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No final de 1984, Mário Soares procurava um vínculo que assegurasse a adesão de Portugal à CEE. Depois de sete anos de negociações mais ou menos intensas, muitos dossiers já estavam fechados e muitas alterações já tinham sido introduzidas no país, mas as dificuldades em conseguir que França, Reino Unido e Alemanha concertassem posições, estavam a desesperar o Governo.
“Precisamos de um papel”, disse o então primeiro-ministro. Chamou ministros e representantes de Portugal em Bruxelas ao seu gabinete e inventou um tratado. Um constant d’accord, que garantia a Portugal que a entrada era irreversível e que assegurava que tudo o que tinha sido combinado até aí estava garantido. A CEE aceitou o documento improvável. Um episódio caricato que reflete os avanços e recuos que marcaram o processo de integração para Portugal e começou após o 25 de Abril.
“A Europa Connosco” foi a promessa socialista da campanha para as primeiras eleições legislativas no pós-revolução e, ao mesmo tempo, foi uma finta ao PSD que não se organizou para agarrar esta causa em pleno — Sá Carneiro diria mais tarde que a adesão seria “um projeto nacional e não uma posição partidária”.
Com a vitória de Mário Soares nessas eleições, o programa do I Governo Constitucional, apresentado em agosto de 1976, estabelece desde logo a “opção europeia” como prioridade, assinalando para o final desse ano a assinatura de protocolos adicionais ao Acordo estabelecido com as comunidades em 1972 (ainda pelo Estado Novo) — os protocolos diziam respeito ao Comércio e às Finanças. O pedido de adesão seria apresentado pouco depois, em 1977, após várias consultas diplomáticas aos nove países que então compunham a CEE.
Portugal estava prestes a entrar num processo que demoraria oito anos e que culminaria numa manhã solarenga de junho de 1985 no Mosteiro dos Jerónimos. Veja a cronologia:
“Estas viagens foram todas marcadas com grande facilidade: a revolução portuguesa estava bem presente, o papel de Mário Soares era reconhecido por todos como fundamental para o estabelecimento da democracia pluralista em Portugal”, escreveu Medeiros Ferreira.
Antes da entrega do pedido de adesão, entre fevereiro e março de 1977, Mário Soares e Medeiros Ferreira, então ministro dos Negócios Estrangeiros, percorrem as capitais europeias em busca de apoios, incluindo uma passagem pelo Vaticano onde se encontraram com o Papa Paulo VI. Apresentavam então um país que tinha deixado para trás o seu período imperial, o mais longo da Europa Ocidental, e que tinha sofrido um acréscimo da população de 7% em apenas 90 dias — após o regresso dos portugueses das ex-colónias — mas que passava ainda por uma grande instabilidade política e social no rescaldo da revolução.
Num testemunho para o livro “Portugal e a Integração Europeia”, que recolhe a experiência de vários intervenientes neste processo, Medeiros Ferreira escreveu que o início desta “tour” pela capital do Reino Unido “não foi gratuito”, já que na altura, os britânicos eram “um dos mais fortes apoios” ao Governo e o país detinha a presidência do Conselho de Ministros da CEE.
As passagens por Londres, Dublin, Copenhaga e Roma foram animadoras, mas a segunda parte da viagem apresentava um grande desafio: Paris. O Presidente Giscard d’Estaing não via com bons olhos a entrada de Espanha na CEE, devido à produção agrícola do país, que rivalizaria com a agricultura francesa, e o pedido português estava intimamente ligado ao seu vizinho — Espanha só apresentou o seu pedido de adesão em julho de 1977.
Em reuniões prévias, Medeiros Ferreira tinha descrito as conversações com o seu homólogo francês, Louis de Guiringaud, como “difíceis” e Soares tinha algum receio da receção em terras gaulesas. “Medeiros Ferreira, você está a ver o que é a gente sair de Lisboa e a França dizer-nos que não!”, disse Soares antes de partir com o seu ministro. Este respondeu-lhe: “Bom, nessa altura, vou eu, que sou muito novo, à televisão, dizer que o responsável sou eu, digo que me enganei redondamente e peço a minha demissão, não há problema nenhum”.
O antigo ministro descreve no seu testemunho que a reunião acabou por ser mais cordial do que se esperava — não houve nem conferência de imprensa, nem jantar conjunto –, no entanto, a França avisou em comunicado de imprensa que “uma comunidade a doze não pode funcionar de acordo com as mesmas regras que uma comunidade a seis” e que o alargamento dependeria “mais de critérios objetivos do que de prazos fixados com antecedência”, como evidencia o livro “O pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias” da autoria de Francisco Niny de Castro.
