Em plena crise, a Ucrânia vai a votos. Uma eleição presidencial que se assume como muito importante para encaminhar o conflito para o fim, mas que muitos duvidam que se traduza numa paz imediata. “Só a eleição legítima de um novo chefe de Estado abrirá caminho a reformas constitucionais” e, consequentemente, à “descentralização das regiões do leste”, defende ao Observador Amanda Paul, analista política responsável pelas questões da região euro-asiática no Eurpean Policy Centre (EPC). Ou seja, só a realização de eleições poderá acender a luz no fundo do túnel. Mas a tensão no leste ameaça boicotar o escrutínio e, até à hora de tornar o resultado oficial, tudo é possível.

De facto, os primeiro relatos deste domingo confirmaram que nas regiões de Donetsk e Lugansk o voto estava a ser seriamente comprometido. De acordo com o Kiev Post, apenas 15 das 22 comissões eleitorais da província de Donetsk estavam a funcionar. Ao mesmo tempo, correspondentes da BBC naquela região do sudeste curaniano dizem que o clima é tenso e que, nos checkpoints os soldados ucranianos estão “nervosos”.

Entretanto, um fotojornalista italiano e o intérprete russo que o acompanhava foram mortos em Slaviansk, um dos principais focos de tensão das últimas semanas. Andrea Rochelli, de 30 anos, e Andrey Mironov, terão sido atingidos por um morteiro quando reportavam, no sábado, os confrontos entre separatistas e nacionalistas ucranianos.

Putin vai “respeitar” candidato eleito (Petro Poroshenko, dizem)

Quando Kiev anunciou, depois da queda de Viktor Ianukovich, a marcação de eleições presidenciais antecipadas para 25 de maio, a Rússia começou por dizer que não iria reconhecer o resultado do escrutínio. “Organizar eleições sem haver entendimento entre o leste e o oeste é um ato destrutivo para o país”, disse em abril o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. Mas em pouco mais de um mês alguma coisa parece ter mudado e o Kremlin, que Kiev acusa de ter sido o responsável pela desordem, começa a dar os primeiros sinais de retirada. Esta sexta-feira em São Petersburgo, Vladimir Putin disse mesmo que iria “respeitar a escolha do povo ucraniano”.

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Uma ligeira mudança de discurso que parece dever-se em parte aos resultados das últimas sondagens. Petro Poroshenko, o milionário que fez fortuna no mundo do chocolate, chega muito perto dos 50% nas intenções de voto (muito à frente dos pouco mais de 13% de Iulia Timoshenko), o que pode significar que a Ucrânia não terá de esperar por uma segunda volta no dia 15 de junho para ver eleito um novo presidente. Este é, aliás, o argumento dos apoiantes de Poroshenko, que temem que o país não sobreviva a mais três semanas no limbo, com o agudizar das tensões entre as forças do governo interino e as milícias separatistas pró-russas.

E há quem diga que Vladimir Putin está mesmo a ver no magnata do chocolate um interlocutor aceitável, entre os possíveis, para as negociações de paz num conflito que, segundo o presidente russo, já atingiu as proporções de “uma perigosa guerra civil”. Melhor do que a rival Iulia Timoshenko, pelo menos, com quem Putin não admitira conversações. Mas Timoshenko acusa o empresário de ser um bode expiatório de Moscovo, uma vez que é conhecido por ter boas relações com a elite política russa, e com a elite comercial, já que grande parte dos seus negócios se estende para lá da Ucrânia, nomeadamente à Rússia, mas também à Hungria e à Lituânia, por exemplo.

Menos 5 a 7% de Eleitores

A questão que se impõe é saber se em Donetsk e Lugansk, onde os separatistas tentam impor a autoridade das auto-proclamadas repúblicas populares, os cidadãos vão ou não poder votar.

“Há muitas pessoas no leste que não se querem separar da Ucrânia, mesmo que não apoiem o atual Governo interino que saiu da Euromaidan”, garante ao Observador Anastasyia Borynets, jornalista natural de Kiev que cobriu os primeiros meses de protestos para um jornal independente russo. “E essas pessoas também vão querer votar”, diz.

