Das três irmãs Brontë, Emily é aquela sobre a qual menos se sabe. É certo que nasceu a 30 de julho de 1818, que morreu a 19 de dezembro de 1848 de tuberculose, a doença que matou o irmão meses antes, e que entre essas duas datas tentou ser professora, viajou até Bruxelas, escreveu algumas dezenas de poemas e um único romance, O Monte dos Vendavais, obra obscura e violenta sobre uma paixão capaz de sobreviver até depois da morte. Uma das melhores da história da literatura inglesa. Mas se a sua vida parece mais ou menos certa, a sua personalidade não o é. Existem muitas dúvidas, muitos mitos, que, 200 anos depois, continuam sem resposta. E é talvez por isso que a mais estranha das “três irmãs estranhas” — como o poeta inglês Ted Hughes chamou a Charlotte, Emily e Anne Brontë, numa evocação das três bruxas de Macbeth –, autora de um estranho romance, permanece até hoje motivo de fascínio e, sobretudo, vítima de lugares comuns.
Isto deve-se sobretudo à falta de material original sobre Emily Brontë. Segundo Claire O’Callaghan, autora da mais recente biografia da autora, “existe literalmente uma mão cheia de notas descuidadas, alguns esboços, quatro ‘Diários’ que escreveu com Anne, [dois anos mais nova do que ela,] uma mão cheia de ensaios que escreveu durante a sua estadia na Bélgica (conhecidos como devoirs) e os objetos da sua secretária para refletirmos sobre eles”. A maioria dos seus manuscritos perdeu-se ou foi destruída, havendo quem sugira que foi Charlotte que, na ânsia de construir a imagem das irmãs que considerava correta, terá queimado os papéis de Emily. Estes “itens preciosos”, “a base sobre a qual assenta o seu legado literário”, constituem “todo o material primário” que existe sobre Emily, e é com eles que “qualquer biógrafo tem trabalhar”.
A informação é tão escassa que ninguém consegue dizer ao certo como ela era. A par de algumas vagas descrições, feitas por quem a conheceu pessoalmente, existem apenas dois retratos “oficiais”, que foram considerados autênticos pela Brontë Society, responsável pela gestão do património das três irmãs: o “Pillar”, a famosa pintura de 1834 que mostra Charlotte, Emily e Anne lado a lado; e o chamado “Gun Group”, obra produzida provavelmente por volta da mesma data. As duas pinturas são da autoria de Patrick Branwell, o único filho de Patrick Brontë, que tinha ambições literárias e que gostava de pintar. Dos dois retratos, o “Gun” é o mais curioso. Apesar de ter sido originalmente uma pintura das três irmãs, conhece-se dela apenas uma parte, que se acredita conter uma representação de Emily (há, porém, quem defenda tratar-se de Anne). O resto do quadro foi destruído por Arthur Bell Nicholls, marido de Charlotte, que achava tratar-se de uma má representação da família.
Mal conservadas e de fraca qualidade, as duas pinturas pouco dizem sobre Emily. Além destas, as poucas descrições fidedignas dela — nomeadamente a que foi feita pela grande amiga de Charlotte, Ellen Nussey, num artigo publicado na revista ilustrada Scribner’s Monthly, em 1871 — permitem apenas saber que tinha o cabelo castanho, provavelmente ondulado, e que os seus olhos, “gentis”, eram claros, cinzentos ou azuis. Não existem fotografias dela, nem das suas irmãs, ainda que de vez em quando surjam alegadas imagens de Charlotte, Emily e Anne. A última apareceu em 2015. Sobre ela, John Sutherland escreveu no The Guardian: “Se esta é uma imagem verdadeira das Brontë, então eu sou o Heathcliff!”, numa referência à famosa personagem de O Monte dos Vendavais. “Será que esta pode ser uma fotografia das três irmãs Brontë?, perguntou Seamus Molloy, que comprou a fotografia por 15 paus no eBay. Ele devia pedir o dinheiro de volta. Nem vale a pena falar no óbvio. Tecnicamente, a fotografia foi claramente tirada mais tarde do que as morte trágicas das irmãs.”
