“O Bloco de Esquerda faz 18 anos, mas não está a chegar à maioridade, porque esteve sempre nas maiores causas deste país”. Catarina Martins encerrava assim as comemorações do 18º aniversário do Bloco de Esquerda, celebrado num jantar-comício no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, com mais de duas centenas de militantes.

Pensado a partir dos escombros da derrota do “sim” no referendo pela legalização do aborto de 1998, para preencher um espaço à esquerda do PS que julgavam vazio. Imaginado, primeiro informalmente, à mesa do restaurante Oh! Lacerda, em Lisboa, conhecido pelo bife à “cortador”, onde Luís Fazenda (UDP), Francisco Louçã (PSR), Miguel Portas (Política XXI) e Fernando Rosas (independente) começaram a tentar perceber se havia um caminho que podiam trilhar juntos. As reuniões com maior formalismo aconteceram já na sede da Política XXI, na Rua Febo Moniz, uma perpendicular que une a Avenida Almirante Reis à Rua dos Anjos.

Em 1999, Fernando Rosas, Luís Fazenda, Francisco Louçã e Miguel Portas foram chamados a pôr as diferenças de lado e a “estratégia deu frutos”, notou a deputada bloquista. O primeiro sinal de aproximação veio de Luís Fazenda, então dirigente da UDP. Foi o coronel Mario Tomé, mais conhecido como major Tomé, que agilizou o encontro entre Fazenda e Fernando Rosas, então colunista do Público, que vinha defendendo um caminho comum à esquerda do PS. Era preciso deixar para trás um certo sectarismo que teimava em dividir as várias organizações políticas. Rosas fez depois a ponte entre Fazenda, Francisco Louçã e Miguel Portas. Para lá das diferenças que os separavam, os quatro entendiam-se num aspeto fundamental: o país precisava de uma alternativa socialista, feita em liberdade e crítica das experiências soviéticas e outras semelhantes.

A coligação entre as diferentes organizações políticas chegou a estar em cima da mesa, como admitem os fundadores no documentário Nasceu uma estrela, de Daniel Oliveira, então membro do partido, e Jorge Costa, jornalista e dirigente do Bloco de Esquerda, pensado para comemorar o 10º aniversário do Bloco. A decisão de avançar para uma integração mais efetiva foi, de resto, muito polémica dentro das organizações que vieram a formar o partido. As divergências, ainda assim, acabariam por ser ultrapassadas: a 28 de fevereiro de 1999, no Fórum Lisboa, acontecia finalmente a Assembleia Fundadora do Bloco de Esquerda.

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Estavam lançadas as bases fundamentais da “coisa”, mas faltava-lhe o nome de batismo e o símbolo. Chegaram a ser tentadas outras alternativas, como “Polo de Esquerda”, revela Daniel Oliveira nesse mesmo documentário. Não era muito “brilhante”. Sairia da cabeça do jornalista o nome definitivo, um misto de statement político e de jogada de marketing. Era preciso dar uma imagem de força e coesão e, ao mesmo tempo, assegurar que o partido não seria reduzido a uma sigla.

O símbolo do partido era outro problema. Foi aberto um concurso interno de ideias que tinha duas premissas muito claras: não podia ser uma estrela (símbolo do PSR), nem qualquer símbolo vermelho. A ideia vencedora acabou por resultar numa estrela vermelha. Mas havia uma diferença fundamental: era uma estrela humanizada, para transmitir a visão que o partido tinha do socialismo que pretendia para o país. Estava finalmente encontrada a identidade daquele conjunto heterogéneo de trotskistas, ex-maoístas, dissidentes do PCP e muitos militantes de esquerda sem qualquer filiação partidária.

Nascia uma estrela que se queria afirmar como uma ‘nova esquerda’ anti-capitalista, anti-conservadora, socialista, feminista e ecologista. Um partido que queria ser fraturante, contra-corrente, num país liderado por um primeiro-ministro socialista, mas assumidamente católico e conservador.

Propunha-se a ser a voz dos mais jovens, da comunidade LGBT, dos artistas e dos intelectuais. Queria afirmar-se como uma esquerda desempoeirada. Queria ser diferente, organizar a anarquia sem perder o ADN, mantendo-se fiel às raízes de radicais, de extrema-esquerda. Prova disso é que, apesar de todo o informalismo aparente, tenha disputado com o PCP o direito de se sentar o mais à esquerda possível no hemiciclo de São Bento, na cadeira onde se haviam sentado os deputados da UDP.

“Nunca deixámos que nos dissessem onde nos devíamos sentar ou como nos devíamos comportar”, lembrou Mariana Mortágua, outra das bloquistas que interveio no jantar-comício desta sexta-feira. O Bloco nasceu para ser anti-poder, embora hoje esteja bem no centro do arco da governação.

