Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Em Novembro, fará 20 anos que se referendou a regionalização em Portugal. Corria o ano de 1998, António Guterres era primeiro-ministro e Marcelo Rebelo de Sousa liderava a oposição – à esquerda, PS e PCP defendiam os seus modelos de regionalização; à direita, PSD e CDS opunham-se. Nas urnas, os portugueses rejeitaram por larga margem a ideia de criar novas regiões em Portugal continental – 61% dos votos foram contra.
Portugal vivia ainda a onda de euforia resultante da adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e beneficiava do acesso ao crédito facilitado pelo período de pré-adesão ao Euro. Com uma economia pujante, os portugueses sentiram pouca necessidade de alterar o que parecia estar a correr bem. Apesar do consenso em torno da necessidade de descentralizar, os opositores à regionalização argumentavam que existiam alternativas políticas descentralizadoras que não passavam pela regionalização.
Vinte anos depois é oportuno perceber o que aconteceu desde o referendo de 1998 e fazer um balanço dessas promessas. Muitos portugueses votaram não à regionalização no pressuposto de que seria possível a descentralização por outra via e que essa descentralização ajudaria as regiões mais pobres a crescer economicamente. Será que isso se concretizou? É a essa pergunta que tentarei responder neste ensaio.
1. Portugal depois do referendo: um país centralista
A medida normalmente utilizada para medir e comparar o nível de centralismo de um país é a percentagem de despesa pública que se realiza ao nível regional ou local – quanto menor a percentagem de decisões tomadas a nível local ou regional, maior o centralismo na administração de um país. No gráfico abaixo podemos ver os valores para os vários países OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico).
Os dados comparados não deixam qualquer margem para dúvidas: Portugal é um dos países mais centralistas da OCDE. Sendo certo que nos países mais pequenos é de esperar que os níveis de centralismo sejam maiores – uma vez que a proximidade retira a necessidade de descentralizar o processo de decisão – Portugal tem muitos países bastante mais pequenos à sua frente nesta medida de descentralização. De acordo com esta medida, Portugal é quase tão centralista como o minúsculo Luxemburgo e consegue ser muito mais centralista do que países significantemente mais pequenos, como a Suíça ou a Bélgica. O seu nível de despesa pública utilizada ao nível local ronda um terço da média da União Europeia. Dentro da União Europeia (UE), para além do já referido Luxemburgo, apenas a Irlanda e a Grécia são mais centralistas do que Portugal. Convém referir que estes valores para Portugal já incluem a despesa das duas regiões autónomas – se considerássemos apenas Portugal continental, o mais certo seria o valor da despesa pública gerida ao nível local ser ainda mais baixo.
Este é o ponto de partida: Portugal é um país centralista, onde o poder de decisão está concentrado na capital. A questão que agora interessa discutir é o impacto desse centralismo na economia. É difícil isolar o efeito do centralismo no desempenho económico do país já que Portugal esteve sujeito a vários choques nos últimos 20 anos que tiveram efeitos em vários sentidos. No entanto, podemos obter algumas pistas olhando para o desempenho económico das diferentes regiões.
Um dos grandes objetivos desde a adesão de Portugal à CEE é a convergência do nível de vida dos portugueses para os níveis médios da UE. O Eurostat oferece dados para medirmos como é que essa convergência tem evoluído nas diferentes regiões desde 2000 (isto é, dois anos depois do referendo). No gráfico abaixo podemos ver quantos pontos percentuais cada região convergiu em relação à União Europeia (a medida utilizada é o PIB – Produto Interno Bruto per capita a paridades de poder de compra). Para controlar para os efeitos da crise financeira, o gráfico mostra tanto o nível de convergência até 2010 como até 2015. Valores positivos significam que a região em causa convergiu com o resto da UE e valores negativos significam que divergiu, ou seja, que o nível de vida médio dos habitantes dessa região está hoje mais distante do nível de vida médio dos europeus.
