* Este texto foi publicado originalmente em maio de 2015, aquando dos 30 anos do Congresso da Figueira da Foz.
“É o fado, é o destino”. Cavaco Silva olhava para a fotografia de Francisco Sá Carneiro, em pose com a mão no queixo, posta no canto direito do palco, como que a avaliar o homem que acabava de ser eleito líder do partido. Reza a história, contada pelo próprio: foi fazer a rodagem do Citroën BX novinho em folha, de Boliqueime até à Figueira, sem “qualquer intenção de ser eleito líder do PSD”. Reza a história: a liderança de Cavaco Silva no PSD começou graças ao homem e às circunstâncias do partido. Certo, é quase sempre assim. Mas no ido mês de maio de 1985, a “mó trituradora” que era o PSD chorava um líder, Mota Pinto, falecido 10 dias antes. Cavaco ganhou o congresso, depois de chegar atrasado aos trabalhos e de ter entregue a lista fora de horas com assinaturas forjadas por Alberto João Jardim. Estava feito o homem político e as suas circunstâncias, mas não por três meses, como alguns vaticinaram – o “fado” ou o “destino” durou 30 anos.
Foi uma “teia” de acontecimentos que não conseguiu controlar, disse Cavaco Silva. Um conjunto de “circunstâncias imponderáveis”, chamou-lhe Marcelo. Foi o cruzamento entre uma ideia de um homem – discreto e que contou que apenas a ia transmitir aos congressistas – e um contexto, que a fez possível por apenas 57 votos.
O PSD procurava o “verdadeiro líder” depois do falecimento de Francisco Sá Carneiro e de sete líderes que lhe seguiram. O Casino da Figueira da Foz encheu-se na sexta-feira 17 de maio de 1985. Cavaco chegou já Rui Machete discursava e atirava aos que eram contra o bloco central e a favor de uma candidatura de Freitas do Amaral à Presidência da República. Cavaco sentou-se, recatado. A hora dele haveria de chegar, mas apenas no dia seguinte. Acabaria por ser uma disputa pelo palco político entre dois economistas e dois ex-ministros das Finanças e do Plano. Cavaco Silva de Francisco Sá Carneiro e João Salgueiro de Pinto Balsemão.
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Os loucos que enchem hospícios. O dia em que Cavaco incendiou o PSD
“Ouça-me até ao fim, não me assobie antes de ouvir tudo o que tenho a dizer”. Cavaco, o mago dos números, precisava exatamente de 15 minutos para dizer tudo o que tinha a dizer e já estava escaldado de interrupções noutros congressos. O ambiente tinha sido preparado sem que Cavaco o tivesse pedido e sem que Marcelo o soubesse. Pedro Santana Lopes, membro da Nova Esperança, tinha decidido subir ao palco para estender a passadeira a Cavaco, à revelia do líder da Nova Esperança, Marcelo Rebelo de Sousa. “Tenhamos a coragem de ir pelos homens que não têm medo. Por mim não tenho dúvidas nenhumas; porque quer mudar Portugal, o PSD precisa de mudar de líder, precisa de Cavaco Silva”, disse Santana no congresso, citado na biografia de Marcelo do jornalista Vítor Matos.
Cavaco não teve medo e deu um soco ao congresso, que o tinha recebido com aplausos frenéticos. Não ouviu os conselhos (antes de falar tinha mostrado o discurso a Marcelo) e subiu ao palco, nervoso, para dizer que queria apoiar Freitas do Amaral como candidato às presidenciais, acrescentando que se assim não fosse, Freitas poderia pegar nos votos e criar um partido que fizesse sombra ao PSD. Cavaco delineava um plano B: caso esta ideia falhasse, deveria ser o próprio líder do PSD a avançar. Murro dado e as palmas esmoreceram.