“O Bloco foi capaz de romper fronteiras” — até as suas próprias fronteiras — “de dizer coisas novas, de fazer coisas novas. Um partido jovem, que se quer jovem”, diria Alípio de Freitas, padre português que se fez revolucionário no Brasil e que acabou preso pela polícia política, o mesmo a quem Zeca Afonso dedicou uma música com o seu nome.

Em 2015, depois das eleições legislativas, fê-lo novamente, rompeu fronteiras. E o “muro” que o separava do PS (e do PCP) caiu. “O Bloco cumpriu o que prometeu e está a fazer a diferença no Parlamento”. “Ainda estamos a fazer a diferença e vamos continuar a fazer a diferença”, assegurou Mariana Mortágua.

Esse combate está “longe de estar terminado”, lembrou Catarina Martins, Enquanto “existirem mulheres a morrer por violência doméstica”, enquanto continuarem faltar direitos fundamentais, enquanto “existir racismo e discriminação”. Enquanto existirem essas batalhas por travar, para o Bloco, “ainda estará tudo por fazer”.

A ascensão, a queda e o renascer do Bloco

Acantonado entre um PS mais voltado para o centro do que para o eleitorado da esquerda e um PCP ortodoxo e conservador, o Bloco de Esquerda foi ganhando espaço na cena política portuguesa. As primeiras eleições a que concorreu (europeias em 1999), com Miguel Portas como cabeça-de-lista, serviram de teste ao que aí viria: meses depois de falhar a eleição para o Parlamento Europeu, o Bloco conseguiu eleger Francisco Louçã e Luís Fazenda para a Assembleia da República, depois de arrecadar cerca de 132 mil votos (2,46%).

Começava aí a presença do Bloco no Parlamento, um partido incómodo para os partidos do chamado arco da governação, que o rotularam de partido de protesto, e para o PCP, que o acusava de estar mergulhado num vazio ideológico. De resto, a relação entre bloquistas e comunistas foi sempre tensa, como contava aqui o Observador. Em entrevista ao Avante!, pouco depois da formação do Bloco, Carlos Carvalhas, então secretário-geral do PCP, chegou a descrever o Bloco como uma cópia mal amanhada do partido que dirigia: “Uma espécie de ‘esquerda por Lisboa‘ agora a concorrer no país”, sem “expressão a nível nacional, com salpicos de alguns independentes e propostas que são no essencial cópias das que há muito defendemos. Portanto, entre a cópia e o original é preferível escolher o original”, resumia.

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As eleições de 2002 e 2005 confirmaram a tendência de crescimento dos bloquistas no Parlamento, primeiro com três deputados e depois com oito. Nesse ano de 2005, o partido dava outro passo decisivo na sua consolidação: a 8 de maio, na IV Convenção do Bloco, Francisco Louçã era eleito coordenador do partido, um cargo criado nessa reunião magna.

Dois anos depois, em 2007, os bloquistas conseguiam uma das vitórias mais marcantes da sua história política: a vitória do “sim” no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez. Seguir-se-iam outras conquistas, estas mais recentes, como a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo género e adoção por casais do mesmo género. O partido das causas fraturantes tinha imposto com sucesso parte da sua agenda.

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Nas eleições europeias de 2009, os bloquistas atingiram novo resultado histórico, conseguindo eleger três eurodeputados: Miguel Portas, Marisa Matias e o independente Rui Tavares. O Bloco era um caso sério e confirmá-lo-ia nas eleições legislativas de 2009: 558 mil votos, 9,82%, 16 deputados. O melhor resultado da história do partido.

Os bloquistas ultrapassaram, pela primeira vez, a CDU e os comunistas não disfarçavam o mal-estar: “O crescimento do BE não é separável da hesitação ou recusa de muitos eleitores desiludidos com o Governo do PS em expressar um voto determinado pela exigência de uma efetiva rutura com a política de direita”, reagia o Comité Central comunista. Seria o último grande resultado eleitoral do Bloco até às eleições legislativas de 2015.

O ano de 2011 marcaria o período horribilis do Bloco de Esquerda. O ciclo de crescimento invertera-se. Mas o primeiro tiro no pé foi dado ainda antes, com o apoio à candidatura presidencial de Manuel Alegre nas eleições desse ano, que causou desconforto entre as algumas sensibilidades do partido. O chumbo do PEC IV de José Sócrates a precipitar a queda do Governo socialista e a espiral negativa dos bloquistas.

Menos de um mês depois do chumbo do PEC IV, Francisco Louçã recusou participar numa reunião, que considerava “inoportuna” com a troika. Era ao Governo, e não aos partidos, que competia negociar com os credores, justificava o partido. Os meses que se seguiram revelaram-se-iam desastrosos.