Foi contra estas e outras suposições que Claire O’Callaghan decidiu escrever um livro sobre a escritora inglesa, que morreu com apenas 30 anos. Emily Brontë Reappraised. A view from the twenty-first century, publicado em junho pela Saraband, é, nas palavras da professora da Loughborough University, em Inglaterra, uma “espécie de biografia com um twist”, porque “revisita algumas das ideias dominantes que se formaram sobre Emily e lê-las de uma nova forma, do ponto de vista do novo milénio”. E estas não são poucos — embora pouco se saiba sobre ela, há muito que sua personalidade foi definida. Era teimosa ao ponto de se prejudicar a si própria, tinha um espírito selvagem, indomável e uma vontade de ferro; era tão antissocial que parecia sofrer de uma fobia e preferia a companhia dos animais — sobretudo do seu cão, Keeper — à dos humanos, o silêncio dos campos ao barulho da grande cidade. Houve quem dissesse que era mística, louca, e até quem a acusasse de ser uma fraude literária, já que a sua obra-prima teria sido escrita pelo irmão Branwell, e não por si. Tudo isto porque era mulher e um enigma para muitos.
Em Emily Brontë Reappraised, O’Callaghan tentou separar o trigo do joio, a verdade das muitas possíveis mentiras. E mais do que isso, tentou perceber se a poetiza e romancista de Yorkshire foi de facto “um mistério no seu próprio tempo”, ou se essa aura misteriosa, que persiste até aos dias de hoje, se deve simplesmente ao facto de ter sido “uma mulher à frente do seu tempo”, que os seus contemporâneos tinham dificuldade em entender. Talvez agora, em pleno século XXI e à luz da “cultura contemporânea”, seja finalmente possível saber quem foi Emily Brontë. É isso que a biografa espera ter ajudado a fazer.
A “filha dos campos”, criadora de monstros
A ideia de Emily como a mais estranha das “três irmãs estranhas” começou com Charlotte, a sua primeira “biógrafa e mitóloga”. Foi ela que, depois da morte das irmãs, decidiu tomar em mãos a tarefa de editar e divulgar as suas obras, publicando em 1850 um volume revisto dos seus romances de estreia, O Monte dos Vendavais e Agnes Grey. Este vinha acompanhado por uma “Biographical Notice of Ellis and Acton Bell”, escrita por si, sobre as duas escritoras. Foi nesta nota à edição da editora londrina Smith, Elder & Co., a primeira de carácter biográfico sobre Emily e Anne, que foi confirmado pela primeira vez e oficialmente género das autoras, que tinham assinado as obras com pseudónimos ambíguos por terem consciência do preconceito que existia em relação às mulheres escritoras. Isso levou a que, depois das primeiras edições de 1847, surgisse um debate entre leitores e críticos sobre se Ellis Bell (Emily) e Acton Bell (Anne) eram homens ou mulheres.
A “Biographical Notice” também foi importante por outro motivo. Neste texto, hoje famoso, Charlotte procurou descrever a personalidade das irmãs, justificando assim os romances que tinham escrito e que tantas críticas tinham recebido. Emily Brontë foi a que saiu mais prejudicada, uma vez que as afirmações da irmã mais velha ajudaram a criar muitos dos mitos sobre ela que persistem até aos dias de hoje. Segundo Charlotte, Emily tinha uma “cultura pouco sofisticada, gostos naturais e um exterior modesto”, mas um “poder e fogo secretos” tão grandes que eram capazes de alimentar as “veias de um herói”; não era flexível, o que fazia com que muitas vezes tomasse decisões erradas, que acabavam por a prejudicar, “o seu temperamento era magnânimo, mas quente e inesperado” e “o seu espírito indomável”. Através de uma crítica velada, suavizada por alguns elogios, Charlotte Brontë acusava assim a irmã de ser demasiado teimosa e querer fazer sempre tudo à sua maneira, sem que tivesse noção ou conhecimento da realidade. O seu espírito indomável fazia com que fosse difícil lidar com ela.