Ao mesmo tempo que negociava na frente europeia, Mário Soares estava com um pé nos Estados Unidos, procurando apoio do FMI e da Casa Branca para um resgate financeiro que permitisse a viabilidade do país. “Horrorizava-me a ideia de poder verificar-se uma quebra financeira – que esteve várias vezes iminente, de resto – e em consequência, poderem ser pedidos drásticos sacrifícios ao povo português”, defende o antigo primeiro-ministro e Presidente no livro “Democracia”, de Maria João Avillez. Entre 1977 e 1978, Portugal recebeu cerca de 111 milhões de euros (conversão feita pelo próprio FMI para moeda atual) de ajudas externas para fazer face ao défice, desemprego e aumento dos preços da energia.
O início do fim da ilusão europeia
A resposta da CEE sobre a adesão de Portugal chega em junho de 1978, quando os nove Estados-membros dão luz verde ao início das negociações. No parecer da Comissão, remetido posteriormente ao Conselho Europeu, lê-se que “a Comunidade não pode deixar Portugal fora do processo de integração europeia”, porque “a deceção que poderia resultar de uma tal atitude, seria politicamente muito grave e constituiria uma fonte de importantes dificuldades”.
Para Êrnani Lopes, que em 1979 chefiou a missão de Portugal junto das Comunidades Europeias e mais tarde foi ministro das Finanças do Governo do Bloco Central, entre 1983 e 1985, a situação política fez com que a organização tivesse apenas um objetivo primário e fundamental: “Estabilizar uma forma democrática de Estado em Portugal, evitando um cerco e uma zona de perturbação no canto Sudoeste da Europa”, escreveu no livro “Portugal e a Integração Europeia”. Em 2005, o antigo ministro disse mesmo, em entrevista ao Público, que “quando já não tinha mais argumentos na negociação, tinha sempre uma tábua de salvação: chamava-se doutor Álvaro Cunhal”.
O medo da implantação de um regime comunista, quer em Portugal, quer em Espanha e na Grécia, foram o primeiro motor das negociações entre Bruxelas e estes países, mas rapidamente surgiram dificuldades. Em setembro de 1976, o Expresso refere que o Governo português apontava para um período de negociações de cerca de três anos que “poderá encurtar-se (pouco provável) ou dilatar-se consoante a evolução do processo através do qual Portugal procurará minorar os custos, nomeadamente os de índole económica, e maximizar os benefícios”.
Passados dois anos, em maio de 1978, o Expresso publica um relatório de vários deputados franceses que indica que o período de transição de Portugal “não parece poder ser fixado antes de 1983-1985, tendo em conta amplitude da tarefa a levar a cabo”. Este relatório indica ainda que a adesão é “uma verdadeira base de um consenso nacional”, mas questiona a capacidade de setores como a agricultura de “resistirem aos grandes ventos da concorrência dos Estados-membros da CEE e sobretudo dos vizinhos espanhóis”.
Algumas semanas depois, o editorial do Expresso intitulado “Visão menos cor-de-rosa da entrada na CEE” admitia que este processo podia demorar até 10 anos, e apesar da posição europeísta do jornal, avisava que, à partida, as condições de adesão dos países eram “más”. A aptidão agrícola de Portugal era “fraca”, o investimento estava “em baixo”, com a estrutura industrial assente em setores como o calçado e os têxteis que estavam em “fase de depressão”, “o desgaste das reservas” era conhecido, Portugal importava o dobro do que exportava e a inflação não estava controlada.
No meio de tudo isto, o I Governo Constitucional formado pelo PS, caiu. Mário Soares ainda ensaiou um segundo Governo com três ministros do CDS e apoio parlamentar dos centristas, que duraria apenas oito meses. Seguiram-se três governos de iniciativa presidencial, dirigidos por Alfredo Nobre da Costa, Carlos Mota Pinto e Maria de Lurdes Pintassilgo, respetivamente. Nenhum desses governos conseguiu, porém, o apoio parlamentar necessário para se manter em funções, agravando-se ainda mais a instabilidade política vivida no país.
Dentro e fora, as dificuldades crescem
Entre 1977 e 1986, Portugal teve 10 governos diferentes, mantendo uma presença permanente em Bruxelas e com negociações a decorrer durante grande parte deste período. Para Êrnani Lopes, a chave do sucesso e a manutenção das negociações estava no dispositivo montado pela diplomacia portuguesa, segundo relatou no livro “Portugal e a Integração Europeia”. Desde logo, o país definiu que o chefe da negociação “em termos políticos operacionais” seria o ministro das Finanças.
