out of one.”

Kobe conseguiu ser mestre em várias coisas: as arrancadas rumo ao cesto, os afundanços impossíveis, o atrevimento nos lançamentos, a forma como o corpo parecia ser maleável para Bryant marcar pontos. Na primeira época (1996/97) não chegou a uma média de oito por jogo, ao contrário do que aconteceu entre 2000 e 2003. Os Lakers venceram três títulos da NBA seguidos e a média de Kobe nunca baixou dos 20 pontos. Aí já era decisivo, a estrela, quem os adversários mais temiam. O ala estava obcecado a ser o melhor e as comparações com o homem que não é pior que ninguém começaram. Tudo o que Kobe Bryant fazia era, e ainda é, analisado consoante o que Michael Jordan fez.

Em 2014 ultrapassou-o em número de pontos (já depois de se tornar o mais novo a chegar aos 30.000), mas nunca quis saber muito disso. “Se o meu objetivo fosse ir atrás do Jabbar, tê-lo-ia feito. Teria trocado de equipa para marcar 37 pontos por jogo. Mas isso nunca foi a minha prioridade”, confessou, já este ano, à revista GQ, ao falar dos 38.387 pontos com que Kareem Abdul-Jabbar fixou o recorde da NBA. Porque Kobe Bryant sempre quis, correu, saltou, lançou e afundou para conseguir outra coisa: “Sentar-me à mesa com o Michael e o Magic, com o mesmo número de títulos”. Em 2010 igualou Magic Johnson, que entretanto o classificou como “o mais próximo que vimos de Michael Jordan”, o homem que Kobe ainda persegue e fechou a carreira com seis títulos conquistados. Bryant quer e sempre quis canecos e nem isso o fez sair dos Lakers, que nas últimas cinco épocas nunca conseguiram regressar à final dos playoffs.

LOS ANGELES, CA - DECEMBER 03: Kobe Bryant #24 of the Los Angeles Lakers dunks the ball against the Sacramento Kings during the first half at Staples Center on December 3, 2010 in Los Angeles, California. The Lakers defeated the Kings 113-80. NOTE TO USER: User expressly acknowledges and agrees that, by downloading and or using this photograph, User is consenting to the terms and conditions of the Getty Images License Agreement. (Photo by Jeff Gross/Getty Images)

Foto: Jeff Gross/Getty Images

Essa meia década coincidiu com o declínio, aos poucos, de Bryant. Os joelhos, as costas e os tornozelos foram-no amarrando ao chão e às mesas de operações. Cada operação era pior que a anterior e as últimas temporadas acabaram mais cedo que o previsto para quem, um dia, se tornou no mais novo de sempre a ultrapassar os 30.000 pontos e as 6.000 assistências na NBA. Desde 2010 que Kobe não mais logrou fechar uma época com uma média de pontos por jogo superior a 28. Mas ele ia voltando, fintando uma e outra lesão, decidido em perseguir o sexto título que lhe faltava para igualar o melhor dos melhores. “As cobras não ficam nervosas”, respondeu, uma vez, em 2013, quando um jornalista do Grantland trocou sms com Kobe e lhe perguntou se sentiu nervos, após o ala dos Lakers regressar de mais uma mazela. Curioso: alguém conhecido pela forma como sempre voou para os cestos a comparar-se ao réptil que faz a vida a rastejar.

“You gave a six-year-old boy his Laker dream
And I’ll always love you for it.
But I can’t love you obsessively for much longer.”

Talvez porque, nos últimos anos, Kobe Bryant habituou-se a estar deitado, à mercê de cirurgias e sessões de fisioterapia. O corpo ia deixando de acompanhar a ambição da mente. O norte-americano aparecia menos em campo e, quando o fazia, já não jogava como antes. Ele ia-se abaixo, arrastado pela mesma âncora que tem mantido os Lakers presos ao fundo da NBA: a equipa de Los Angeles está hoje no último lugar da Conferência Oeste e perdeu os últimos seis encontros no campeonato. A carta que Kobe escreveu ao basquetebol serve para desviar o foco do que o jogador já não consegue dar ao desporto, para o muito que ele deu durante tantos anos.

E afastá-lo das críticas, também. Nos últimos tempos, imprensa e adeptos lamentavam como um jogador de 37 anos e um salário a rondar os 23,5 milhões de euros ao ano estava a prender os Lakers ao passado, levando o clube a montar uma equipa à sua volta. Ainda mais quando esse jogador é obcecado em treinar, marcar, evoluir e ser melhor que os outros. “A minha natureza torna-me uma pessoa com quem dá menos gozo jogar? Claro. É possível que alguns jogadores fiquem intimidados com isso? Sim. Mas será que eu e os Lakers queremos jogadores assim? Não. Esta organização precisa de jogadores que a levem a outros cinco ou seis campeonatos. Os que foram capazes de fazer isso têm de ser cortados do mesmo pano”, chegou a defender.

