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Nas consultas que dá no privado, o pneumologista Carlos Robalo Cordeiro atende dez doentes por dia. Cinco deles sofrem de Covid longo (long covid, em inglês). “É a nova pandemia”, diz o também diretor de Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar de Coimbra. Os efeitos podem afetar o cérebro, a pele, os pulmões, o coração e os rins, para além de outros órgãos, e prolongam-se por mais de três meses, mesmo depois de o doente ter recebido o carimbo “curado de Covid-19”. São efeitos que não poupam os mais novos, nem sequer os que tiveram doença ligeira, e, para já, não há dados nacionais, nem protocolos de como seguir estas pessoas. A Direção Geral de Saúde, em resposta ao Observador, diz estar a preparar uma norma para o efeito, enquanto os médicos apontam para um mínimo de 80 mil doentes a sofrer de sequelas que podem ser irreversíveis. Só o tempo o dirá.
“Através de estudos internacionais sabemos que aproximadamente 10% dos doentes que tiveram Covid podem ter sequelas e manter sintomas após seis meses. Por enquanto, a comunidade científica não tem dados para perceber se são irreversíveis, ou não”, conta Carla Araújo, especialista em medicina interna no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. No seu serviço, a pressão dos internamentos não para de aumentar e o número de long covid também não.
Também no Hospital Pulido Valente os serviços começam a ficar cheios com estes doentes, assim como nas unidades de Coimbra. Filipe Froes, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Médico-Cirúrgicos do hospital de Lisboa, explica que a afluência se sente mais nas consultas, mas também já chega aos internamentos.
Dados nacionais, pedidos pelo Observador à DGS, não existem, uma falha que para os médicos importa resolver o quanto antes. O mesmo dizem em relação às regras uniformizadas sobre como lidar e encaminhar estes doentes, norma que a DGS promete ter em breve, sem se comprometer com datas.
“O que temos são dados de outros países. Não há estudos nacionais e estou a desenvolver, neste momento, um projeto para um estudo piloto porque precisamos de ter informação sobre quantos são os doentes e quais são os sintomas mais frequentes. Se, a 7 de junho, tínhamos 812.174 doentes recuperados e 23.824 com a infeção ativa, fazendo a conta dos 10%, temos mais de 80 mil doentes que potencialmente irão sofrer, ou já sofrem, de long covid”, esclarece a médica internista, membro do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19.
“Também não há um verdadeiro protocolo nacional para estes doentes e, neste momento, cada hospital — público ou privado — vai fazendo à sua maneira, organizando-se. A DGS vai ter de avançar muito rapidamente com alguma norma porque estes 80 mil doentes vão precisar de apoio e o SNS já está sobrecarregado”, defende Carla Araújo. “Estamos a aperceber-nos de que temos de estar muito bem organizados.”
Sobre a norma da DGS, ela já peca por tardia, dizem. “Já vamos tarde. A sorte é que no terreno nós adaptamo-nos imediatamente”, diz Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise.
Números “preocupantes”. O SNS consegue adaptar-se?
Mesmo sem dados oficiais, tudo aponta na mesma direção: pelo menos, um em cada dez doentes de Covid-19 vai ter queixas para lá das 12 semanas. É esse o cenário desenhado pela Organização Mundial de Saúde, mas que pode piorar, à medida que estes doentes vão acumulando mais dias com sintomas. No Reino Unido, um estudo recente, de fevereiro, analisou as sequelas em adultos após 6 meses de infeção e já coloca o valor nos 30%.
No Canadá, um estudo feito apenas a doentes com sintomas persistentes mostra que a maioria, 70%, precisou de faltar ao trabalho e pôr baixa médica.
Em Espanha, um estudo idêntico, mostra que são as mulheres e pessoas jovens quem mais sofre de Covid longo — o que não corresponde ao perfil típico (idosos com comorbilidades) do doente Covid que teve sintomas graves. No inquérito da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família, 79% destes doentes são mulheres, com idade média de 43 anos. Metade dos afetados têm entre 36 e 50 anos e os sintomas têm duração média de 185 dias, ou seja, mais de seis meses. Em alguns casos, os sintomas duravam há mais de 230 dias.
Dois outros estudos, da Universidade de Leicester (Inglaterra) e da Universidade de Glasgow (Escócia), também apontam para maior incidência nas mulheres, embora sejam pré-publicações que ainda não passaram pela avaliação dos pares (peer review). O estudo escocês conclui, por exemplo, que as mulheres com menos de 50 anos têm 7 vezes mais probabilidades de sofrer de falta de ar do que homens da mesma idade.