Anne também não escapou às críticas da irmã mais velha: no mesmo texto, afirmou que a escolha do tema para o segundo romance de Acton Bell, The Tenant of Wildfell Hall, publicado um ano antes da sua morte, tinha sido um “erro total”. Segundo O’Callagh, Charlotte chegou inclusivamente a pedir ao seu editor que não reeditasse a obra enquanto fosse viva. Hoje, The Tenant of Wildfell é considerado um dos primeiros romances feministas.
Charlotte Brontë também escreveu, para o mesmo volume, um prefácio ao romance da irmã. Ainda que este tivesse alguns elogios, dando a entender que Charlotte não o considerava mau de todo, acabou por ficar marcado por uma tentativa por parte da autora de Jane Eyre de se distanciar dos elementos mais controversos de O Monte dos Vendavais, nomeadamente da personalidade violenta de Heathcliff, que chocou muitos críticos na altura. Ao fazê-lo, contudo, Charlotte criou uma imagem da irmã que não era a mais simpática. Descreveu-a como uma campónia que, devido à sua personalidade antissocial, tinha um conhecimento realidade do camponeses de Yorkshire que era muito semelhante ao que uma freira tinha das “pessoas que passam à porta do seu convento”.
Esta “filha dos campos” nunca teria escrito uma obra como O Monte dos Vendavais se tivesse tido a coragem de atravessar a porta de casa: “Sem dúvida que se ela tivesse sido colocada numa cidade, os seus escritos, se é que ela teria escrito alguma coisa, possuiriam outro carácter. Se Ellis Bell fosse uma senhora ou um senhor acostumado ao que se costuma chamar ‘o mundo’, a sua visão de uma região remota e sem dono e de quem lá vive seria muito diferente do de uma rapariga nascida e criada no campo”, afirmou Charlotte, que acreditava que o romance da irmã tinha várias falhas, também explicáveis pela sua origem. Afinal, Emily era “uma nativa e uma filha dos campos”, com “uma tendência para a reclusão”. “Raramente saía de casa, a não ser para ir à missa ou para dar uma caminhada. (…) A sua imaginação, que era mais sombria do que solarenga, (…) encontrou nestes traços material para produzir criações como Heathcliff, Earnshaw e Catherine. Ao criar estas criaturas, ela não sabe o que fez”, afirmou a escritora, concluindo: “Se é certo ou aconselhável criar coisas como Heathcliff, eu não sei”.
Como escreveu Claire O’Callagham, estas afirmações por parte de Charlotte parecem sugerir que a irmã era incapaz de controlar a sua imaginação selvagem, produzindo criaturas monstruosas como Heathcliff. Contudo, a especialista em literatura vitoriana não acredita que Charlotte tenha escrito o que escreveu por mal: “As coisas desagradáveis que ela disse não nasceram da antipatia ou da mesquinhez — foram escritas durante o luto e distorcidas para corresponderem a algumas das questões relacionadas com a reputação das irmãs depois das suas mortes e aos críticos que achavam que o trabalho delas era ‘grosseiro'”, disse ao Observador. “No entanto, acho que as pessoas terão a sua opinião em relação ao quão egoísta isso foi ou sobre o quão egoísta isso hoje parece. É definitivamente um assunto difícil e faz com que Charlotte pareça menos santa do que muitas vezes é descrita.”
