Apesar do tema, esta não é uma conversa de merda. Giulia Enders fala como escreve, de uma forma ligeira que descomplica o que a ciência tende a complicar. É simpática, divertida q.b. e não mostra qualquer desconforto quando o assunto são os intestinos. A postura não é, à partida, a de quem aos 25 anos é autora de um bestseller já traduzido em 24 países e que vendeu 1,3 milhões de exemplares só no país que a viu nascer (Alemanha).
O livro A Vida Secreta dos Intestinos (Lua de Papel) chegou esta terça-feira, 28 de abril, ao mercado nacional, motivo pelo qual o Observador se encontrou com Enders para uma conversa atípica. Formada em gastroenterologia na Universidade Goethe, em Frankfurt, a jovem médica dedicou-se a um dos órgãos mais subestimados do corpo humano, aquele que facilmente desperta vergonha alheia e é lembrado apenas quando a vontade aperta.
Mas acontece que há mais sobre os intestinos do que simplesmente levá-los connosco à casa de banho.
O que faz uma rapariga na casa dos 20 anos ganhar interesse por esta área?
Quando tinha 17 anos apanhei uma doença de pele muito estranha e fiquei surpreendida porque os médicos apenas me davam pomadas para pôr nas feridas. Na altura pensei “vou estar neste corpo toda a vida e não sei, na verdade, como funciona; sei como conduzir um carro, mas não sei quase nada sobre isto”. Quando comecei a ler sobre o assunto fiquei chocada: percebi que os intestinos são um órgão com muita responsabilidade, que faz imenso. São parte do nosso metabolismo e representam dois terços do nosso sistema imunitário. Quando li sobre os intestinos percebi que o órgão podia causar doenças de pele. No meu caso, a minha condição alterou-se quando mudei de dieta, pelo que já não como glúten e consumo muito pouca lactose. A minha pele ficou boa outra vez. Mas não penso que esta seja uma solução universal. As doenças têm sempre mais elementos — há os genes e o ambiente, entre outras coisas.
Estamos a tratar mal os nossos intestinos?
Sim, mas não lhes queremos mal. Não somos pessoas más, apenas não sabemos [como tratá-los], porque com o intestino há tantas coisas que não vemos. Por isso, fazemos coisas erradas. Agora, com a industrialização e a comida processada, maltratamos os nossos intestinos porque não lhes damos as bactérias saudáveis de que precisam e que são capazes de os nutrir, como se colocassem, por dentro, loção nos intestinos. Durante o dia estamos tão ligados ao computador e ao cérebro que nos esquecemos que temos algo mais agarrado ao corpo. Às vezes é muito bom ter o intestino nas nossas mentes, até porque as pessoas tendem a ignorar quando têm dores de barriga. E isso não se devia fazer.
A sociedade é muito pudica em relação aos intestinos?
Não lhe chamaria pudica. Eu compreendo, eu era exatamente igual há alguns anos. Penso que é uma reação normal tendo em conta um órgão que basicamente conhecemos por defecar, por irmos à casa de banho. Então, porque pensaríamos que é o melhor herói de sempre?
E é mesmo o melhor herói de sempre?
Para mim, é. Porque o efeito [de descoberta] foi tão forte. Quando apenas o conhecemos por defecar e, depois, descobrimos que faz todas estas coisas incríveis por nós e que, se trabalharmos juntos, uma pessoa pode-se sentir tão bem… Acho que isso mostra um grande potencial. Eu gosto realmente dele.
Mas não há uma certa vergonha em falar dos intestinos?
Sim. Isso é muito normal, mas eu vejo frequentemente, junto dos meus leitores e audiências, que a vergonha vai-se embora muito depressa se apenas tivermos mais conhecimento. E o que é bonito é que ganhamos uma boa relação com os nossos intestinos. Às vezes tem um impacto mesmo bom.
O órgão também precisa de ser mais discutido entre a comunidade científica?