Desde 2000 até 2010, apenas duas regiões do país convergiram com a média da UE. Coincidência ou não, as regiões que convergiram são as duas únicas com autonomia administrativa: a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira. Regiões mais pobres que estas duas, como a região Norte e a região Centro, apesar do baixo ponto de partida, divergiram em relação ao resto da Europa. Já se contarmos com o período da crise, apenas a Região Autónoma dos Açores convergiu com os níveis médios europeus.
Outra curiosidade deste gráfico é que uma das regiões que mais divergiu com o resto da UE foi a Área Metropolitana de Lisboa. Obviamente, há muitos fatores a contribuir para esta divergência, mas ainda assim é um bom motivo de reflexão. A descentralização é muitas vezes vista como um jogo de soma nula em que ganham as regiões mais pobres à custa de Lisboa. Os dados apontam no sentido de essa ser uma forma errada de ver a questão porque a economia de Lisboa não vive isolada do resto do país – sendo a capital, o seu destino está intimamente ligado ao destino do resto da economia. Ou seja, um país menos bem gerido e mais pobre resultará numa Lisboa mais pobre. Consequentemente, um modelo político que não favoreça o crescimento económico do país também prejudicará Lisboa.
2. Portugal: um país, muitos países
A União Europeia é muito heterogénea. No centro e norte tem economias avançadas, abundantes em capital e com uma elevada capacidade de criação de riqueza. A sul e a leste estão economias mais pobres. É consensual que cada realidade exige um conjunto de políticas próprias, adaptadas à fase de desenvolvimento do país. Por exemplo, ninguém espera, ou defende, que a Roménia tenha um estado social tão generoso como a Suécia, ou que a Eslováquia tenha o mesmo salário mínimo que a França. A Irlanda certamente não teria dado o pulo de desenvolvimento que deu se tivesse o mesmo nível de impostos do Reino Unido. Ou seja, é relativamente consensual que as políticas económicas e sociais têm necessariamente que se adaptar às necessidades de desenvolvimento do país. Por outro lado, a existência de políticas económicas diferentes dentro da UE permite, por tentativa e erro, ir identificando os melhores modelos a seguir – comparando entre países, é possível perceber quais as políticas públicas que funcionam melhor em cada contexto.
O mesmo pode e deve ser feito internamente, a nível nacional, comparando regiões. Voltemos, então, a Portugal e olhemos para o gráfico abaixo. Neste gráfico, podemos ver o PIB per capita (em PPP) das regiões portuguesas. Ao lado do valor para cada região aparece (representado no gráfico a cinzento claro) o país da UE cujo valor PIB per capita é mais aproximado.
As discrepâncias regionais dentro do país são acentuadas. Enquanto Lisboa tem um PIB per capita semelhante ao dos países mais ricos da UE (ligeiramente abaixo da França e do Reino Unido), o Norte e o Centro do país têm um PIB per capita mais próximo dos países pobres do Leste e Sul da Europa. Se fossem independentes, o Norte e o Centro de Portugal seriam, respetivamente, o quinto e o sexto países mais pobres da Europa. Já a área metropolitana de Lisboa estaria no pelotão da frente. No entanto, tirando pequenas variações ao nível municipal, existe uma absoluta homogeneidade de políticas económicas e fiscais em todas estas regiões. A fiscalidade, a legislação laboral, o salário mínimo e todas as outras políticas económicas aplicam-se de igual modo em Lisboa e em Castelo Branco ou Vila Real. Ou seja, uma empresa em Chaves paga exatamente o mesmo IRC e TSU e é sujeita ao mesmo salário mínimo que uma empresa em Lisboa, apesar das diferenças de infraestruturas públicas e custo de vida entre as cidades. Ora, o debate que tais dados sugerem é fácil de sintetizar: se dificilmente alguém defenderia que o Reino Unido e a Roménia tivessem o mesmo salário mínimo, é razoável que Lisboa e Trás-os-Montes, com níveis de desenvolvimento económico muito diferentes e com custos de vida bastante diferentes, possam ter?