A doida e má irmã Brontë (de quem Elizabeth Gaskell não gostava nada)
A escritora foi também a principal fonte da hoje infame biografia de Elizabeth Gaskell, The Life of Charlotte Brontë. O livro, o primeiro sobre a autora de Jane Eyre, foi publicado em 1857, dois anos depois da morte de Charlotte, que tinha conhecido a autora em 1850. Incluía muitas citações diretas da escritora, mas apresentava uma versão algo lúgubre da vida da família — que Gaskell nunca conheceu mas de quem falou como se tivesse conhecido –, chegando ao ponto de acusar o reverendo Patrick de não deixar os filhos comerem carne. Charlotte era descrita como “genuinamente bondosa” e “verdadeiramente grandiosa”, em contraste com a irmã, quase selvagem. Segundo Gaskell, Emily Brontë era “extremamente reservada” e odiava estranhos, mas não era envergonhada como as irmãs. Tinha um “espírito livre e indomável”, e “nunca estava em ou feliz a não ser nos campos que havia em redor de sua casa”. Embora nunca a tivesse visto, Gaskell garantia que o que tinha ouvido era suficiente para chegar à conclusão de que não gostava dela: “Tudo o que eu, uma estranha, consegui apreender sobre ela, não me fez ter ou aos meus leitores uma boa impressão”, afirmou.
Este espírito “indomável” de Emily teria, segundo Gaskell, inspirado a Shirley do segundo romance de Charlotte. Publicado em 1849, Shirley conta a história de uma mulher que, depois de herdar uma quinta na zona de Yorkshire, consegue estabelecer a sua própria independência. Contrastando fortemente com Caroline Helstone, personagem que vive presa às convenções e à atmosfera opressiva da Inglaterra de então, Shirley é uma mulher diferente, com um nome geralmente atribuído a um homem (o seu pai queria um filho) e que até sabe usar uma arma — tal como Emily sabia. “Estes pontos dizem-nos que Emily era claramente uma mulher atípica. Ela rejeitava os traços geralmente associados com o feminino — como a passividade, emotividade, irracionalidade”, escreveu O’Callaghan. Claro que nada disto era visto com bons olhos na época vitoriana, como os comentários depreciativos de Elizabeth Gaskell tão bem indicam. Hoje seria diferente, contudo: os traços descritos por Charlotte em Shirley ou por Gaskell em The Life of Charlotte Brontë não seriam encarados como negativos, mas simplesmente fazendo “parte da personalidade de uma pessoa, que é multifacetada e complexa”, apontou O’Callaghan na sua biografia.
Estas primeiras descrições de Emily, feitas por Charlotte, ganharam raízes e, nas décadas seguintes, foram replicadas por inúmeros biógrafos que não tinham mais nada a que se agarrar. “A ideia de que era uma eremita com quem era difícil de lidar cimentou-se e tornou-se num estereótipo quando na verdade é uma exageração”, afirmou Claire O’Callaghan ao Observador, descrevendo a escritora como uma “mulher sossegada”. A par disto, a “caricatura mórbida que se desenvolveu depois da biografia de Gaskell– com Haworth descrito como um lugar sinistro e remoto e a casa como esconderijo soturno de um trio de solteironas mal-humoradas” –, que as suas cartas “inteligentes e por vezes engraçadas” desmentem, como referiu Blake Morrison num artigo publicado no The Guardian em 2011, também alimentou a ideia de que toda a família, e em especial Emily, sofria de problemas psicológicos. A provar os alegados distúrbios da autora de O Monte dos Vendavais estava um episódio descrito por Charlotte Brontë a Elizabeth Gaskell.
Em outubro de 1835, quando tinha 17 anos, Emily foi inscrita como aluna na escola de Roe Head, onde dava aulas. Regressou a casa apenas três meses depois, sendo substituída por Anne. A escritora terá sido incapaz de se adaptar à disciplina e à estrutura, mas a versão de Charlotte, citada por Gaskell, é bem mais dramática: “A liberdade era o ar que alimentava as narinas de Emily; sem ela, ela morreria. A mudança da sua casa para uma escola, e do seu modo de vida, muito silencioso, muito isolado, sem restrições e natural para uma rotina disciplinada foi o que ela não foi capaz de suportar. (…) Nesta luta, a sua saúde foi rapidamente destruída”. O seu rosto empalideceu, emagreceu e perdeu todas as forças. “Senti no meu coração que ela morreria se não voltasse para casa.”