Carlos Robalo Cordeiro, vice-presidente da Sociedade Europeia de Pneumologia e membro do gabinete de crise, foi-se apercebendo do que o esperava ao trocar informações com colegas de outros países, e, em Coimbra, já estão a desenvolver consultas de apoio para Covid longo.
“Em Portugal, os dados que existem estão muito dispersos. Num hospital do Norte havia alguns números, mas muito preliminares. Não há dados epidemiológicos sustentados, mas o que sabemos é muito preocupante. São 80 mil, 90 mil doentes, a manter sintomas durante meses”, detalha o médico. “Havia a noção de que um terço dos doentes mantinha mais do que um sintoma até aos 3 meses, agora vemos que um décimo mantém sintomas para lá desse período”, explica o também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Quando se fala da infeção pelo vírus da Covid-19, o que a literatura médica nos diz, explica o pneumologista, é que a fase aguda da doença dura até um mês. Em seguida, há a fase Covid on going para quem tem sintomas persistentes até 3 meses e, por último, a fase pós-Covid, ou o long covid, com sintomas persistentes para além das 12 semanas. “São estes últimos que são preocupantes, que podem ser mais críticos para os nossos serviços”, diz Robalo Cordeiro.
Mas num país de 10 milhões de habitantes, serão estes potenciais 80 mil doentes que podem levar o SNS a um colapso? A questão é que não se trata do nascimento de 80 mil portugueses que, quase automaticamente, se tornam utentes do SNS (o ano passado nasceram 84.296 bebés em Portugal). O problema é o afunilamento: o número de doentes com sequelas ligadas aos pulmões, por exemplo, podem deixar os serviços sem resposta. O exemplo é de Robalo Cordeiro: se, dos 80 mil, mil precisarem de ser seguidos por um pneumologista será suficiente para não haver respostas atempadas.
“Os médicos são os mesmos. Se juntarmos mais umas centenas de doentes por ano às consultas de patologia intersticial, não aguentamos. O sofrimento vai ser na Pneumologia e, muito em concreto, junto de quem se dedica às doenças do interstício pulmonar, como eu. Em Espanha e em Itália já perceberam isso”, diz Robalo Cordeiro.
O interstício pulmonar serve de suporte ao pulmão e está localizado entre os alvéolos pulmonares (bolsas de ar). Quando estes tecidos estão inflamados, ou quando cicatrizam, fala-se de doenças do interstício pulmonar que afetam a capacidade respiratória e dão origem a sintomas como a falta de ar ou tosse.
O risco de perder doentes dentro do sistema
Robalo Cordeiro não tem dúvidas de que alguns doentes de Covid longo podem ficar por diagnosticar, até por não apresentarem queixas na observação. E conta um caso que passou pelo seu consultório.
“Um doente com asma, 50 e poucos anos, teve Covid em janeiro, doença ligeira. Não agravou a asma nem teve de fazer ajustes na terapêutica.” Mais tarde, já depois de curada a Covid, ao estudar a função respiratória do paciente, o médico percebeu que “estava com uma difusão baixíssima, em assintonia com a doença inicial, e que acabou por ser revertida” com medicação. Se não tivesse feito o estudo, apenas pela auscultação, o pneumologista diz que não se teria apercebido daquele sintoma.
Carla Araújo tem o mesmo receio. “Quem tem cansaço e tosse persistente vem ter connosco, mas há outros sintomas que podem não ser valorizados ou relacionados com a Covid. Quando o sintoma é falta de concentração, o doente pode nem perceber que está com síndrome pós-Covid.” A internista defende que estes doentes não podem ficar perdidos no sistema, nem abandonados, sendo necessário “haver capacidade para referenciá-los para consultas em que os saibam tratar”.
Sintomas: da dor de cabeça à fibrose pulmonar
A lista que se segue não é animadora. Inflamação nos pulmões. Fibrose pulmonar. Atingimento do músculo cardíaco que pode evoluir para insuficiência cardíaca. Miocardites. Alterações neurocognitivas e psiquiátricas. Perda de memória. Falta de concentração. Perda do olfato. Perda do paladar. Tosse persistente. Fadiga. Dores de cabeça. Diarreia. Febre. Falta de ar. Disrupção do ritmo do sono. Fraqueza muscular. Todos são sintomas, segundo Carla Araújo e Robalo Cordeiro, que podem afetar quem sofre de long covid.
