[Esta entrevista foi originalmente publicada em janeiro de 2018 e atualizada em 20 de novembro de 2019 depois da distinção da Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, com a segunda estrela Michelin]
Não engulas a comida sofregamente, não uses a faca ao contrário, não sorvas o esparguete, não brinques com o arroz, não apontes com o garfo, não chapinhes a sopa com a colher, não isto, não aquilo. O estar à mesa para uma criança é uma série de frases feitas, todas começadas por não. Todas? Não. Há uma que nos deixa ainda mais pensativos: mastiga bem os alimentos. Aquilo do mastigar é um ensinamento para a vida. Que nunca o exercemos, na verdade. Porque a comida, saiba muito bem ou só assim-assim, desliza boca abaixo em três tempos. É preciso esperar pouco mais de 40 anos para perceber a cena do mastigar bem os alimentos. Para tal, temos de ir ao DOC.
Ao médico? Errrrrr, ao DOC (Degustar, Ousar e Comunicar), o restaurante português mais bem cotado no ranking mundial do TripAdvisor em 2017, com um sensacional 17.º lugar. Só a viagem de carro pela EN 222 é um regalo para os olhos – então se for em Novembro, os vermelhos e os amarelos de Outono abraçam os montes com uma beleza inaudita. Bem encostado à margem do Douro, o restaurante é um belíssimo projeto do arquiteto Miguel Saraiva e está assente em estacas de madeira ao longo do rio. Sentados na esplanada, a paisagem é deslumbrante. Seja para o rio, seja para as vinhas. E quando o comboio passa, às vezes a apitar, é um cenário idílico. E ainda nem sequer começámos a brincar com os talheres.
À nossa espera, Cristina Canelas. Dona de um vozeirão faz favor, a mulher do chef Rui Paula recebe-nos com um sorriso aberto e uma série de recomendações. Sobre tudo e mais alguma coisa, a começar pela mesa ideal (a mais próxima do rio, que maravilha) e a acabar na escolha do menu. Que inclui relíquias como ravioli de rabo de boi, aipo e vieiras, arroz carolino de moluscos e peixe, lombinho de vitela Maronesa com pastelão de salpicão mais a sobremesa de chocolate com crocante de caramelo e avelã. Acreditem, é uma viagem nunca vista, jamais sentida. O almoço demora mais de hora e meia, porque mastigamos bem mas bem. Finalmente. O sabor da comida, conjugado com a harmonização dos vinhos, é tão distante do habitual que nos custa dar aquele passo final do engolir. Pura e simplesmente, desejamos continuar a mastigar ad eternum enquanto desfrutamos da vista. Que aventura dos sentidos.
É imediato, o estímulo lançado pelo nosso cérebro: temos de entrar na cozinha e elogiar aquela malta evoluída, jovem e dinâmica. Feitas as apresentações, só nos falta conhecer o chef. Rui Paula, de seu nome. De momento, está de viagem em Angola. Uma troca de e-mails facilita o encontro para 14 Dezembro, já em Lisboa, no Hotel Tivoli, onde Rui Paula trabalha como consultor do restaurante Terraço, no amplo 9.º andar. Mal o elevador faz plim, as portas abrem-se e o Tejo espreita lá ao fundo. Um passo em frente, outro à esquerda e já estamos numa sala alcatifada, na companhia do sorridente Rui Paula. É mesmo assim, o homem é generoso. Como a mulher Cristina. Fala muito e bem. E sabe ouvir. As perguntas atropelam-se umas às outras. Afinal, a curiosidade é mútua. Sobre o restaurante em si, sobre o sabor da comida, sobre o rio Douro, sobre as cores das vinhas, sobre futebol. Hein? Oh yeah, futebol. Estamos a 14 Dezembro, dia de Porto-Vitória para a Taça de Portugal.
Tudo bem, chef?
Então como é, ganhamos esta noite?
Em casa é uma obrigação.
Estamos bem, é preciso continuar assim.
É portista desde sempre?
Sempre.
De ir ao estádio?
Com esta vida, entre viagens para cá e para lá, é mais difícil.
E antes?
Ia com o meu pai.
Outro portista?
Siiiiiim, sim. Muito.
Que jogadores do FC Porto havia nesse tempo?
Pavão. É o primeiro que me vem à cabeça. Falava-se muito dele, era um jogador icónico, sabes?
Já não o apanhei.
E eu ainda era muito novo, mas lembro-me de que o pessoal ficava em sentido com as jogadas dele. Também me lembro do Oliveira.
Craque.
Uma vez, numa tarde em que os golos não entravam, ele foi trocar de chuteiras à linha lateral e, de repente, marcou logo. Tenho mais memórias.
Quem?
Cubillas, por exemplo. Que jogador. De levantar o estádio.
E mais recentemente?
Mourinho. O Mourinho levou toda a gente do FC Porto ao estádio. Sabes aquela fatia pequena que não ia ao estádio?
Ya.
Ele levou-os a todos. O Mourinho revolucionou a cidade e falava-se dele em qualquer sítio. Não sou muito de futebol e, mesmo assim, ouvia falar do Mourinho em todo o lado. Num café, num restaurante, até numa esquina. Nessa época, até ia ao estádio com muita frequência. Nos jogos europeus, digo. Lembro-me de uma noite em que perdemos 1-0 com o Panathinaikos e o Mourinho chegou-se ao pé do treinador deles para lhe dizer que ainda estavam no intervalo da eliminatória. Na Grécia, 2-0 após prolongamento. Passámos à meia-final da Taça UEFA. Ele dizia e fazia, era mágico. Quem é que não gosta disso? É a mesma coisa que eu abrir um restaurante e dizer que vou encher a sala todos os dias durante três anos. Passados três anos, o restaurante está realmente cheio e era conhecido mundialmente. As pessoas olhariam para mim e pensavam ‘mas este gajo é adivinho ou quê?’ Tudo depende da personalidade e o Mourinho tem esse atributo muito desenvolvido. E isso foi notório quando chegou ao Chelsea, em Inglaterra. Posto isto, vamos falar sobre o quê?
Sobre o DOC. Antes de mais, aquela estrada é uma maravilha.
Nem me fales. Vim de lá há dois dias e ainda estou a rever o caminho. Muito bonito mesmo. O Douro tem uma paisagem única, sabes? Em constante mutação. Eu conheço aquilo de trás para a frente e acredita que há sítios em que passo frequentemente e ainda hoje fico admirado com a cor ou com a vista. Nem imaginas quando estou três ou quatro meses sem ir lá.
Então?
Atravessas o Douro, sobretudo se vieres do Pinhão, e só tens vontade de parar o carro para contemplar aquele cenário. Se estiver tudo bordeaux, como agora, é uma delícia.
Bom adjetivo. O almoço no DOC foi uma experiência inesquecível.
Devias ir lá agora, temos novas mesas e mais candeeiros.
Sempre a investir.
Se temos dinheiro, temos de trabalhar para melhorar o espaço. Quero dizer, há três mandamentos obrigatórios para o dinheiro: nunca deve faltar o dinheiro para pagar o ordenado aos funcionários, nunca deve faltar o dinheiro para o pagamento das faturas dos fornecedores e nunca deve faltar o dinheiro para investirmos. Se o DOC está a ter sucesso, e felizmente está, temos de criar melhores condições ainda para os empregados porque isso faz parte de uma cadeia natural dos acontecimentos.
Como?
Se os empregados estão contentes, o restaurante funciona melhor. Se o restaurante funciona melhor, os clientes sentem-se mais atraídos. Se os nossos clientes sentem-se mais atraídos, chamam mais clientes. Se há mais clientes, a qualidade da nossa cozinha sobe obrigatoriamente. É o efeito dominó, do mais positivo que há.
[de repente, entra um rapaz na sala com uma bandeja na mão: Rui Paula interrompe a conversa e ‘olha o Flores, tudo bem Flores?’ O jovem sorri meio encavacado e o chef continua a jogada: ‘O Flores trabalha aqui comigo e vai ser um grande funcionário’]
Como é que surgiu o DOC?
Há ali no Pinhão o Hotel Vintage e comecei a fazer amizade com o diretor chamado Manuel Marques. Foi ele quem insistiu comigo para comprar um rabelo para fazer os passeios no Douro. Comprei um. Depois, dois. Depois, três. Sou muito assim quando me meto em negócios. Durante os passeios, passava por aquela zona do DOC e aquilo vazio.
Nada?
N-a-d-a. Só o edifício. E não é como agora, mais pequenino, só com o passadiço.
E então?
Abriu-se um concurso, eu entrei e, pronto, ganhei.
Há quanto tempo?
Há dez anos. E já sofreu obras, obras e obras. Tem sido um trabalho notável.
Ainda se lembra do primeiro dia?
Então não me lembro? Foi como passar de um Fiat para um Porsche, porque passei da comida tradicional do Cêpa Torta…
Cêpa Torta?
O meu primeiro restaurante.
Onde?
Em Alijó, onde tudo começou.
Em que ano?
Em 1994, tinha 27 anos. Abri o Cêpa Torta com uma funcionária da minha avó, a Graciete, que ainda está lá a gerir o restaurante. E fazia tudo o que era comida tradicional: polvo, língua, bacalhau, pataniscas, costeletas de cordeiro, arroz de feijão, arroz de tomate, feijoadas, favas.
Tudo diferente no DOC?
O chip mudou, claro.
Com bons resultados imediatos?
Aquilo deu que falar desde o primeiro dia, graças a um belo trabalho de marketing.
Só?