Além de deixar para trás muitos basquetebolistas nos courts, a maior parte também não o acompanhou na mentalidade. Na auto-superação. Na luta por nunca se acomodar.

https://www.youtube.com/watch?v=qnHyhCYOgTI

Encheu a vida com o basquetebol e sobrou-lhe pouco espaço para o resto. Sobretudo, para as amizades. A obsessão que centrou no que era capaz de fazer com uma bola nas mãos numa cidade com “muita gente” como ele — “pessoas que sentem que Deus as colocou na Terra para elas fazerem o que quer que estejam a fazer” — deixou-lhe pouco tempo “para construir grandes relações”.

Kobe Bryant admitiu não ter grandes amigos, mas garantiu que isso não o afetava. “Nunca vou conseguir ser um grande amigo. Consigo ser um bom amigo. Estou tão embrulhado nas minhas merdas, que nunca me vou lembrar do aniversário de alguém. As pessoas que são minhas amiga compreendem isto, e, por norma, são iguais a mim. Gravitas sempre em torno de pessoas que são como tu. É impossível teres uma amizades como as que vês nos filmes. Uma grande amizade, uma ligação forte, é algo que provavelmente nunca terei. Não estou a dizer que não preciso de ter amigos porque sou forte. Não, isto é uma fraqueza”, explicou. Kobe vai retirar-se como uma lenda porque dedicou tudo para tentar sê-lo. Mas em 2003 deu-se uma das poucas manchas que tem na carreira.

O facto de eu estar aqui sentado, a fazer esta entrevista — não tinha de a fazer. Desde Colorado que controlo as minhas cenas. Se não quero fazer algo, não o faço. Ninguém vai controlar a minha vida. Dizem que eu lanço demasiadas vezes ao cesto. Mas o ‘demasiadas’ é uma questão de perspetiva. Alguns pensavam que o Mozart escrevia demasiadas notas. Ele respondeu aos críticos dizendo que não há notas a mais ou a menos. Há as que são necessárias” – Kobe Bryant, em entrevista à revista GQ.

Entrou num hotel no estado do Colorado, fez o check-in e viu uma empregada. Achou-lhe piada e envolveu-se com ela. E o que Bryant pensou ter sido uma noite de sexo com uma quase desconhecida acabaria por o obrigar a defender-se de uma acusação de violação. Tinha 24 anos e ainda estava a meio do caminho que o levou a ser o que é hoje. “Comecei a pensar na mortalidade do que estava a fazer. O que é importante [na vida]? Que significado tem o facto de um dia toda a gente te adorar e depois todos te odiarem por algo que não fizeste? Por isso decidi: se as pessoas não gostarem de mim, seria por aquilo que realmente sou. Tive medo de ir para a prisão? Sim. Era uma pena entre os 25 anos ou prisão perpétua. Estava apavorado”, desabafou, à GQ.

Um ano depois de a acusação aparecer, o caso era arrumado na gaveta dos tribunais quando Kobe Bryant chegou a acordo com a mulher em causa. A vida continuou e, no basquetebol, pouca coisa mudou. O ala dos Lakers continuou a inventar afundanços, lançar ao cesto de todo o lado, a carregar a equipa às costas. A legend in the making, como dizem os americanos.

OAKLAND, CA - NOVEMBER 01: Kobe Bryant #24 of the Los Angeles Lakers walks back down court during their game against the Golden State Warriors at ORACLE Arena on November 1, 2014 in Oakland, California. NOTE TO USER: User expressly acknowledges and agrees that, by downloading and or using this photograph, User is consenting to the terms and conditions of the Getty Images License Agreement. (Photo by Ezra Shaw/Getty Images)

Foto: Ezra Shaw/Getty Images

“I’m ready to let you go.
I want you to know now
So we both can savor every moment we have left together.”

No dia em que ultrapassou Michael Jordan em pontos marcados já estava mais perto dos 40 do que dos 30. Teve de esperar muito para, nos números, ser melhor do que a lenda que, em miúdo, o inspirou a discutir com o ego e a insistir que não, que passar um verão sem acertar com a bola no cesto não o iria separar do basquetebol. “Tenho noção que o tempo já me mandou ir para o quarto lavar os dentes, antes de me mandar para a cama. Mas não seria quem sou se não caminhasse devagar para a casa de banho. Se não agisse como se alguém tivesse mudado a pasta de dentes de sítio. Se não lavasse os dentes duas vezes, esfregasse a língua três vezes, sangrasse as gengivas com fio dental e bochechasse o elixir na boca até ficar com a boca a arder e dormente. Não seria o miúdo que recuperou do zero e está agora a honrar o homem que me inspirou a desafiar tudo”, escreveu, no Players’ Tribune, em dezembro de 2014, como que a dizer que ia continuar a bater o pé à idade, às lesões, ao corpo que já não aguentava mais. Os ossos e músculos que o fizeram voar obrigaram-no, menos de um ano volvido, a mudar de ideias.

Mas ele e o basquetebol sabem que, aconteça o que acontecer, Kobe Bryant “será sempre o miúdo das meias [esticadas nas pernas], com um caixote de lixo ao canto, cinco segundos no relógio e com a bola nas mãos”. Dos momentos decisivos, portanto. Dos lançamentos impossíveis, dos cinco títulos da NBA, das medalhas de ouro olímpicas, das madrugadas com os olhos colados à televisão, deste lado do Atlântico.

Dear Kobe,

Obrigado nós.