No estudo da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família foram observados mais de 200 sintomas, sendo os mais comuns a fadiga, o mal-estar geral, as dores de cabeça e a falta de ar. Numa lista idêntica, do Instituto Nacional de Estatísticas britânico (ONS), a fadiga também está no topo, seguindo-se a tosse, a dor de cabeça e a mialgia (dor muscular).
“O long covid pode afetar o cérebro, a pele, os pulmões, o coração e os rins. No fundo, pelo que sabemos até agora, pode afetar todos os órgãos do corpo e aí estamos a falar de uma doença multissistémica [doença que afeta todos os sistemas do corpo]”, defende Carla Araújo. “Isto coloca-nos outras questões: que tipo de medicamentos se deve dar a estes doentes? A ciência terá de evoluir e vai ser muito importante a medicina física e de reabilitação porque são elas que vão trabalhar a musculatura respiratória.”
Alguns sintomas podem afetar a qualidade de vida, lembra a internista, que aponta como exemplo a anosmia, a perda de olfato. “É um sintoma muito frequente na fase aguda, mas que pode obrigar a treinar o olfato: cheirar café, chocolate”, explica a médica do Beatriz Ângelo. “Também há doentes que nos dizem que não conseguem ler uma página de um livro do princípio ao fim. Precisamos de mais estudos, de perceber os motivos, de saber se após seis meses o doente recupera ou fica assim, se perdeu capacidade cognitiva. Agora é que vamos ter uma segunda pandemia.”
Por tudo isto, Carla Araújo argumenta ser fundamental pensar o quanto antes na resposta a estes doentes e preparar o SNS para integrá-los, numa resposta que, acredita, terá também de passar pelo setor privado e social. E deixa um alerta: “A vacina não tem 100% de eficácia e mesmo quem tem Covid ligeiro pode vir a ter sequelas. Se surge um sintoma novo passado um mês é importante perceber se está ou não ligado à Covid.”
Robalo Cordeiro defende que tudo isto são motivos suficientes para que os mais jovens “que fazem vida como se não houvesse vírus” estejam alerta para o que pode vir a seguir. “O desenvolvimento do pós-Covid não está ligado à gravidade da doença, nem à idade. Há doentes que geriram a doença no domicílio, sem febre, sem falta de ar, sem fazer um raio-x ao tórax e que hoje têm o pulmão com padrão em vidro despolido. Têm uma inflamação, com potencial de reversão, mas com evolução de encaminhamento para fibrose pulmonar.”
Fala-se de padrão em vidro despolido quando um exame revela uma imagem desfocada que traduz infeção no pulmão. Já a fibrose pulmonar é uma doença rara, em que ocorre cicatrização do tecido pulmonar, com espessamento e rigidez e não tem cura. “Manter uma tosse é uma coisa, outra é perceber se há alterações estruturais que podem evoluir para fibrose pulmonar”, argumenta o médico, para quem o problema da Covid-19 não é apenas a doença aguda, mas tudo aquilo que pode acontecer a médio e longo prazo.
Por tudo isto, defende a necessidade de manter os doentes Covid sob olhar atento, fazendo exames para despistar eventuais sequelas. “Todos os doentes deveriam fazer uma radiografia de tórax porque pode haver surpresas. É muito importante fazer um estudo funcional dos pulmões, análises gerais, da função hepática e da renal e provas de esforço cardiorrespiratório. Neste momento, estamos com uma pandemia de fibrose pulmonar.”
Dependendo dos resultados, os dois encaminhamentos mais prováveis serão para a consulta de cardiologia ou para a do interstício pulmonar, mas não só: “A reabilitação cardiorrespiratória é fundamental e muitos destes doentes devem ser também acompanhados na componente psicológica”, defende o pneumologista.
E o que ainda se pode fazer, ao nível do SNS, para evitar que esta segunda pandemia se torne pior? “É muito difícil responder, temos imensas dúvidas até sobre a forma como poderíamos ter evitado isto. Hoje já há antifibróticos. Teria evoluído a doença de outra forma se os tivéssemos utilizado?”, questiona Robalo Cordeiro. “Com a escassez de recursos, de uma coisa vai necessitar: enorme articulação com os cuidados de saúde primários, vias verdes de encaminhamento e racionalização no encaminhamento para perceber se os doentes têm de seguir para pneumologia ou se podem ser geridos noutro serviço.”