As variações entre regiões têm raízes profundas. Para além de as regiões estarem em diferentes fases de desenvolvimento económico, o próprio modelo de desenvolvimento pode variar substancialmente. Esta variação tem implicações em termos da política económica ótima para cada região. Para ilustrar isto, no gráfico abaixo podemos ver a percentagem de exportações e importações no total do PIB de cada região. Os dados revelam quase um país em duas metades. Enquanto que Norte, Centro e Alentejo têm uma estrutura produtiva mais virada para a exportação de bens, Lisboa, Algarve e as regiões autónomas têm uma estrutura produtiva mais virada para o consumo interno e turismo. Enquanto que a Área Metropolitana de Lisboa tem um défice comercial de bens maior do que qualquer país europeu (em % do PIB), a região Norte tem um excedente superior ao da Alemanha.
O que isto significa para o debate sobre a regionalização (ou descentralização)? Na medida em que as regiões estão em fases diferentes do seu desenvolvimento económico e baseado em modelos diferentes, talvez faça sentido permitir que escolham políticas económicas diferentes. Por exemplo, políticas fiscais benéficas para o consumo interno e turismo (como a recente descida do IVA da restauração) tenderão a beneficiar desproporcionalmente as regiões cuja economia depende dessas áreas. Já políticas que afetem a competitividade externa do país tenderão a ter mais impacto nas regiões mais dependentes do comércio internacional.
A homogeneidade territorial das políticas económicas é especialmente preocupante porque a formação dessas políticas será sempre mais influenciada pela realidade da região onde o poder político está concentrado. Perante realidades económicas e regionais tão distintas, qual das realidades tenderá a prevalecer no momento de desenhar políticas económicas? Inevitavelmente, as prioridades da capital impõem-se, sobretudo quando essa é a realidade mais próxima do decisor político ou do legislador. Estando o processo legislativo também ele centralizado em Lisboa torna-se inevitável que o legislador seja (mesmo que involuntariamente) influenciado por essa realidade.
O legislador acaba assim por tratar problemas locais que lhe são próximos como problemas nacionais e ignorar problemas nacionais por não lhe serem próximos. Não faltam exemplos disso. Ainda recentemente, um problema bastante concentrado em duas ou três freguesias do concelho de Lisboa (os efeitos do alojamento local na qualidade de vida dos habitantes) levou o parlamento a iniciar discussões para uma legislação ao nível nacional que poderá ter efeitos negativos no turismo em regiões onde ele ainda se está a desenvolver. Por outro lado, a questão do ordenamento florestal é há muitos anos ignorada porque, apesar de ser um problema nacional, está longe da vista de quem vive na capital.
Resumindo: num contexto como o português, a homogeneidade territorial das políticas económicas tende a prejudicar as regiões mais pobres ou mais afastadas dos centros de poder político. Portugal não é, aliás, caso único. Foi isso mesmo que concluiu um estudo publicado em 2008 por Roberto Ezcurra e Pedro Pascual. Nesse estudo, que analisou vários países europeus, os autores concluem que a centralização de políticas fiscais leva ao crescimento das desigualdades internas entre regiões. Sobre o efeito da centralização no desenvolvimento económico, os resultados dos estudos são pouco consensuais, mas de acordo com uma análise transversal, incluindo vários estudos, feita recentemente por Santiago Lago-Penas e Agnese Sacchi, há fortes indicadores de que a descentralização tem efeitos globalmente positivos nos indicadores económico-sociais de um país.
3. O centralismo beneficia Lisboa? Não é assim tão simples
Quem segue o debate político estará certamente familiarizado com o argumento de que o centralismo beneficia a região de Lisboa e os lisboetas, prejudicando o resto do país. Esta perceção tende a polarizar a discussão, colocando os habitantes de Lisboa de um lado e os do resto do país do outro. Como muitos argumentos que recolhem apoio, este tem um pouco de verdade e um pouco de exagero.