Não há forma de saber se, quando regressou a casa, Emily estava às portas da morte ou não. O que é certo é que foi o relato de Charlotte, citado por Gaskell, que “abriu caminho a muitas das interpretações pseudo-psicológicas que se seguiram”, como escreveu O’Callaghan. Nas décadas seguintes, a escritora foi acusada de sofrer de várias patologias, nomeadamente de agorafobia (medo de espaços públicos, que geralmente leva a que os doentes não queiram sair de casa), anorexia (distúrbio que se manifesta na recusa da alimentação) e Síndrome de Asperger (uma forma de autismo que afeta as capacidades de comunicação e relacionamento), ainda que não existam provas de que sofresse realmente de algumas destas doenças.
Para a autora de Emily Brontë Reappraised, “diagnosticar Emily com autismo, anorexia ou Asperger tendo como base observações casuais e informações duvidosas é quase impossível, sobretudo quando os dados que temos sobre ela são tão poucos”. A escritora de Yorkshire parece ter sido apenas alguém que gostava de passar tempo em casa, ocupada com os seus afazeres e com aquilo que lhe dava mais prazer — a natureza, a literatura e também o desenho.
Mulher estranha? Não, independente
Há uma imagem “muito forte” de Emily Brontë que persiste até hoje: a da mulher solitária, que os habitantes de Haworth costumavam ver a caminhar pelos campos na companhia do seu cão Kepper. De acordo com Charlotte, era durante estes passeios que a irmã encontrava aquilo que lhe era mais caro — a liberdade. Emily era um “corvo que adorava a solidão”, que procurava na natureza todos “queridos encantos” que a faziam feliz, disse certa vez a autora de Jane Eyre, dando a entender que a irmã mais nova sofria de uma espécie de melancolia crónica que a levava aos campos. Para Claire O’Callaghan, os passeios solitários da escritora têm outro significado: “Emily era um espírito independente num tempo em que a independência feminina não era bem vista culturalmente”, escreveu a investigadora na sua biografia, explicando que “é em parte por essa razão que ela é cruelmente descrita como singular e estranha”.
Emily Brontë sempre foi teimosa e muito independente. Em 1838, viu-se envolvida numa situação muito semelhante à de Roe Head, quando aceitou um emprego como professora na escola de Miss Patchett em Law Hill, em Halifax, que abandonou apenas cinco meses depois. Ao que parece, não terá gostado da “formalidade de aprendizagem e de educação” do estabelecimento de ensino, segundo O’Callaghan. Decidida a fazer as coisas à sua maneira, uma vez regressada a Haworth, começou a planear abrir uma escola com as irmãs. Foi com isso em mente que viajou com Charlotte até Bruxelas, onde ingressou no Pensionnat Héger, um “estabelecimento de ensino para jovens senhoras”, para melhorar o seu francês. Mas, mais uma vez, Emily não se deu bem com a ordem estabelecida — a escritora não gostava dos métodos de ensino do professor, M. Constatin Héger, e fazia questão de lho dizer. Héger, contudo, viu na inglesa algum potencial. Anos mais tarde, elogiou a sua imaginação e sua “vontade imperiosa”.
A estadia das irmãs na Bélgica foi interrompida com a súbita notícia da morte de Elizabeth Branwell, a tia que tinha assumido o papel de matriarca da família depois da morte da mulher de Patrick Brontë, em 1821. Emily recebeu 300 libras de herança e decidiu desistir de vez da carreira de professora, uma das poucas acessíveis no século XIX a uma mulher, e ficar a tomar conta da casa, que até então era responsabilidade da tia. É justo questionar o porquê de alguém tão independente ter escolhido dedicar o resto da sua vida às lides domésticas, mas é muito provável que a decisão de Emily tenha sido ponderada. Como escreveu Claire O’Callaghan: o seu lugar “pode ter sido firmemente colocado na esfera doméstica, mas a sua decisão deu-lhe controlo sobre o seu próprio tempo. Podia continua a aprofundar conhecimento em várias matérias e escrever até o seu coração estar satisfeito desde que fizesse as suas tarefas, claro”. E foi precisamente isso que fez: começou a estudar alemão e a transcrever os seus poemas para dois cadernos diferentes. Nunca se poderá saber com toda certeza, mas talvez O Monte dos Vendavais nunca teria existido se Emily não se tivesse tornado na senhora da casa.
Esta é uma das razões pelas quais Emily, ao contrário de Charlotte e Anne, nunca foi vista como uma feminista. Claire O’Callaghan acredita que isso não corresponde à verdade e tentou mostrá-lo no seu livro.“Charlotte e Anne fizeram aquilo que reconheceríamos como grandes afirmações ‘feministas’ e isso significa que são mais facilmente encaradas como escritoras feministas do que Emily. Isto não significa que Emily não era uma feminista; em vez disso, mostra-nos que precisamos de reconhecer como o feminismo de uma pessoa se manifesta de outras maneiras”, afirmou a investigadora ao Observador, explicando que o feminismo de Emily Brontë se manifestou de diversas formas, em diferentes formados.
“Ela escreveu e criou um mundo imaginário em verso liderado por mulheres durante toda a sua vida [Gondal], ela lutou diariamente contra as ideias antiquadas de feminilidade e que ela, juntamente com as suas irmãs, escreveu sobre a forma como o género, a sexualidade e as normas sociais restringiam a vida das mulheres”, disse O’Callaghan. Por exemplo, “a narrativa de Isabella Heathcliff em O Monte dos Vendavais oferece um comentário importante à violência doméstica no século XX que permanece ainda válido nos dias de hoje”.
Tudo isto leva à pergunta óbvia e necessária: se muito do que se pensa, se diz e se escreve sobre Emily Brontë é baseado em preconceitos antigos, por que é que, passados 200 anos, a escritora não é encarada de outra forma? “Acho que quando as ideias se enraízam e se tornam aceites como ‘factos’ em vez de ‘opiniões, ou menor, como ‘opiniões tendenciosas’, isto acontece. Às vezes aceitamos facilmente a informação que nos é transmitida em vez de pensarmos criticamente sobre o material. É isto que acontece com as biografias. São lidas como se fossem factos em vez de uma interpretação do autor”, explicou Claire O’Callaghan. “Foi por isto que não quis escrever uma típica biografia, mas um livro mais vasto que olhasse para Emily tematicamente e que reunisse as ideias e as imagens conflituosas que temos sobre ela.”
Nesse sentido, a professora de literatura inglesa espera que Emily Brontë Reappraised inspire uma nova abordagem da vida da autora de Yorkshire, e que “os leitores se sintam inclinados a pensar em abordar Emily de uma forma mais empática. Ela, como todos os seres humanos, não era perfeita, mas não era a eremita irada em que foi transformada. Não ouvimos o suficiente sobre outros traços seus e qualidades — o seu lado carinhoso, em particular –, por isso espero que comecem a olhar para ela de uma forma mais redonda”. Está na altura de Emily sair a sombra das irmãs, menos “estranhas” do que ela.
A imagem da capa mostra o retrato “Gun Group”, pintado por Branwell Brontë e parcialmente destruído pelo marido de Charlotte Brontë, Arthur Bell Nicholls. A pintura faz hoje parte da coleção da National Portrait Gallery, em Londres
Fotografias de OLI SCARFF/AFP/Getty Images e Christopher Furlong/Getty Images