As eleições de 2011 reduziram a bancada parlamentar bloquista a oito deputados. De fora do Parlamento, ficaram figuras como José Manuel Pureza, José Soeiro, José Gusmão, Jorge Costa ou Helena Pinto. Louçã acabaria por assumir a responsabilidade por aquele resultado, reconhecendo que tinha sido um erro político não participar na reunião com a troika. Meses depois, deixava a liderança do Bloco, sugerindo uma solução bicéfala, com Catarina Martins e João Semedo ao leme. A 11 de novembro de 2012, os dois eram formalmente eleitos coordenadores do Bloco.

Os sinais de divergência começaram a surgir logo depois. Em 2013, novos desastres eleitorais, primeiro nas autárquicas, depois nas europeias. Os dissidentes multiplicavam-se. Daniel Oliveira, originário do Fórum Manifesto, batia com a porta, sem poupar Catarina Martins e João Semedo, pela tão propalada fobia aos entendimentos à esquerda, e Francisco Louçã, que acusava de promover um “certo culto da personalidade”. O Bloco, dizia então Daniel Oliveira, era “um fator de bloqueio, alimentando-se e alimentando o sectarismo“, apostado num “boicote premeditado a qualquer entendimento à esquerda” e mergulhado num “completo autismo“.

Seguiram-se-lhe Joana Amaral Dias, há muito afastada do partido, e Ana Drago, um dos rostos mais visíveis do partido, descontente com a dificuldade do partido em encontrar entendimentos à esquerda. Antes, em 2011, Gil Garcia, da corrente Ruptura/FER (Frente de Esquerda Revolucionária), já tinha abandonado o partido, exigindo uma aliança eleitoral com o PCP, que a direção rejeitou. E ainda há o caso do independente Rui Tavares, que se afastou do partido por incompatibilidades com Francisco Louçã. Ou José Sá Fernandes, o vereador lisboeta eleito com apoio do Bloco, que juntou forças com António Costa e que acabou em rutura.

Foi neste turbilhão que Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do Bloco, avançou contra Catarina Martins e João Semedo, na Convenção de 2014. O Bloco tremeu numa disputa cerrada pela liderança, cujo culminar foi o desenho de uma solução a seis em que poucos fora do partido acreditavam. Acabou por sobreviver, mesmo depois de terem surgido alternativas à esquerda, como o Livre/Tempo de Avançar, de Rui Tavares e Ana Drago, que se propunham a fazer aquilo que o Bloco sempre foi acusado de se ter recusado a fazer: convergências à esquerda e com o PS.

O resto da história é conhecido: contra todas as expectativas, os bloquistas alcançaram um resultado histórico nas legislativas de 2015, chegando aos 19 deputados. Lançou as bases de entendimento com o PS de António Costa e enterrou os machados de guerra com o PCP, ainda que a tensão que sempre marcou a relação entre os dois partidos não tenha verdadeiramente desaparecido. Desbloqueou-se e sarou as feridas internas. Aprendeu a andar na “geringonça”, ainda que nunca deixe de sublinhar as suas limitações.

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Hoje, com 18 anos de existência, o Bloco está no centro do poder e condiciona a governação socialista. Foi isso que Catarina Martins fez em declarações aos jornalistas à margem do aniversário do partido. Com Carlos Costa mais uma vez no centro do turbilhão mediático, a coordenadora bloquista pressionou António Costa a afastar o governador do Banco de Portugal.

“O Bloco de Esquerda já o disse várias vezes: não há condições [para o Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, se manter em funções]. Eu já perguntei ao primeiro-ministro num debate quinzenal quantas falhas graves do governador do Banco de Portugal é que precisamos até se perceber que está na altura de ele sair. Já houve várias falhas graves. Já era conhecido de várias comissões de inquérito e até as revelações recentes de investigação jornalística mostram que tínhamos razão quando o dissemos. E já temos essa posição há bastante tempo”, afirmou a bloquista.

Seja como for, e mesmo apontado todas as limitações da atual solução política, o Bloco não vai recuar, vão garantido os dirigentes do partido. Derrubado o “muro”, é preciso ir mais longe. O Bloco soube “aprender com o passado”, reconheceu Catarina Martins. “É aprendendo com os erros que se constrói o futuro”. Mas construir o futuro do partido, garantiu a coordenadora, não é esquecer de onde veio e para onde quer ir.

No final do discurso de Catarina Martins, as colunas do Mercado de Santa Clara começaram a gritar a música transformada em hino do Bloco (“Agora não é tarde, agora não é cedo / Está na Hora! / Está na hora de fazer a luta toda!”) e lá vieram os “parabéns”, cantados ao som da “Internacional”. Há coisas que não mudam.