“Por que razão o juiz Carlos Alexandre deu a entrevista à SIC?” É a pergunta que muitos fazem, tendo em conta o dever de reserva dos juízes. A resposta é mais simples do que parece e tem como pano de fundo um conjunto de acontecimentos em que o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal se viu envolvido nos últimos anos.

Ao que o Observador apurou, Carlos Alexandre pretendeu prevenir novas denúncias anónimas caluniosas por alegada violação do segredo de justiça que teriam como objetivo afastá-lo do Tribunal Central de Instrução Criminal. E também denunciar vigilâncias ilegais a que tem sido sujeito por forças que entende estarem ligadas aos serviços de informações. As declarações à SIC sobre o manual dos serviços de informações, que foi divulgado pelo jornal i e se tornou público, indicam que o juiz tem indícios de que são ex-agentes das secretas que o estarão a vigiar.

Tudo por força das decisões que tem tomado naqueles autos, de que o máximo exemplo foi a detenção no aeroporto da Portela e a consequente prisão preventiva do ex-primeiro-ministro no Estabelecimento Prisional de Évora durante 10 meses.

Ao mesmo tempo, o juiz de instrução criminal pretendeu ser transparente em relação ao seu património familiar, visto já ter sido em 2015 alvo de uma denúncia anónima que tentava construir a ideia de que teria fortuna pessoal. Carlos Alexandre pretendeu prevenir e deixar claro que não tem nada a esconder perante receios de novos ataques que poderão pretender descredibilizá-lo aos olhos da opinião pública.

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Há ainda uma terceira razão: Carlos Alexandre queria agradecer publicamente aos médicos do serviço de Hematologia do Hospital de Santa Maria que tinham salvo um familiar próximo de uma doença grave. Um acontecimento que marcou o juiz e a sua família durante 2015 e boa parte deste ano.

Apesar de estar consciente do impacto que uma entrevista sua teria sempre, Carlos Alexandre ficou surpreendido com a associação que foi feita entre o timing da publicação da entrevista por parte da SIC e a decisão do Ministério Público de adiar novamente a produção do despacho de encerramento de inquérito. Precisamente porque essa é uma decisão exclusiva do procurador Rosário Teixeira, que, enquanto titular da ação penal, decide quando e como termina a fase de inquérito. O juiz de instrução criminal não é consultado nessa decisão, limitando-se a escrutinar a ação do Ministério Público e a analisar os requerimentos apresentados pela defesa.

Uma coisa é certa: Carlos Alexandre não pretende abandonar o Tribunal Central de Instrução Criminal e vai aguardar que o Tribunal de Relação de Lisboa o notifique do incidente de recusa interposto pela defesa de José Sócrates — e espera que o Conselho Superior da Magistratura abra um procedimento de averiguação (prévia à fase de inquérito disciplinar) para analisar a entrevista que deu à SIC. Quer num caso, quer no outro, o magistrado pretende defender-se.

As duas razões principais que levaram Carlos Alexandre a dar entrevistas à SIC e ao Expresso (que será publicada na edição em papel deste sábado) foram as seguintes:

O dinheiro

Tem sido uma das maiores críticas feitas nos últimos dias a Carlos Alexandre: a necessidade que o juiz sentiu em falar nos seus créditos bancários, nos cortes salariais que sofreu, na necessidade que tem em realizar turnos no tribunal de pequena instrução criminal da comarca de Lisboa para “compor” a remuneração mensal e no património imobiliário que possui em conjunto com a sua mulher.

Não é a primeira vez que a opinião pública recebe informação sobre a situação económica do juiz Carlos Alexandre. Os jornais Público e i já tinham revelado muitos pormenores sobre os rendimentos do magistrado, no contexto de um processo-crime cujos autos foram arquivados e consultados por jornalistas daquelas publicações.

Estava em causa uma denúncia anónima apresentada contra o magistrado por alegada violação do segredo de justiça. Esse era o crime que o autor da queixa imputava ao juiz, mas o texto ia mais longe e falava de alegados pagamentos realizados pelo Grupo Espírito Santo — entidade que está a ser alvo de vários inquéritos criminais do Departamento Central de Investigação e Ação Penal que têm Carlos Alexandre como juiz de instrução. Relações alegadamente promíscuas com o grupo de comunicação social Cofina (que detém o jornal Correio da Manhã e a revista Sábado), que teriam nascido de alegados factos comprometedores que um jornalista teria descoberto sobre a sua vida financeira, eram também denunciados, já que essa seria a explicação para aqueles títulos terem tanta informação sobre processo em segredo de justiça. Carlos Alexandre era ainda denunciado por ter “uma mansão” em Monsaraz, no Alentejo.