Os apoiantes de João Salgueiro, que tinham tremido com a apoteose a Cavaco, ficaram mais descansados e a achar que o congresso estava na mão. De políticos que se tinham afastado – Marcelo e Machete – ficavam dois economistas, ex-ministros das finanças, um de Sá Carneiro outro de Pinto Balsemão – na frente da corrida. E foi no calor do congresso, que Salgueiro fez uma intervenção que é por muitos vista como um insulto direto a Cavaco Silva. “Entre o louco e o personagem real não é o grau de convicção que os distingue. Só que num caso a realidade é uma e, no outro, é uma ilusão. De Napoleões falsos estão cheios muitos hospícios“, disse ao microfone. Agora, explica que não quis chamar louco ao adversário. “Não disse. Disse uma expressão que naqueles meios não se pode fazer muito. Ele disse que ia ganhar porque tinha um candidato vencedor para as presidenciais que era o Dr Freitas do Amaral. E eu disse: ‘Quer dizer, se a convicção que a gente tem de uma coisa fosse verdade não estavam os manicómios com malucos lá dentro, que pensam que são Napoleões’. A convicção não resolve nada. É preciso ver se vai ganhar ou não”, conta passados trinta anos ao Observador.
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O frenesim estava armado e durante a tarde de sábado, Cavaco haveria de decidir. “Vim só para dar o meu testemunho e partir, mas querem que fique para me candidatar a líder”, terá dito. E pela madrugada fora regressa para falar com os congressistas e acalmar os ânimos. Faz um recuo estratégico. Cavaco tinha falado com Freitas dias antes e perante o calor do partido seria menos taxativo e soletrou que o que procurava no conclave era um mandato para “negociar” com o ex-líder centrista. “Não se trata de servi-lo”.
O volte-face no discurso de Cavaco tinha uma explicação. A tarde e noite de sábado tinham sido profícuas em intriga e negociações. Durante a tarde Fernando Nogueira – uma peça-chave no aparelho do partido – tinha-se mostrado disposto a dar o apoio a Cavaco. Além dele, também Dias Loureiro seguiria Cavaco e formariam já aí a dupla que teria influência junto do líder durante os dez anos de cavaquismo e que travaria uma guerra debaixo do poder do primeiro-ministro.
A entrada de Nogueira quase que valeu a perda dos apoios da Nova Esperança, a ala mais à direita do PSD e que tinha defendido Cavaco na primeira linha e desde o primeiro momento. Os direitistas puseram-se fora dos nomes de Cavaco – depois de Marcelo dar o tiro de partida e ter dito que não concorreria a nenhum órgão do partido -, mas ajudam o candidato a fazer a dita lista e a conseguir assinaturas para poder ser candidato.
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Foi o próprio Alberto João Jardim que admitiu mais tarde que assinou por delegados da Madeira que já estavam a dormir.
Pause and rewind.
Os dias de preparação do congresso
Naquela sexta-feira, dia de arranque do congresso, o xadrez da liderança no PSD jogava-se com várias peças na linha da frente: Rui Machete, o líder provisório depois da demissão de Mota Pinto, João Salgueiro, que representava os balsemistas, Cavaco Silva, apoiado por distritais mota-pintistas e pela Nova Esperança e Marcelo Rebelo de Sousa, que avançaria se Cavaco não o fizesse. A pergunta, depois de dias de intriga e negociações era colocada assim por Edgar Andrade, jornalista do Semanário:
“Como se chegou à situação de um João Salgueiro em posição nuclear, um Rui Machete na defesa acentuada, um Cavaco Silva não candidato a líder e um Marcelo Rebelo de Sousa incitado a avançar com candidatura autónoma?”
O PSD era o partido com a “máquina mais difícil de governar”, dizia Barbosa de Melo, um dos fundadores que falava com a propriedade de quem sabia que o partido estava a viver um “síndrome de fatalidade”, depois de onze anos de existência – o PSD já tinha contado com 12 congressos e mais de 50 conselhos nacionais. Carlos Mota Pinto, o líder do partido que tinha assinado o acordo de Bloco Central com Mário Soares, tinha apresentado a demissão em fevereiro desse ano e morreu meses depois, a dez dias do congresso, e um dia depois do 11º aniversário do partido. O PSD ficava órfão outra vez.
