A Volkswagen deverá apresentar esta quarta-feira, 7 de outubro, o seu “plano abrangente” para resolver a grave crise da manipulação das emissões poluentes e, como reconhece o grupo alemão, “recuperar a confiança dos consumidores”. Até lá, e depois de terem sido disponibilizadas ferramentas para os proprietários dos carros do grupo Volkswagen saberem se o seu carro está afetado pelo kit fraudulento, o Observador entrevistou, por e-mailLuís Oliveira, sócio da firma de advogados Miranda & Associados para fazer um enquadramento legal das medidas que podem vir aí e, por outro lado, para conhecer melhor os direitos dos proprietários.

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Luís Oliveira, sócio da Miranda & Associados

Como devem os consumidores agir na defesa dos seus direitos como proprietários, quando confrontados com esta crise?

Perante uma conduta fraudulenta desta dimensão e gravidade, as reações individuais com base no direito dos consumidores são muito menos eficazes do que a pressão regulatória e da opinião pública sobre o Grupo Volkswagen, bem como a pressão sobre a sua cotação bolsista, que já levou o Grupo a perder cerca de metade do seu valor! Estou convencido de que a resposta do Grupo terá de ir muito além do cumprimento estrito das suas obrigações legais derivadas dos direitos dos compradores dos automóveis afetados.

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No entanto, considerando apenas o que se dispõe na lei – Decreto-Lei n.º 67/2003 – sobre vendas de bens de consumo desconformes, o regime seria o do direito à reparação sem encargos, para colocar as viaturas afetadas, que são as viaturas diesel com o motor EA 189, em conformidade com a lei (as regras Euro 5 de emissões, para as viaturas colocadas no mercado até setembro de 2015) e com as especificações contratuais.

E no que diz respeito ao meio-ambiente? Como deve a Volkswagen agir para retificar o facto de ter mascarado as emissões em até 40 vezes os limites legais, como foi noticiado nos EUA?

A circunstância de as viaturas afetadas terem andado a libertar muito mais gases nocivos do que o anunciado é de muito maior complexidade, a vários títulos. Por um lado, é necessário notar que as notícias de chegar a haver um múltiplo de 35 ou de 40, entre emissões medidas em condições reais e medições feitas com o software manipulador para ‘modo teste’, se referem e têm por base aos limites estipulados nas leis dos EUA, que são mais restritivas que as da UE em relação ao NOx [o óxido de azoto]. Por comparação com a norma Euro 5, as diferenças serão, por isso, de uma ordem de grandeza inferior e será sobre essa ordem de grandeza que se poderão fazer juízos de gravidade.

Por outro lado, a presença de qualquer dispositivo manipulador dos resultados dos testes é, em si mesma e independentemente dos efeitos que tenha, ilegal, à luz do Regulamento (UE) 715/2007 (já com várias alterações), o qual proíbe expressamente essa presença, deixando aos Estados-membros a fixação das sanções para o incumprimento.

No Artigo 3(10) define-se ‘dispositivo manipulador’ (defeat device) como qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo.

No entanto, a existência do ‘dispositivo manipulador’ e o resultado que ele permite de fazer homologar viaturas com níveis de poluição vários múltiplos acima do limite legal não faz o comprador da viatura suportar um dano ambiental direto. O que faz é causar através do uso desta um dano ambiental difuso, que o comprador suporta em medida sensivelmente igual à da generalidade das pessoas, da sociedade, pelo que aquele não tem, individualmente, direito a indemnização.

Níveis de poluição acima dos limites não fazem o comprador da viatura suportar um dano ambiental direto. Ele não tem, por aí, individualmente, direito a indemnização.

Mas o que protege alguém, legalmente, se para os carros passarem a cumprir os máximos de NOx o carro perder potência, aumentar consumos de combustível ou exigir trocas mais frequentes de filtro? Pode alegar-se quebra de contrato, porque o carro não tem a potência, consumos ou manutenção que foi informada quando o carro foi comprado?

Aí, sim, entendo que pode haver direitos indemnizatórios – para além do, e em acréscimo ao, direito à reparação para eliminação da desconformidade.

Estes direitos indemnizatórios são fundados em prejuízos efetivos que os compradores de viaturas afetadas possam suportar. Nestes podem, com facilidade, integrar-se os derivados da desvalorização do valor em usado (se ocorrer, como possa ser demonstrado, por exemplo, pela evolução das cotações reportadas nas revistas da especialidade), como seja em resultado de as viaturas, uma vez recondicionadas, passarem a apresentar potência inferior, ou maiores consumos, ou uma vida útil inferior dos motores, etc.