“A posição em termos de posicionamento estratégico de Portugal, nas negociações, ao longo de oito anos e quatro horas, foi a mesma; não era uma rigidez, mas uma condição prévia para ter flexibilidade, para saber o que se estava a fazer, apesar das flutuações de Governos”, escreveu Ernâni Lopes.
De resto, o antigo ministro considerou que foram elementos fundamentais a Comissão de Integração Europeia, o seu Secretariado e os vários gabinetes existentes em todos os ministérios. Alguns dos principais intervenientes por parte de Portugal foram António Siqueira Freire, chefe da missão portuguesa em Bruxelas, Pedro Pires de Miranda, presidente da Comissão para a Integração entre 78 e 82, e António Marta, presidente da Comissão para a Integração, de 82 até à adesão. Em 1983, dossiers como Movimentos de Capitais, Transportes, Política Regional, Questões Económicas e Financeiras, Fiscalidade, União Aduaneira e Relações Externas estavam fechados, mas as negociações já contavam com duas paragens forçadas e vários contratempos.
Em 1980, Giscard d’Estaing, pressionado internamente pelos agricultores franceses, que temiam a entrada de Espanha na organização, pede a renegociação da Política Agrícola Comum (PAC), impondo às negociações um bloqueio que vai durar cerca de dois anos, num dos temas mais importantes nas negociações. “Eu digo claramente: não é aceitável para a França que o rendimento dos nossos agricultores se torne um problema e que sirva como meio de pressão do exterior. Eu não aceitarei que os agricultores franceses sirvam de reféns para uma pressão global sobre a política económica e financeira do nosso país”, afirmou o Presidente francês.
Tanto a França como a Grécia – recém-membro da União – acabariam por ser compensados através do Programa Integrado Mediterrânico. Mais tarde, este programa estendeu-se também a Itália.
Aquando a crise no seio da CEE, Portugal já tem novo Governo. É liderado por Sá Carneiro e Freitas do Amaral, numa coligação de direita entre PSD e CDS. O responsável pela pasta dos Negócios Estrangeiros é então Freitas do Amaral que diz, em janeiro de 1980, perante a Assembleia da República que “a rápida e completa integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia, como membro de pleno direito, é o principal objetivo internacional deste Governo e passará doravante a constituir a prioridade das prioridades da política externa portuguesa”.
Foi durante o Governo da AD, liderado por Sá Carneiro, que Portugal acedeu aos fundos de pré-adesão, cerca de 130 milhões de euros na moeda atual, segundo calcula Freitas do Amaral no segundo volume das suas memórias políticas — viriam ainda para o país mais 65 milhões até 1984. A tragédia de Camarate pôs fim a este Governo e no período que se seguiu, em que Pinto Balsemão foi primeiro-ministro, a presidência belga introduziu uma nova mecânica nas negociações que as fez avançar através da aprovação de temas em pacotes. Novas reivindicações francesas sobre a PAC e uma transição por etapas vêm atrasar novamente as negociações em 1982.
As maratonas negociais e o claustro dos Jerónimos
Já com um novo Governo de Bloco Central em 1983 e “com uma opinião pública [portuguesa] que manifesta o seu desencanto e pessimismo face a uma CEE que parece não nos querer”, segundo ressalva o Expresso, Portugal entra na reta final das negociações sem fechar capítulos tão importantes como as Pescas, a Agricultura e os Assuntos Sociais. A Europa atravessava então um período de “euroesclerose” em que os resultados práticos da comunidade tardavam a ser notados e em que o alargamento parecia ser a face mais visível – preparava-se então o Ato Único Europeu, que veio rever os Tratados de Roma com o objetivo de relançar a integração europeia e concluir a realização do mercado interno.
Em Portugal, a situação não era melhor. O país enfrentava a mais grave crise financeira que conhecera desde o 25 de Abril, vendo-se por isso na necessidade de negociar um novo acordo com o FMI. Essa vai ser, de resto, uma das primeiras iniciativas do governo do Bloco Central formado após os resultados das legislativas de Abril de 1983. O executivo formado por PS e PSD vê-se, assim, na necessidade de implementar um conjunto de medidas de austeridade com o objetivo de debelar a grave crise que assola o país e salvaguardar que Portugal reúne as condições necessárias para concluir o processo de adesão à CEE. Só no decorrer desse ano é que a França, já liderada por Mitterrand, apoiou a ideia de que “o alargamento tinha de ficar claramente separado de outros conjuntos de problemas que a CEE tinha a resolver”.
