Hoje decidimos lembrar aquele Campeonato do Mundo na Coreia e Japão. Aquele de má memória. Um conselho para os leitores: inspirar, expirar, inspirar, expirar. Vamos lá enfiar o dedo na ferida…
As coisas já tinham começado tremidas no estágio em Macau, quando Daniel Kenedy acusou positivo no controlo anti-doping. O canhoto defendeu-se que tomou uma substância para perder peso. Hugo Viana seria o substituto. Dessa estadia em Macau, fica uma das grandes intervenções de um guarda-redes português. Lembra-se das defesas de Vítor Baía contra a China? Veja aqui. Portugal venceu com golos de Nuno Gomes e Pauleta (2-0).
A seleção de António Oliveira estava inserida num grupo acessível (Coreia do Sul, Estados Unidos e Polónia) mas conseguiria estragar tudo. A estreia foi contra os americanos, uma equipa treinada por Bruce Arena. Aos 36’, já estava 3-0 para os norte-americanos. Parecia mentira. Os portugueses estavam perdidos, sem chama. Desligados. Beto ainda reduziu antes do intervalo e deu algumas esperanças. Paulo Bento, o atual selecionador nacional, entrou aos 69’ e o golo lusitano surgiria dois minutos depois, com uma ajudinha de Jeff Agoos. Oliveira lançaria ainda Nuno Gomes para o lugar de Rui Costa mas o marcador não sairia do 3-2.
Seguia-se a Polónia. Era obrigatória uma resposta lusa. Um murro na mesa. Paulo Bento saltou para o onze no lugar de Rui Costa. Pauleta marcou cedo (14’) e serenou os ânimos. Já com Rui Costa em campo, que havia entrado para o lugar de João Vieira Pinto, Pauleta marcaria o seu segundo e terceiro golos. Já muito perto do final, Rui Costa fecharia a contagem: 4-0.
Bom, agora é que é. A máquina estaria, finalmente, oleada. Bastava um empate contra a Coreia do Sul de Guus Hiddink para seguir em frente. Não parecia a tarefa mais espartana. Os coreanos estiveram vários meses juntos antes da competição e os resultados saltaram à vista. Era necessário dar uma boa imagem do país. O treinador era de topo. Jogadores como Park Ji-Sung, Lee Young-Pyo e Ahn Jung-Hwan começavam a dar nas vistas. A equipa estava muito bem organizada e os jogadores tinham raça e velocidade. A oposição era mais forte do que a teoria e os rankings sugeriam. Apesar de tudo isto, o maior adversário de Portugal não seria Hiddink nem os coreanos com pilhas que nunca mais acabavam… mas sim os próprios jogadores portugueses.
O onze eleito de António Oliveira foi: Vítor Baía, Beto, Fernando Couto, Jorge Costa, Rui Jorge, Petit, Paulo Bento, Sérgio Conceição, João Pinto, Luís Figo e Pauleta. Os primeiros a tentar a sorte foram os coreanos, mas o remate saiu fraco. Aos 27’, o momento que ditaria a sorte dos portugueses no Campeonato do Mundo. Num momento de precipitação pura, Petit foi o primeiro a tentar roubar a bola de carrinho, depois foi Paulo Bento, sem sucesso, até que João Vieira Pinto entrou em ação. O então jogador do Sporting lançou-se em carrinho e derrubou Park Ji-Sung com uma entrada muito feia por trás. Angel Sánchez, o árbitro argentino, não pensou duas vezes: cartão vermelho direto.
O pior é que este filme ainda não tinha acabado. João Pinto ficou fora de si. Paulo Bento, Rui Jorge e Petit juntaram-se ao número 8 nos protestos. Jorge Costa empurrava dali para fora o jogador que acabava de ser expulso. Fernando Couto juntava-se à barafunda. Mas algo se tinha passado: o árbitro estava de boca aberta e não tirava os olhos de João Pinto.
No final, soube-se através do relatório do árbitro que João Pinto tinha cometido uma agressão. O argentino pediria depois ao médico da FIFA para certificar o hematoma. “O João Pinto deu-me um soco no estômago, do lado esquerdo, debaixo das costelas”, afirmou depois Sánchez em declarações à Antena 1. A Comissão de Disciplina da FIFA decidiria suspender o futebolista por quatro meses. “As evidências às quais a FIFA já teve acesso, como o relatório do árbitro da partida, do fiscal do jogo e do inspetor de juízes, indicam que João Pinto, após receber o cartão vermelho, deu um soco no estômago do juiz Angel Sánchez”, podia ler-se numa mensagem do Comité Disciplinar. O regresso estaria marcado para 17 de outubro.
Dias da Cunha, o então presidente do Sporting, defendeu o seu jogador na altura: “A curtíssima conversa que tive com João Pinto e tudo aquilo que eu já tinha visto e continuo a ver serve para reforçar a minha convicção de que o João Pinto está completamente inocente em relação à acusação do sr. árbitro de agressão física. Não houve e não vai ser possível demonstrar que houve uma agressão física.”
Voltemos à Coreia. Jogar com dez durante uma hora era complicado mas o apuramento continuava no horizonte. Pauleta era o jogador mais perigoso. Primeiro, chutou por cima quando surgiu isolado. A seguir, em peixinho, questionou as leis da lógica e cabeceou de costas para a baliza. Fez lembrar aquele cabeceamento de Marcelo (ex-Tirsense) ao serviço do Benfica. Lee Woon-Jae voltou a negar o golo a Pauleta e a partir daí os coreanos criaram mais perigo. Pelo meio, Beto veria o segundo amarelo e Portugal ficaria reduzido a nove unidades. Não seria uma tarefa fácil segurar aquele empate. E não foi. Aos 70′, Park Ji-Sung matou a bola no peito já dentro da área, enganou Sérgio Conceição e rematou por entre as pernas de Vítor Baía, 1-0. Nuno Gomes ainda teria uma perdida incompreensível já muito perto dos 90′. Já não havia nada a fazer. Portugal ia fazer as malas e regressar para junto dos seus. Com uma mão cheia de nada. Pobres, no espírito e no orgulho.
Já em Portugal, João Pinto divulgou um comunicado no qual agradeceu o apoio do Sporting, da Federação e demais amigos e familiares. O documento foi lido por José Eduardo Bettencourt, administrador executivo da SAD sportinguista, na presença do número 25 leonino. Antes, durante e depois da conferência, João Pinto não disse uma palavra sobre todo o caso.
A seleção, essa, teria grandes momentos pela frente. Scolari entraria e, ao ritmo do samba, colocaria Portugal no topo do mundo. Os portugueses teriam, no entanto, um triste fado na final do Euro-2004 — uma verdadeira tragédia grega. No Mundial-2006, os lusos voltariam a cair nas meias-finais de um Campeonato do Mundo, tal como acontecera em 1966.
Então e João Pinto? Voltaria ao ativo com um golo e vitória no Restelo (2-0; Quaresma marcou o segundo), numa noite de outubro, mas nunca mais voltaria a vestir a camisola das quinas. O seu ato irrefletido não mereceria perdão. Hoje é o vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol. A vida dá muitas voltas…