Mas ao longo da semana, a Comissão Central de Eleições (CEC) avançou que a situação nas assembleias de voto no leste permanecia tensa e que, a dois dias das eleições, já se podia falar numa perda de 5 a 7% do número total de eleitores. Na região de Donbas, que compreende Donetsk e Lugansk e onde se concentra 13% do número total de eleitores, apenas metade deverá participar no escrutínio, dizia na sexta-feira a agência de notícias Ukrinform.

Em Donetsk e Lugansk, vários foram os relatos de separatistas a tomar o controlo de assembleias de voto, levando os computadores e todos os documentos eleitorais que encontraram. No norte de Lugansk, Vladimir Nesmiyanov, líder da comissão eleitoral naquela região, disse na semana passada que não conseguiu entregar os boletins de voto em 86 das 197 mesas. Mais: o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) anunciou na sexta-feira que eliminou um vírus que tinha sido instalado nos servidores da Comissão Central de Eleitores com o intuito de destruir os resultados eleitorais.

Mas o primeiro-ministro Arseni Iatseniuk está confiante e, de facto, as notícias da última semana sobre a monitorização do processo eleitoral são encorajadoras para Kiev. O Instituto Nacional Democrático, sediado nos EUA, enviou para o país uma delegação de observadores que já divulgou as primeiras conclusões: “O quadro jurídico, a capacidade administrativa e a vontade política sugerem que o ato eleitoral vai ser viável na grande maioria das assembleias de voto”, escreve o Washington Post, acrescentando que os candidatos têm tido oportunidades iguais de fazer campanha e que não há relatos de pressão eleitoral. O Gabinete para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR), a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), assim como o Parlamento Europeu, também enviaram delegações para monitorizar a votação.

Neste momento “tudo indica que a eleição vai ser legítima”, remata Anastasyia. “Mas é difícil prever a situação porque de certeza que vai haver muita provocação e tentativas de boicote ao longo do dia”, disse a jornalista ao Observador. Resta saber até que ponto vai ser considerada legítima uma votação onde duas grandes regiões como Donetsk e Lugansk terão sérias dificuldades em votar.

‘Guerra por procuração’

A analista política Amanda Paul é clara na defesa da tese de que foi Moscovo quem provocou o conflito ucraniano e que, como tal, Moscovo também quer ter uma palavra a dizer no rumo das eleições. “A Rússia usou a defesa de uma minoria étnica – os ucranianos falantes de russo – como pretexto para ter influência no país”, diz ao Observador, acrescentando que o Kremlin “pintou imagem de um governo interino fascista”, que fez muitos cidadãos do leste acreditar. Ou seja, resume Amanda Paul, “encomendou uma guerra na Ucrânia por procuração”.

Esta é, de resto, a visão mais ou menos comum à corrente ucraniana pró-europeia, que diz que Putin é o principal beneficiário da crise no país vizinho. “A Rússia não quer perder o controlo e a influência sobre a Ucrânia e por isso faz tudo o que pode para interferir nas regiões que são menos estáveis e mais fáceis de persuadir”, reforça a jornalista ucraniana Anastasyia Borynets.

Amanda Paul vai mais longe e diz mesmo que o Presidente russo quer garantir que os seus interesses são tidos em conta na altura de a Ucrânia tomar decisões – quer seja em termos internos, como em atos eleitorais como o de hoje, quer seja em termos de política externa. “Putin quer garantir que a Ucrânia nunca se vai juntar à União Europeia e à NATO”, diz.

Prova disso é a visita deste domingo do primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, à península da Crimeia, que Kiev considerou uma “provocação deliberada”, com vista à “desestabilização da situação na Ucrânia”, escreveu o Ministério dos Negócios Estrangeiros em comunicado. Um gesto que, diz Kiev, contraria o “desejo expresso pelo presidente Vladimir Putin de que as eleições na Ucrânia se desenrolassem com serenidade”.