É este impasse e ao mesmo tempo este apoio socialista, que leva Mário Soares a pedir então um documento que estabelecesse a irreversibilidade de todo este processo. “Em fins de outubro, numa viagem que fiz à Irlanda, a convite do primeiro-ministro Garret Fitzgerald, presidente em exercício das Comunidades, convenci-o a assumir um documento intitulado constat d´accord (uma fórmula do Direito Civil francês que procurei aplicar, por analogia, ao Direito Internacional), em que se reconhecia que nada impedia a adesão de Portugal à CEE. O presidente da Comissão, o luxemburguês Gaston Thorn, também aprovou, a meu pedido, essa fórmula. Lembro-me de que quando regressei a Portugal vinha eufórico”, lembra o então primeiro-ministro no seu livro de memórias “Um político assume-se”. Definiu-se então que a data da assinatura dos Tratados de adesão, tanto para Portugal como para Espanha, ficaria marcada para junho de 1985, já sob a égide de Jacques Delors, que desde 1984 era presidente da Comissão.
As grandes maratonas negociais que definiram regimes de transição de sete anos na agricultura, com quotas de exportação em setores como o vinho, e reorientaram o setor pesqueiro português, introduzindo os chamados Totais Autorizados de Captura e quotas nacionais, aconteceram em março e abril de 1985.
Na maratona negocial que decorre entre 28 e 29 de março, as conversas decorrem entre as quatro da manhã e as três da tarde, sob orientação da presidência italiana. O Expresso diz que, ao saírem dessa negociação, os diplomatas, governantes e técnicos portugueses estavam “extenuados e com a barba por fazer”, mas contentes pelos resultados alcançados. Em entrevista ao Público em 2005, Ernâni Lopes contou que durante essas longas noites em Bruxelas descobriu que o edifício onde decorriam as negociações tinha um bar aberto toda a noite e que depois de encontrar um holandês “aviado” nos corredores, proibiu toda a delegação de beber álcool — “nem um grama”.
O ministro revelou ainda, na mesma entrevista, que um dos últimos pontos de desacordo foi novamente com a Grécia devido ao concentrado de tomate. Os gregos queriam uma transição mais lenta deste produto português e Lopes não aceitava. “O ministro grego era o único que não estava de acordo e dizia que não abdicava. Eu disse-lhe para falar com o primeiro-ministro dele e resolver o problema. ‘Mas ele está a dormir’, respondeu-me. ‘Então acorde-o’. Não sei o que se passou, mas voltou meia hora depois a dizer que já tinha instruções…”, lembrou o antigo ministros das Finanças. Outros episódios caricatos incluem negociações num vão de escada e o estabelecimento do plano de apoio às indústrias portuguesas numa folha A4, com contas feitas à mão.
A própria cerimónia de assinatura do Tratado fugiu à habitual rigidez de Bruxelas, quando o Governo português insistiu em organizar um evento em território nacional — no mesmo dia, o acordo seria também assinado em Madrid. Assim, na manhã de 12 de junho de 1985, Mário Soares estava pontualmente em frente à Torre de Belém para receber os seus homólogos europeus, assinalando o culminar de oito anos de conversações e de avanços e recuos na política europeia. Entre as 11 delegações que acorreram a Belém nessa manhã, conta-se também um táxi de turistas nórdicos que, sem se saber bem como, também chegaram às celebrações, furando involuntariamente o perímetro de segurança. Mais tarde, perante mais de 500 convidados, o Tratado foi formalmente assinado nos claustros dos Jerónimos e em seguida no Palácio do Oriente, em Madrid — a ordem foi definida pela data de entrega dos pedidos de adesão.
“Este monumento, património artístico universal, exprime bem o génio português e constitui uma referência insubstituível da sua história multissecular. Daqui, partiremos, pois, fechado o ciclo imperial, simbolicamente para uma nova arrancada que reinsira Portugal no contexto da unidade europeia, participando de pleno direito do seu dinamismo e progresso. Quero acreditar que o ato a que acabam de assistir pode, sem exagero, considerar-se como um dos momentos mais significativos da história portuguesa contemporânea, constituindo ao mesmo tempo para a Europa das Comunidades um passo decisivo de confiança em si própria, de alargamento das suas potencialidades e também de abertura em relação ao exterior”, disse então Mário Soares. A coligação que sustentava o Governo caiu pouco depois – aguentou-se depois de Cavaco Silva ganhar a liderança social-democrata devido exatamente à necessidade de concluir este processo – e a entrada formal na CEE, em janeiro de 1986, já aconteceu com Cavaco Silva como primeiro-ministro e passado pouco tempo, com Soares como Presidente da República.