Chamado a depor como testemunha no inquérito conduzido por uma procuradora-geral adjunta do Ministério Público (Emília Martins) no Tribunal da Relação de Lisboa, Carlos Alexandre foi direto ao assunto e revelou, segundo o jornal i, toda a sua vida patrimonial. A saber:

  • Chegou a ter rendimentos mensais de cerca de 10 mil euros mas que, devido aos cortes salariais que se iniciaram com os Programa de Estabilidade e Crescimento do governo de José Sócrates, passaram em 2015 para 8 mil euros. Esse valor dividia-se em cerca de 4 mil euros (salários + subsídio de alojamento) do salário do juiz, cerca de 2 mil euros do salário da mulher (funcionária pública) e mais 2 mil euros que vinham de arrendamentos de imóveis e da reforma da sogra — que faz parte do seu agregado familiar;
  • Era proprietária, juntamente com a sua mulher, de uma vivenda em Linda-a-Velha adquirida por cerca de 400 mil euros com financiamento bancário da Caixa Geral de Depósitos (CGD);
  • O empréstimo da CGD implicava o pagamento de uma prestação mensal de cerca de 2 mil euros;
  • Em 2005 tinha investido cerca de 100 mil euros, novamente através de um crédito bancário da CGD, na compra de um apartamento na Praia do Carvoeiro, no Algarve;
  • Este segundo empréstimo tinha uma prestação de cerca de 600 euros;
  • Era proprietário de um BMW 320, sendo que mudava de carro em intervalos de 5 anos. Sempre através de créditos bancários, nomeadamente no regime de leasing.
  • No caso do BMW 320, o crédito solicitado tinha um custo mensal de 400 euros;
  • A sua mulher era ainda proprietária de duas pequenas casas em ruínas no Alandroal, Évora, e de outros imóveis que a mulher recebeu de herança do sogro. Estes imóveis estavam arrendados a oito inquilinos;
  • O próprio Carlos Alexandre tinha recebido também o imóvel dos seus pais, em Mação, que dividia com a sua irmão e que estaria a reconstruir;
  • Esta reconstrução levou o juiz a solicitar mais um crédito bancário de 100 mil euros, à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mação, para financiar a obra. Sendo certo que o crédito é disponibilizado em tranches, conforme o andamento da obra. O montante da prestação era, assim, variável.
  • Por último, Carlos Alexandre revelou ainda que a sua mulher, que tinha sido atropelada, recebeu em 2002 cerca de 75 mil euros de uma seguradora a título de indemnização;

Resumindo a contabilidade pessoal descrita pelo juiz Carlos Alexandre:

  • Proveitos mensais: 8 mil euros
  • Custos mensais dos créditos bancários: 3 mil euros

Devido ao elevado custo dos créditos bancários, Carlos Alexandre sentia necessidade de acumular as funções no Tribunal Central de Instrução Criminal com turnos no Tribunal de Pequena Instância Criminal para aumentar o seu rendimento disponível mensal. Tanto mais que os juízes não podem exercer outras funções que sejam remuneradas. E recordou, no testemunho que prestou perante a procuradora Emília Martins, que essa sua prática remontava ao início do século, quando acumulava as funções de instrução de juiz de instrução colocado junto da Polícia Judiciária Militar com as funções de juiz de direito das Varas de Sintra.

No final da inquirição, Carlos Alexandre disponibilizou-se a enviar para os autos, caso a procuradora entendesse necessário, toda a documentação sobre os rendimentos que guarda desde 1984. E autorizou a consulta dos seus dados bancários e registos telefónicos.

Os serviços de informações, vigilâncias, o cão envenenado e a pistola em cima da fotografia do filho

A procuradora Emília Martins acabou por arquivar o inquérito por entender que a denúncia anónima era uma “vingança” ou “uma forma de pressão” que tinha como único objetivo descredibilizar Carlos Alexandre.

Antes, contudo, questionou Carlos Alexandre sobre se sabia quem seria o anónimo que tinha enviado uma queixa não assinada, visto que se tratava de uma carta com muitos pormenores e informações que não estavam ao alcance de um cidadão comum. Como, por exemplo, descrever a identidade e conversas de jantares que o juiz costuma ter com os amigos em Mação, as moradas da maior parte das suas casas e da sua mulher e até um número de uma primeira denúncia anónima apresentada contra Alexandre que relatava um jantar num restaurante de Lisboa com um jornalista da Visão.

O magistrado respondeu, segundo o Público, com um galicismo: isso podia significar de que estava a ser alvo de uma espécie de garde à vue — termo que tanto significa “prisão preventiva” como “sob vigilância”.

Esse sentimento de estar a ser vigiado é antigo e baseia-se em vários casos concretos, como uma invasão da sua casa em que foi deixada uma arma em cima da fotografia de um dos seus dois filhos. Ou quando, em 2015, envenenaram o seu cão. Ou quando lhe transmitiram na sua terra natal o seguinte aviso: “Corres o risco de não voltar a colar cromos na caderneta”.

Regressemos à primeira denúncia anónima apresentada contra Carlos Alexandre por violação do segredo de justiça. Apresentada em 2014 e arquivada por falta de fundamentação, o texto revelava um encontro ao almoço num restaurante em Moscavide, dias depois da primeira detenção de Ricardo Salgado para interrogatório no caso Monte Branco. Apesar de o conteúdo da conversa não corresponder à verdade, a informação sobre o dia, local e a hora estavam corretos — o que reforçou a convicção do juiz de que estava a ser vigiado.

Por quem? Carlos Alexandre não tem provas mas as declarações à SIC sobre o manual dos serviços de informações, que foi divulgado pelo jornal i e se tornou público, indicam que o juiz tem indícios de que são ex-agentes das secretas que o estarão a vigiar.

Corrigida idade do familiar próximo do juiz Carlos Alexandre que teve uma doença grave