Sim, mas felizmente estamos a chegar a esse ponto. Alguns médicos percebem agora a questão dos probióticos. No que diz respeito às crianças, pode ser muito saudável tentar que elas consumam os probióticos em vez de tomar medicação que possa ter efeitos secundários. Mas o mesmo se passa com pessoas mais velhas com problemas de digestão — é bom que os probióticos estejam a chegar cada vez mais aos consultórios dos médicos. E é importante que se faça mais pesquisa sobre o assunto.
Quando diz probióticos…
Probióticos são bactérias vivas que, estando nos intestinos, trazem benefícios à nossa saúde. Podem estar na comida que ingerimos, especialmente na comida fermentada — fermentar a comida é, na verdade, uma das coisas mais antigas que os humanos fazem para preservar os alimentos e, apesar de termos todas estas tecnologias, continua a ser a forma mais saudável de o fazer. Os probióticos são realmente bons para nós. Usámo-los durante anos e deixámos de os usar há algumas décadas, numa altura em que começaram a surgir algumas doenças da civilização.
Apesar de serem subestimados, os intestinos são um órgão capaz de nos influenciar a vários níveis. Como assim?
Os micróbios dos intestinos, segundo se pensa, são importantes em algumas áreas. Uma delas está relacionada com o metabolismo. Percebeu-se que havia diferentes tipos de floras intestinais. Pessoas que eram obesas tinham certos tipos de bactérias ou tinham menos diversidade — podemos dizer que tinham um intestino mais limpo, mas na verdade apenas era menos diverso e isso fazia com que ficassem mais vulneráveis a doenças metabólicas, como diabetes e elevada pressão arterial. Todas essas coisas ainda estão a ser investigadas.
A segunda parte a ter em conta é que os intestinos podem influenciar o nosso sentido de humor. Agora estou diferente, já não penso que a minha vida é estúpida, penso “se calhar é melhor ir beber um chá e comer algo ligeiro para fazer bem a digestão”. Penso também no que comi na noite anterior. É uma questão de ter mais consideração pelos ritmos — podemos descobrir se somos pessoas com digestões lentas ou rápidas. E talvez não seja boa ideia comer algo dois minutos antes de irmos dormir: as pessoas podem testar por si próprias se têm pesadelos depois de comer algo pesado antes de ir dormir. Não gosto de dizer às pessoas para não comer nessas situações, mas para tentar perceber o que funciona.
Então os intestinos podem fazer com que pensemos de forma mais positiva sobre a vida?
Essa é a hipótese, mas ainda não está provada. Mas temos dados científicos muito fortes nesse sentido, ainda que estejamos numa fase de testes.
“Quem sofre de síndrome de intestino irritado sente muitas vezes uma pressão ou gargarejo desagradáveis no abdómen, tendendo ora para a diarreia ora para a obstipação. Os afetados sofrem também frequentemente de ansiedade ou depressão acima da média. (…) As possíveis causas de semelhante estado podem ser minúsculas infeções (as chamadas micro-infeções), uma flora intestinal inadequada ou intolerâncias alimentares não diagnosticadas, todos estes problemas verificados em permanência durante um largo período de tempo.”
Em A Vida Secreta dos Intestinos, pág. 132
No livro escreve que andamos a ir à casa de banho de forma errada, isto é, que defecamos de forma errada.
Há um músculo que está à volta dos últimos centímetros do intestino grosso que, na posição sentada ou em pé — as posições de trabalho que temos há mais de 400 anos –, aperta os intestinos como um laço, empurrando-o numa certa direção e formando uma dobra. Este músculo faz com que os nossos esfíncteres não tenham de ter o trabalho todo. Quando queremos ir à casa de banho de uma forma mais fácil — e digo isto considerando pessoas que têm dificuldade em ir ao WC — podemos ficar de cócoras ou podemos colocar um banco para os pés quando nos sentamos na sanita. Desta maneira o músculo fica relaxado porque a última parte do intestino, os últimos centímetros, está aberta e direita. É mais fácil. Numa floresta não se ficaria tentado a sentar-se, mas sim a ficar de cócoras.