Também havia o fator surpresa, quem é que acreditava em montar uma coisa daquelas no Douro? Só um louco, eheheheh. Houve um dia em que convidei 40 jornalistas para um almoço e foi serviço à carta, nada de menus. Julgava que ia ter só 20 ou 30 clientes.
Só que?
Tive 90.
Noventa?
Apareceram de todo o lado, nem imaginas. E eu mantive para os jornalistas o serviço à carta, claro. Foi um dia memorável, porque tudo nos saiu bem.
E os jornalistas?
Ficaram parvos da cabeça, como quem diz ‘temos de falar bem deste restaurante’, eheheheh. Deu-me um prazer imenso e, ainda, fama nacional.
E internacional, também. Lembro-me de ver fotografias com Sting e Bono.
Ahhh, esse é o corredor da fama, eheheheh. Só que nenhum deles foi ao DOC. O Sting foi ao DOP, no Porto, e o Bono à Casa de Chá, em Leça.
E que tal?
Tudo gente fina, como tu e eu, eheheheheh. O Bono foi engraçado porque o pessoal da Casa de Chá entrou numa euforia crescente e queriam todos um autógrafo. Epá, não ia pedir ao Bono um autógrafo para toda a gente.
E então?
Resolvi fazer um concurso com papelinhos, sem a minha participação, e só sete pessoas seriam contempladas. Fiz e tal, depois dirigi-me ao Bono, todo nervoso. Pedi-lhe e sabes o que ele fez?
Nem ideia.
Assinou os sete, na boa, e ainda fez um desenho diferente para cada um deles. Foi de uma humildade incrível, um gesto insuperável.
Aprende-se com clientes?
Muito. Pessoas que chegam ali e dizem-me que isto combina melhor com aquilo e por aí fora. Há pratos que tu julgas típicos de uma forma e, de repente, alguém te dá uma novidade surpreendente.
Exemplos?
Exemplos? Uma rapariga que trabalha comigo no DOC disse-me há pouco tempo que o leitão que ela come em casa, naquela zona do Douro, é acompanhado por grelos mais batata cozida, e não frita. Pensas nisto e até tem lógica, porque a gordura do leitão já é muita e se lhe juntas batatas fritas [Rui Paula faz uma careta engraçada]. Com batata cozida, é mais aconchegante para o estômago.
E como é que o chef se faz chef?
Demorou, sabes? Andei num seminário em Beja até ao 9.º ano. Depois, fui para o Liceu Alexandre Herculano no Porto e andei no marketing, só um ano.
Só?
Fui vendedor de automóveis, fui vendedor de máquina de sumos e tabacos e ainda tomei conta de propriedades da minha avó. Só depois é que apostei na restauração.
Assim do nada?
Lancei-me de cabeça porque cresci num ambiente de lavoura, entre vegetais, porco, vitela e essas coisas boas, e cresci a ver a minha avó e a minha mãe a cozinhar. Os ensinamentos estavam lá, era preciso executá-los.
E o chef executava?
Quem cozinhava para os amigos? Era eu. Daí à prática diária, foi um passo. Fiz-me relações públicas, abri o Cêpa Torta e comecei a trabalhar.
Deu logo resultado?
Demorou a arrancar e depois começou a ser falado. De repente, tornou-se economicamente viável, bem viável até. Estamos a falar de um período ainda antes da mudança para o euro. Muito viável.
E quer-se sempre mais, não é?
Em tudo na vida, há um momento em que precisas de saber o que queres: se ficamos por aqui, se queremos mais? Se seguisse na cozinha, não podia ficar em Alijó. Para seguir cozinha, tinha de saber mais porque não sabia fazer uma terrina de foie-gras, porque não sabia amanhar um peixe, porque não tinha horizontes para pegar num milho e fazer um prato com quatro qualidades de milho.
Isso parece-me uma trabalheira.
Esse conhecimento não se consegue só através de leituras, tens de aprender a fazer. Como não tinha curso de cozinha, se bem que tivesse bem desenvolvida a parte da prática e do sabor através da experiência caseira com a avó e a mãe, faltavam uma série de coisas como a técnica dos cortes, dos molhos, ti ti ti tiri tau tau tau.
Qual foi o passo seguinte?
Aprender nas cozinhas, tanto cá como fora de Portugal.
Onde, por exemplo?
O último foi o Celler Can Roca, eleito o melhor restaurante do mundo em [Rui Paula fecha os olhos, debruça-se sobre a cadeira e faz contas de cabeça]. Este ano, foi o Eleven Madison Park. Há um ano, foi a Osteria Francescana. Há dois, foi o Celler Can Roca, isso, o Celler Can Roca foi o melhor do mundo em 2015.
Uauuuu. E já foi comer a esses restaurantes?
Este ano, fui ao Eleven Madison Park.
Vale a pena?
Vale, claro. Há toda uma experiência por trás, imperdível.
Só não tem a vista para o Douro.
Eheheheh, isso é verdade. Tem para o Central Park, vá.