Em 1994, quando se estreia o “Rei Leão” nos cinemas, eu tinha 12 anos e uma franja para disfarçar as borbulhas da testa. Hoje tenho 37 e um filho a quem comprei – na semana em que nasceu — um Rafiki a segurar um Simba, essa espécie de símbolo da fertilidade contemporâneo. Em 2019 não tenho borbulhas na testa, mas tenho rugas.
Para a minha geração, o clássico da Disney será dos filmes que mais se associa à ideia de família. Por isso, deixo a advertência: rever o original depois de se ter aberto a sua própria sucursal familiar é ainda mais doloroso do que na meninice. Estas foram, em tempo real, as coisas que me passaram pela cabeça depois de ter carregado no play.
[o trailer de “O Rei Leão”, de 1994:]
1. Arrancamos com aquela parte da letra em zulu que todos cantamos sem fazer a mínima ideia de como é na verdade. Desde que esteja foneticamente perto, está bom. Como diria o João Miguel Tavares, quem é que se interessa por seja o que for em zulu?
2. Imagens de animais reunindo-se na savana. No outro dia ouvi uma criança com uns 10 anos a perguntar se havia pessoas em África ou só “erva e animais”. Suponho que tenha aprendido tudo o que sabe sobre o continente africano com este filme. De facto, nunca aparece a figura humana – e eu podia agora filosofar sobre o Homem como o verdadeiro predador, mas estamos a chegar ao refrão e não temos tempo.
3. Admito que acho o “Circle Of Life” super azeiteiro, mas canto com garbo e empenho.
4. Surge Simba bebé. Credo, uma pessoa depois de ter parido a sua própria descendência ainda o acha mais fofo (inserir aqui emoji do coração).
5. E chega o momento icónico: Simba levantado no ar por Rafiki. A cena eternamente mítica lembra-me sempre este momento do Modern Family:
https://www.youtube.com/watch?v=ytXd7ljLhg8
6. Apercebo-me agora que o filme deve ter sido financiado pelo PPM, já que mais pró monárquico do que isto não existe. Todos a prestar vassalagem ao futuro Rei Simba!
7. Sinto um certo tremor ao ver aparecer o Scar, quiçá o mais pérfido e elegante vilão Disney de sempre. Tensão com o rei Mufasa, seu irmão, por não ter ido à apresentação do sobrinho. Coitado, se calhar achou que era um sarau de Educação Física da escola, e ninguém tem pachorra para isso. A tensão entre irmãos e a ascensão do tio como mau da fita dá força à teoria não-oficial de que o argumento de “Rei Leão” é baseado em Hamlet de Shakespeare.
8. Após a discussão, o conselheiro real (e pássaro) Zazu vaticina sobre o feitio difícil de Scar: “há um em cada família. Na minha até há dois”. A ensinar desde cedo às crianças porque é estranha a consoada quando se junta finalmente quem se ignora o resto do ano. Boa.
9. Flash forward para um Simba criançola mas não bebé, que acorda cheio de pica de madrugada. Reconheço em primeira mão a discussão conjugal sobre quem se levanta para ir aturar o puto. Perde o pai.
10. Mufasa explica a Simba as fronteiras do reino, dizendo que um dia tudo o que a luz tocar será dele. Que otimistas, a não contarem com a especulação imobiliária. Aquele embondeiro agora é um Alojamento Local.
11. Mufasa ressalva que Simba não poderá ir até às zonas sombrias. Sabemos todos que vai desobedecer, certo? Mufasa, eu também estou sempre a dizer ao meu puto para não brincar com as frigideiras e não tenho sorte nenhuma. Estamos juntos, bro.
12. Scar lança uma espécie de armadilha de psicologia inversa ao seu sobrinho para que este vá à zona sombria. Diz-lhe que está lá uma coisa super interessante para uma criança. Será uma Kidzania? O Zoomarine? Não, é um cemitério de elefantes. Já não percebo nada dos gostos desta malta nova.
13. Bem dito, bem feito: Simba decide ir ao cemitério de elefantes e leva a sua amiga Nala. Porquê? Porque armar-se para as gajas é ancestral e intergeracional.
14. Zazu não só se faz convidado do passeio para fazer de vela de Simba e Nala, como ainda vem com uma conversa bastante desconfortável sobre casamentos arranjados. Assim nunca vamos saber se os dois leões se amam verdadeiramente ou se foi tudo para as famílias dividirem casa na Comporta.
15. Novo momento de cantoria, desta vez com “Eu Mal Posso Esperar Por Ser Rei”. Estou a ver a versão original, mas as músicas na minha cabeça vão ser sempre daquela cassete em português gravada por uma colega de escola. O “Rei Leão” foi a primeira dobragem Disney em português de Portugal. Em contraponto, só consigo cantar o “Aqui No Mar” da “Pequena Sereia” em português do Brasil.
https://www.youtube.com/watch?v=71yzjs1X75g
16. Os fedelhos lá conseguem despistar o cota do pássaro. Segue-se uma luta na brincadeira com uma tensão sexual que me deixa desconfortável tendo em conta que são crianças, pá.