Na liderança provisória do partido ficou Rui Machete, vice-primeiro-ministro que garantia que segurava a liderança até ao congresso, mas apenas se fosse “um fator de unidade e coesão”. “Se eu me deparar com zonas de clivagem não me parece oportuno nem útil fazer sacrifícios pessoais para, afinal, não ver realizado nenhum dos objetivos que me propus atingir quando aceitei este cargo”, disse ao Expresso. Traduzindo: Machete não se assumia como candidato, mas gostava de ter uma vaga de fundo para o ser.
O congresso da Figueira da Foz tinha-se tornado uma reedição da luta dos sociais-democratas após a morte de Sá Carneiro. Uma reedição dos balsemistas contra os “críticos”, onde se tinha posicionado e pontuado Cavaco. E por isso, antes do congresso, Pinto Balsemão, pegava no exemplo de Mota Pinto para apelar a uma unidade. “É indispensável uma solução política forte, estável e respeitada depois do congresso”. Balsemão não quis ser candidato. Machete hesitou. Salgueiro foi quem avançou, mas já lá iremos.
Por esta altura, Marcelo era cauteloso. Por um lado, tinha estado numa reunião com distritais de onde tinha saído um cartão vermelho a Machete, por outro, ia dizendo que o que importava era que do congresso saísse “uma estratégia presidencial, uma estratégia de governo e uma estratégia de médio prazo”. O rosto? “Isso depois se verá”.
Uma semana antes do congresso, o Semanário, o jornal de Marcelo, dava conta que o nome preferido pelas distritais era nem mais nem menos que Cavaco Silva. O Expresso dizia o mesmo. A rodagem do Citroën seria o que ficaria para a história, como se Cavaco Silva tivesse ido apenas passear à praia da Figueira fazendo roncar o motor do novo carro, mas a verdade é que a carburação já tinha começado bem antes, num hotel da capital com os representantes dos distritos. Marcelo dirá agora que “não fazia sentido” candidatar-se. Mas a história dos dias de Marcelo foi sendo moldada com os anos.
Os dias da Nova Esperança
Eram poucos, mas num congresso dividido faziam a diferença. O grupo da direita do PSD punha debaixo do mesmo chapéu com o nome de Nova Esperança Marcelo Rebelo de Sousa, o líder, Santana Lopes, José Miguel Júdice, Durão Barroso e Luís Fontoura, entre outros. Nos dias antes, o grupo estava dividido. Havia os que queriam que Marcelo avançasse e os que tinham a convicção que era boa ideia apoiar Cavaco Silva, apesar das diferenças. Cavaco era o homem com “uma rigidez física impressionante” que chocava de frente com a rebeldia da Nova Esperança.
Marcelo diz que preferia Cavaco. Ao Observador, conta aliás que o nome do homem que tinha sido o braço forte de Sá Carneiro nas Finanças lhe merecia crédito ao ponto de ter ponderado o nome dele para candidato a Presidente da República, quando levou o partido a debater as presidenciais em referendo. “A consideração por ele é tal que quando eu no ano antes no congresso de Braga disse que poderíamos [avançar com] Mota Amaral, Alberto João Jardim para a Presidência da República, eu hesitei entre esses nomes e Cavaco Silva. E a razão decisiva porque não falei em Cavaco Silva foi a de que entendia que era uma pena, um desperdício deixar de ser uma hipótese de candidato a primeiro-ministro, sendo utilizado numa competição que era interna que não iria ter grande sucesso, como se viu no referendo”.
Mas há quem conte uma versão diferente. Santana Lopes, na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa de Vítor Matos, conta que a ambição do professor de um dia querer ele próprio liderar o partido, o levava a defender Salgueiro: “Se vem o Cavaco fica lá 10 anos”, disse-lhe o professor de Direito. “Marcelo, Marcelo, desculpe, o partido está em tal estado que, se você não quer avançar, então que seja o Cavaco. Agora não vamos eleger o João Salgueiro, que é mais do mesmo… Foi o Machete, agora o Salgueiro, nem pensar. Portanto, se você não quer ir, vamos apoiar o Cavaco. É o país que está em causa”, terá dito Santana.
A prova de que Marcelo hesitava no que poderia vir a fazer tinha sido o que escreveu no início desse mês. “Não é possível viver indefinidamente no adiamento, na hesitação, no rumo corrigido, todos os dias, pelos contornos da costa. Nem no PSD, nem na vida política portuguesa em geral” – Marcelo decalcado da crónica do Semanário a 4 de maio de 1985.
“A unidade é uma palavra mágica que muitas vezes encobre razões que não querem vir à luz do dia”
Foram dias de divisão e de criação da posição do grupo espelhada no jornal que os acolhia como colunistas. José Miguel Júdice fazia uma leitura dessa “unidade” pedida por Balsemão. Até porque o partido estava tudo menos unido. Havia os que queriam o fim do bloco central e os que não queriam. Os que defendiam uma candidatura de um militante à Presidência da República, os que defendiam Freitas do Amaral e ainda os que ponderaram em tempos o sim a Mário Soares.
No próprio fim de semana do congresso, o jornal dava conta de uma viragem à esquerda do então primeiro-ministro, Mário Soares, que acicatava mais os críticos do bloco central. Marcelo, que no intervalo das reuniões escreveu para o Semanário, defendia nessas páginas (o jornal tinha a data de sábado e as votações seriam no domingo), que a liderança que viesse a ser escolhida deveria ser “a mais adequada para prosseguir a formulação de uma futura alternativa de governo ao PS e, por conseguinte, dar garantia do empenhamento do PSD na mais forte candidatura presidencial susceptível de defrontar o dr. Mário Soares, vencendo-o”. Sem nomes. Afinal, o nome de Freitas do Amaral, fundador do CDS, era ainda um ativo tóxico para alguns “laranjinhas” (como lhe chamava Paulo Portas), que nesse dia optou por não escrever no jornal onde mantinha uma coluna.
O professor de Boliqueime: “Quem pensa ele que é?”
O homem, que para Mário Soares não tinha currículo, surpreendeu os socialistas ao ganhar na Figueira da Foz. Os dois partidos estavam unidos sob a sigla do Bloco Central e o acordo tinha data de fim marcada para 1987. Cavaco trocou as voltas ao então primeiro-ministro.
“Esse professor? Quem pensa ele que é?” ou “Quem pensa ele que é, esse professor vindo não se sabe de onde?”, terá dito Soares numa reunião do grupo parlamentar do PS com o então primeiro-ministro, citado pelo extinto Semanário.
Cavaco Silva ganhou o congresso da Figueira da Foz contra a lista de João Salgueiro. Perderia o Conselho Nacional e a Mesa do Congresso, ganha por Francisco Balsemão que ao chamar o novo líder para discursar nem lhe pronunciou o nome. O partido estava rendido a Cavaco. Mas não todos. Saído da Figueira, Cavaco tinha deixado o recado, não “toleraria tendências”. A mensagem era dada para muitos e também para Marcelo Rebelo de Sousa que tinha visto a sua hora adiada por mais uns anos.
Ao Observador, Marcelo conta que previu que o partido ia ter um líder por dez anos.
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A premonição de Marcelo bateu certo. Só em 1995, Cavaco deu lugar a Fernando Nogueira. Mas voltaria, depois de um interregno de dez anos – em que mesmo assim não deixou de pontualmente aparecer no espaço público, por exemplo, quando lançou a autobiografia ou quando escreveu sobre a má moeda quando Santana era primeiro-ministro. Tudo porque “foi o primeiro político que soube gerir o ciclo económico, que sabia de economia. Até ele [aparecer] eram políticos puros. Mário Soares eram um político puro. Sá Carneiro era político puro. Álvaro Cunhal político puro. Freitas político puro. O primeiro político economista a saber utilizar a economia para a política e a domá-la foi Cavaco Silva. E, por outro lado, o primeiro a saber lidar com a televisão. Nesse sentido, foi, à sua maneira, o primeiro populista contido. Racionalizado”, sintetiza Marcelo.
João Salgueiro, o derrotado do fim de semana alucinante da Figueira diz estar “aliviado”. A história daqueles dias marcaram (pelo menos) os trinta anos seguintes. E hoje Cavaco Silva já saberá responder à pergunta que se colocou quando desceu da Figueira até Lisboa: “Serei eu capaz?”.