Diz também que os intestinos têm um cérebro.
Não é assim tão rebuscado. O cérebro é um órgão muito isolado e precisa de saber o que se passa no resto do corpo, precisa dessa informação. Os intestinos têm informação muito válida porque têm a segunda maior coleção de neurónios depois do cérebro. E com todos esses neurónios podem saber, por exemplo, que tipo de hormonas estão no sangue, como estão os micróbios, etc. Podem reunir este tipo de informação e comunicá-la ao cérebro, que tem em conta a informação para criar um estado de espírito. As pesquisas mais recentes indicam que os intestinos têm um papel muito importante nesse estado de espírito.
O que é que as fezes dizem sobre nós?
Falemos da obstipação, por exemplo. As pessoas pensam que a obstipação é ir poucas vezes à casa de banho, mas tem que ver sobretudo com a consistência das fezes — se são muito duras, e porque temos de fazer pressão, podem criar hemorroidas e, consequentemente, pequenos estragos. Podem até criar varizes nas pernas. Há quem relacione com isso um AVC. A pressão é uma manifestação má e, se calhar, ela deriva do estilo de vida, mas também pode ser uma condição presente desde nascença caso a pessoa seja muito lenta a fazer a digestão. Em causa estão pessoas que comem muito pouca fibra (basicamente pão branco) ou que não bebem água o suficiente. Mas também está relacionado com os probióticos.
O que mais podemos não saber sobre os nossos intestinos?
Não sabemos, por exemplo, como os intestinos funcionam quando vamos à casa de banho, isto é, não sabemos que há dois esfíncteres — apenas temos conhecimento que há um exterior que podemos controlar. Gosto muito do facto de haver dois, porque o primeiro tem uma ligação ao cérebro, pelo que “percebe” se podemos ir à casa de banho e se vamos incomodar alguém, enquanto o interior [o segundo] não tem qualquer ligação/conexão aos ouvidos ou aos olhos, a nada. Apenas está conectado com o interior do nosso corpo, pelo que se preocupa somente com o que sentimos a esse nível — se há algo que precisa, ou não, de sair. O objetivo do esfíncter interior é fazer com que eu me sinta bem. Não se preocupa com mais ninguém. Gosto do processo em que ambos os esfíncteres têm de funcionar em conjunto. Isto mudou-me. Antes nunca conseguia ir à casa de banho fora da minha casa, agora estou muito diferente porque o esfíncter interno foi promovido — finalmente há alguém que apenas pensa em mim e que me diz que devo ir à casa de banho.
Tem algum conselho para tratar melhor os nossos intestinos?
O primeiro conselho é mesmo conhecer melhor os nossos intestinos, não aceitar uma dor de barriga ou a diarreia que aparece às vezes — ter noção de como é que os intestinos estão a funcionar. O segundo conselho é olhar para trás na casa de banho e ver o que produzimos. Não é preciso falar disso com os amigos, mas se se ignorar por completo é possível que não nos apercebamos de uma mudança pouco saudável. Ver se a consistência e as cores estão bem e, depois, puxar o autoclismo. Controlar as fezes de tempos a tempos é uma coisa básica. O terceiro conselho passa por alimentar bem os bons micróbios.
Já agora, como é que andar pelo mundo a falar de fezes?
Na verdade, é bom. É o meu assunto preferido. Eu gosto de falar sobre isso porque sinto que é muito importante. Sinto que, independentemente de onde vá, não interessa qual o país ou a pessoa, há sempre uma ligação muito humana em relação a isto. Porque é humano, todos nós o fazemos. E se soubermos mais sobre isso vamos sentir-nos melhor.