Ainda assim, estas são situações cuja tutela por via judicial é muito débil em Portugal, pois há uma tradição conservadora em matéria de exigência de prova do dano e, por isso mesmo, desproporcionada quanto à medida do ónus da prova. A pressão mediática será, certamente, mais eficaz para levar o Grupo Volkswagen a indemnizar os compradores.

A pressão mediática será, certamente, mais eficaz para levar o Grupo Volkswagen a indemnizar os compradores.

Mas, além desses danos diretos, podem ocorrer outros, tutelados pela lei das práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores (Decreto-Lei n.º 57/2008), que proíbe práticas como as ‘ações enganosas’, designadamente as que se baseiam em informações falsas em relação a vários tipos de elementos e que conduzem ou são suscetíveis de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo.

Aqui incluem-se informações falsas sobre as características principais do bem, como sejam as garantias de conformidade, as especificações e os resultados e as características substanciais dos testes ou controlos efetuados. Um dos efeitos deste regime é o direito a arguir a anulabilidade do contrato dentro de um ano após a cessação do vício que lhe serve de fundamento, um direito muitíssimo mais poderoso do que o derivado da garantia.

O facto de a maioria destes carros já estar fora da garantia de dois anos tem relevância para esta questão?

Legalmente, há que atender ao limite temporal do prazo da garantia, o qual pode ser de dois anos (mínimo nas vendas a consumidores) ou ser superior, por via contratual. Mas esse não é o único enquadramento legal relevante. Perante o comportamento fraudulento do Grupo Volkswagen, que nas relações contratuais com os compradores de viaturas afetadas, tem a natureza de dolo e de ‘ação enganosa’, estes manteriam o direito a pedir a anulação do contrato de compra e venda por um período indefinido, pois não se extinguiria enquanto o vício não fosse eliminado.

Mesmo fora deste campo das reações individuais, é insustentável que o Grupo se refugie no prazo das garantias. Sobretudo, porque, ainda que tal opção pudesse prevalecer na relação privada com cada cliente, corresponderia a manter em circulação viaturas que incumprem a normativa sobre emissões, ou seja, a continuar a causar dano ambiental em flagrante violação da lei. Seria insustentável que o fizesse.

É insustentável que o Grupo Volkswagen se refugie no prazo das garantias.

Em que circunstâncias as pessoas podem exigir um carro novo – que cumpra integralmente as regras, como foi noticiado como uma hipótese em cima da mesa na VW – ou, eventualmente, exigir o reembolso do valor pago?

Apenas se não fosse possível obter a conformidade através da reparação haveria direito à substituição ou a uma redução adequada do preço, ou mesmo à resolução do contrato, com devolução da viatura e, correlativamente, do preço pago.

Ou seja, desde que seja viável a reposição da conformidade legal e contratual por mera reparação, não existe o direito a exigir a substituição da viatura. Se o Grupo Volkswagen avançasse com tal política seria numa lógica de ‘controlo do dano reputacional’ e de recuperação da confiança do consumidor, não para satisfazer uma obrigação sua legal ou contratual.

Se o Grupo Volkswagen avançasse com tal política seria numa lógica de ‘controlo do dano reputacional’.

Última questão. O que acontece se alguém, por alguma razão, não quiser ou não puder ir com o carro à oficina? Pode ser penalizado de alguma forma?

Esta é uma questão muito interessante. Há uma ilegalidade, que é a praticada pelo Grupo Volkswagen, ao instalar um dispositivo (informático, por linhas de código) que é proibido. Na medida em que a – necessária, do ponto de vista das obrigações da Volkswagen – desativação desse mecanismo seja impossibilitada por inação do proprietário da viatura, este passa a circular com uma viatura que as autoridades (o IMT) sabem estar em situação de ilegalidade, bastando confrontar o VIN com uma listagem de viaturas recolhidas e reparadas, a solicitar às oficinas oficialmente autorizadas a reparar viaturas das várias marcas afetadas. Nestas condições, é de esperar que tais viaturas passem a ser reprovadas nas inspeções periódicas obrigatórias, por terem emissões acima das permitidas pela norma Euro 5.