Por um lado, é inegável que o centralismo representa uma vantagem para a capital e os seus residentes. Estando mais próximos dos centros de decisão, têm maior poder de influenciar os processos políticos e legislativos. Ao mesmo tempo, têm mais e melhores oportunidades de emprego e progressão na carreira. É também mais fácil gerir um negócio quando todos os clientes estão à distância de uma curta viagem de táxi.
Por outro lado, todas estas vantagens exercem uma força centrífuga sobre pessoas e empresas, esvaziando o resto do país. Quando em excesso, acaba inevitavelmente por causar mais danos diretos e indiretos a Lisboa do que os benefícios que traz. De forma muito resumida, o centralismo pode prejudicar a capital por três vias. Em primeiro lugar, ao contribuir para o empobrecimento do país, eventualmente prejudicará os negócios geridos a partir dessa cidade e a capacidade de cobrança de impostos que alimenta os serviços públicos aí localizados. Em segundo lugar, a excessiva centralização tem o efeito de atrair pessoas do resto do país à procura de emprego, exercendo pressão em baixa sobre os salários e pressão em alta sobre o custo de vida, especialmente os custos da habitação, prejudicando aqueles que já lá vivem. Finalmente, uma centralização excessiva pode levar a sobreutilização das infraestruturas públicas, nomeadamente infraestruturas de transportes. Não é por acaso que muitos lisboetas se queixam do preço excessivo da habitação, do trânsito, das filas nos transportes públicos e, em geral, do elevado custo de vida. Todos estes problemas são, em maior ou menor grau, efeitos da centralização.
Onde é que estes diferentes pontos nos levam? À constatação de que o debate mais importante não gira tanto à volta da influência da capital, mas aos efeitos transversais no país. É que, se não é certo que o centralismo seja realmente benéfico para Lisboa, o que efetivamente sobressai na leitura dos dados e dos estudos publicados é que o centralismo tem um efeito negativo no desenvolvimento de um país com tantas discrepâncias regionais e económicas.
4. Conclusão: altura de voltar a dar voz aos eleitores?
Vinte anos depois do referendo à regionalização, as promessas de descentralização ficaram em boa parte por cumprir. Excetuando a parte do país já regionalizada (Açores e Madeira), a qualidade de vida em todas as regiões divergiu em relação à média europeia, tanto nas regiões mais ricas como nas mais pobres. Apesar das garantias da altura, não existiram incentivos políticos a avançar com a descentralização. Hoje fazem-se novas promessas de descentralização assente em vários modelos alternativos à regionalização. Mas, depois da experiência dos últimos 20 anos, podemos acreditar em novas promessas de descentralização sem regionalização? É um debate que importa lançar, apesar do exemplo dos últimos 20 anos parecer indicar que não.
Mas, se esse debate é necessário, não pode ser motivo de mistificações: a regionalização (ou a descentralização) não é uma solução milagrosa. Existem, claro, potenciais problemas com a regionalização, nomeadamente a multiplicação de burocracias e a criação de buracos negros financeiros. Uma regionalização mal feita – por exemplo, uma regionalização que descentralize a despesa, mas não a receita – poderia levar a problemas adicionais de governação e gestão financeira. Em 1998, os portugueses já conheciam estes problemas e por isso rejeitaram a regionalização. Hoje, 20 anos depois, também conhecem melhor o outro lado da moeda, ou seja, os problemas resultantes de não existir regionalização: um país centralista e a empobrecer. Já que existe tanto interesse político na descentralização, talvez seja a altura de devolver a palavra aos eleitores. Com 20 anos adicionais de aprendizagem sobre o que vem a seguir, estarão bastante melhor preparados para tomar esta decisão.
Carlos Guimarães Pinto é docente universitário, doutorando em Economia e investigador no Centro de Economia e Finanças da Universidade do Porto