17. Surgem pela primeira vez as detestáveis hienas. Lembram-me o director de marketing de uma empresa na qual trabalhei.
18. Simba e Nala em risco, mas o pai Mufasa vai salvá-los, qual alma penada que vai fazer de Uber à porta do Urban Beach às quatro da manhã para ir buscar os seus adolescentes a cheirar a vodka Red Bull.
19. Mufasa declara: “Estou muito desiludido contigo”. Nesta discussão, estou indubitavelmente do lado do pai. Acho que com 12 anos não estava.
20. Conversa fofinha entre pai e filho. Começo a ter um nó na garganta pelo que já sei que aí vem. Maldita sejas, Disney, sua vil traumatizadora.
21. Não me lembrava desta canção do Scar sobre a tusa que o poder lhe dá. Com o sotaque tão british de Jeremy Irons acaba por soar a David Bowie. A letra é ligeiramente eleitoralista para com as hienas, o que é estranho numa monarquia.
22. Scar monta uma nova armadilha para o sobrinho, dizendo que tem surpresa para ele se for ter a determinado sítio. Eu não quero spoilar, mas aposto que é um Beyblade. Ou slime. Os putos adoram slime.
23. Simba é atacado por uma manada de antílopes comandada por hienas. Sinto que há aqui uma metáfora qualquer com a Fenprof, mas não quero chatices para o meu lado como teve o cruzadex do Expresso.
24. Ai. É agora. Nem quero olhar.
25. E pronto, morreu o Mufasa. Credo, foi mais difícil ainda de ver 25 anos depois. Mil vezes pior agora que se sabe mais sobre a fragilidade da vida. Estou quase a vomitar a carbonara que comi há pouco. Ai, e pai-morto e filho-vivo estão enroscados. Quero ir buscar o meu puto à creche e agrafá-lo ao meu peito.
26. Scar culpa Simba pelo que aconteceu, garantindo-lhe assim anos de terapia. Que é uma coisa caríssima. Acreditem, eu sei.
27. Com a morte de Mufasa e a fuga de Simba, Scar torna-se rei e anuncia nova era. Então é isto a ascensão da extrema direita.
28. AH, FINALMENTE O TIMON E O PUMBA PARA VOLTARMOS A TER ALEGRIA EM VIVER!
29. O javali e a suricata consolam Simba com aquilo que pode até parecer um pouco coaching manhoso. Mas acredito mais em Hakuna Matata que em toda a secção de auto-ajuda da Fnac.
30. Os teus problemaaaas são para esqueceeeeeer! P’ra sobreviveeeeer, tens de apreeendeeeer! AGORA TODOS!
31. Timon e Pumba resolvem criar Simba como vegan. Gente, o PAN está a planear a sua ascensão há décadas!
32. Simba cresce, saudável e garboso, transformando Timon e Pumba num símbolo da adopção gay:
33. Rafiki percebe que Simba está vivo, numa espécie de Cartas da Maya versão “gatafunhos com fruta espremida na parede”.
34. Pumba é quase caçado por Nala (eu culpo o novo James Bond por isto das fêmeas estarem tão saídas da casca). Esta inusitada escolha de snack faz com que Nala e Simba se reencontrem, como aqueles colegas de secundário que se descobrem gordos e grisalhos no FB.
35. Momento “Can You Feel The Love Tonight”, esse clássico de karaoke que ainda paga a conta da água do jacuzzi do Elton John.
36. Acaba o karaoke, Simba e Nala começam logo a discutir. Parece que estou a ver o “Casados À Primeira Vista” naquela fase em que já não se podem ver à frente.
37. Simba tem uma conversa com Rafiki, que possibilita depois que tenha uma conversa com o seu pai que está envolto em fumo colorido e estrelas. A conclusão é óbvia: Rafiki é claramente traficante de estupefacientes.
38. Simba volta assim para tomar o reino que é seu por direito , tipo filho do CEO que foi fazer gap year e agora regressa cheio de rastas e com uma tatuagem feita em Bali para tomar conta da empresa do papá.
39. Simba e os seus amigos planeiam o golpe de estado, uma espécie de primavera árabe mas na savana.
40. Scar ainda tenta meter toda a gente contra Simba, mas num momento absurdo de vaidade assume que foi ele que matou Mufasa. O que mostra que Scar não percebe nada de código penal nem viu o “Making a Murderer” na Netflix.
41. Scar ainda tenta dizer que são as hienas as verdadeiras culpadas por todo este descalabro. No fundo, como alguns políticos fazem com os emigrantes.
42. Segue-se uma luta entre Simba e Scar em slow motion. É suposto ser tenso, mas para mim só parecem os meus gatos a lutar sobre quem dorme no bidé.
43. Scar é morto pelas hienas e Simba transforma o reino, que estava um pardieiro, num local com o feng shui reposto. Suspeito que chamou o “Querido, Mudei A Savana”.
44. O filme acaba com o tal “circle of life” em pleno funcionamento, com a apresentação de um novo bebé, filho de Simba e Nala. Não ficámos a saber o nome. Eu voto em Archie.
45. Eu envelheci nestes 25 anos. O “Rei Leão” continua enxuto e saudável. Este filme é que devia fazer anúncios ao Calcitrin.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa.