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Reportagem publicada originalmente a 12 de agosto de 2016, data em que assinalaram os 17 anos do Crime de Ílhavo, e republicada a 2 de março de 2017 por altura da notícida da liberdade condicional de Tojó.
O jardim está agora cuidado e o amarelo veio dar cor ao cimento das paredes da casa, ainda em construção naquele ano de 1999. Foi ali, em Vale de Ílhavo, que há 17 anos um médico e a mulher foram brutalmente assassinados pelo próprio filho. António Jorge, mais conhecido por Tojó, já cumpriu mais de metade de uma pena de 25 anos de cadeia. Diz que quer ser analista financeiro mal seja libertado, mas o tribunal insiste que ainda não interiorizou o crime e não o deixa sair em liberdade condicional.
Foi naquela mesma casa que a GNR de Ílhavo encontrou os corpos do médico Jorge Machado e da mulher Maria Fernanda. O casal tinha sido esfaqueado até à morte num cenário que intrigou a polícia. Por um lado, não havia qualquer sinal de arrombamento na casa ainda em construção. Por outro, tinham desaparecido pequenos bens e o carro do casal não estava na garagem.
O filho de Jorge e Maria Fernanda acabou detido dias depois como o principal suspeito do crime. Não seria o único. As autoridades acreditavam haver mais suspeitos e até conseguiram levar a tribunal, em 2001, a mulher e um amigo de Tojó. Todos eles se sentaram no banco dos réus acusados de duplo homicídio. Contra eles estava a convicção da PJ e vestígios de ADN na vivenda em cimento. Mas só Tojó acabou condenado, em abril de 2001, a 25 anos de prisão. Foi o único que confessou.
Tojó tinha 23 anos quando os guardas prisionais o levaram para a cela onde hoje permanece. Desde então tem mantido um comportamento exemplar, sem qualquer repreensão ou sanção. Ao Observador, um guarda prisional de Coimbra diz mesmo que o recluso tem um “irritante excelente comportamento”, que em nada se coaduna “com o macabro crime que cometeu”.
Aos 40 anos, e com 17 anos de pena cumprida, Tojó já trabalhou como faxineiro na biblioteca e na sala de música. Ainda frequentou um curso tecnológico de Contabilidade e Gestão e um curso superior de Contabilidade e Auditoria, que não acabou. Inscreveu-se depois na Universidade Aberta, esteve matriculado em Marketing e Negócios Internacionais e até fez um curso de inglês. Hoje tem uma aula por dia de Desporto e outra de Música e dedica-se de forma “autodidata” ao estudo e à análise de Mercados Financeiros através do teletexto, da rádio e dos jornais. Até anda à procura de emprego.
À medida que a pena de prisão foi avançando, as visitas e telefonemas de amigos foram escasseando. E o contacto com o exterior tornou-se cada vez menor. Só uma tia e uma prima continuam a visitá-lo. Receberam-no em casa quando saiu em precária e estão prontas a acolhê-lo caso seja libertado. Só não sabem quando. Segundo o último acórdão do Tribunal de Execução de Penas (TEP) de Coimbra, de 11 de março de 2016, Tojó, “mesmo a mostrar arrependimento, precisa de interiorizar crítica da conduta praticada que lhe permita manter-se afastado do cometimento de novos factos ilícitos”. E, apesar de ter apoio psicológico desde 2002, “continua a necessitar de apoio psicológico e psiquiátrico revelando ainda alguma fragilidade emocional. O recluso deverá aprofundar a interiorização do desvalor imanente às condutas que praticou”, lê-se na sentença do TEP. Passados 17 anos, Tojó ainda não tem consciência do crime que cometeu.
Um crime como Ílhavo nunca viu
Foi por volta das quatro da tarde daquele 12 de agosto de 1999 que a GNR bateu à porta do número 60 da Rua Prior Valete, na pacata localidade de Vale de Ílhavo. Uma chamada para o posto levava a crer que ali tinha acontecido um crime. Aparentemente estava tudo calmo, não havia sinal de arrombamento, as portas e as janelas da casa ainda em cimento estavam trancadas. Até que os olhos dos militares bateram num rasto de sangue no jardim.
O rasto conduziu-os ao interior da casa onde, no primeiro andar, jazia o primeiro corpo — o de Maria Fernanda dos Santos. Já perto da cozinha, no segundo andar, estava o corpo do marido, o médico Jorge dos Santos, ainda de roupão. O casal tinha sido brutalmente assassinado. Tanto o corpo de Jorge, de 49 anos, como o de Maria Fernanda, de 48, mostravam sinais de grande violência.
A mulher, doméstica, tinha sido vítima de vários golpes de faca pelo corpo todo. O cadáver tinha sido, depois, regado com álcool. Também o corpo do médico, que prestava serviço do Centro de Saúde de Ílhavo, apresentava marcas de golpes. Um mais profundo no pescoço. Havia fósforos espalhados no chão, acendalhas e uma lata de spray. No andar de cima, o fogão da cozinha estava ligado. Quem os matou tinha tentado pegar fogo à casa, na tentativa de camuflar as provas. Mas não conseguiu que os corpos ardessem.
Da casa quase nada desapareceu. Havia alguns sinais de luta. Pouco mais. A única coisa que parecia faltar era o carro do casal, um Toyota Carina bordeaux. O cenário era suspeito e a polícia não descartou logo a hipótese de se ter tratado de um assalto que correu mal. Houve mais um dado que, naquele dia, a Polícia Judiciária, entretanto chamada ao local, registou: no dia anterior ao crime registara-se o último eclipse solar do milénio.
O único suspeito possível
A forma como tudo teria acontecido, pelo menos à primeira análise do local do crime, levava a PJ a acreditar que tinha sido alguém de casa a praticar o macabro crime. Depressa o único filho do casal, Tojó, de 23 anos, se tornou no principal suspeito. Possíveis razões? Sem grandes possibilidades financeiras e a viver em casa dos sogros, o jovem teria matado os pais para ficar com o chorudo seguro de vida em nome do pai, Jorge dos Santos. Tudo parecia bater certo, mas Tojó tinha um álibi: não se encontrava em Ílhavo na noite do crime. A polícia faz o primeiro interrogatório no dia 16, quatro dias depois dos assassinatos.
De férias desde 7 de agosto, Tojó e a mulher, Sara Machado, tinham partido de carro para Coimbra com destino a um passeio pelo litoral. Passaram por várias localidades — Figueira da Foz, Praia da Vieira, S. Pedro de Moel, Nazaré e Peniche. As noites eram dormidas em pensões e, por vezes, no carro, um Renault 19 que estava em nome do pai de Sara. Não havia dinheiro para tudo.
Segundo os depoimentos de Tojó e de Sara às autoridades, em S. Pedro de Moel, onde tinham chegado dois dias antes do crime, Tojó magoou-se durante uma ida à praia. Justificava assim a presença de ferimentos nas mãos. A história era simples. O mar estava bravo e os nadadores salvadores tinham hasteado a bandeira vermelha. A força da corrente arrastou-o para umas rochas, onde se cortou nas mãos. Apesar dos ferimentos, não quis ser assistido. Só no dia seguinte, já na Nazaré, decidiu dirigir-se ao posto de socorro da praia e mais, tarde, ao hospital.
A história contada pelos dois continuava. A 14 de agosto, dois dias após o crime, o casal apercebeu-se de que algo não estava bem num telefonema para casa. Segundo Sara, os pais dela informaram-nos que os pais de Tojó não estariam bem de saúde e que deviam regressar a Ílhavo o mais depressa possível. Foi o sogro de Tojó quem acabou por dar-lhes a notícia da morte. Tojó ter-se-á mostrado surpreendido. “Porque é que fizeram isto aos meus pais, que não faziam mal a ninguém?”, interrogou-se junta da sogra. Uma história que a polícia teve dificuldades em acreditar.
Sara voltaria a ser chamada, já perto da noite, para um segundo interrogatório. Acabaria por ceder à pressão da PJ, contando uma versão muito diferente da história que tinha relatado durante a manhã. Segundo ela, estavam os dois a almoçar num parque de merendas em S. Pedro de Moel, quando começaram a discutir sobre os gastos da viagem. Tojó era o único que trabalhava, porque ela estava a tirar o curso de Marketing, em Aveiro. Apesar do dinheiro contado, ela insistia que dormissem em pensões ou hotéis e que comessem em restaurantes todos os dias. A conversa azedou e, chateado, Tojó abandonou-a no parque com o carro, sem dizer para onde ia.
Sara ficou ali, em São Pedro de Moel, à espera que o marido regressasse. Ele voltaria só ao final da tarde do dia seguinte, a 12 de agosto, com as mãos feridas. Quando Sara lhe perguntou o que tinha andado a fazer, ele respondeu-lhe que tinha andado pela praia e que se magoara nas rochas.
Tojó percebeu que era já um suspeito à medida que as horas iam passando e os interrogatórios se iam desenrolando. “Apercebi-me que a polícia estava convencida do meu envolvimento e do da Sara e, naturalmente, foram fazendo pressão sobre mim dizendo que a Sara ia ser detida. Que tudo tinha acabado”, contou, anos mais tarde, numa entrevista ao programa “Hora Extra”, da SIC. Sem outra saída, Tojó acabou por confessar ser o autor do crime, quatro dias depois da morte dos pais.
130 quilómetros para cometer um crime
Quando percebeu que não tinha hipóteses, Tojó contou como (quase) tudo tinha acontecido à PJ. Discutiu, sim, com Sara, mas depois enfiou-se num autocarro em direção à Marinha Grande. Aqui terá comprado uma muda de roupa, uma mochila e uma faca de cozinha. A meio da tarde, apanhou um comboio para Quintãs, perto de Ílhavo, fazendo o resto do percurso até casa dos pais a pé.
Surpreendida, a mãe abriu-lhe a porta da casa de família. Juntos subiram ao segundo andar, onde se encontrava o pai. A este, Tojó disse que era ele, e só ele, o culpado de toda a sua desgraça. A situação descontrolou-se e o jovem acabou por pegar na faca que trazia na mochila preta. Lutou com o pai, que tentou tirar-lhe a faca, e os dois acabaram por cair no chão. No meio da luta, esfaqueou-o. A mãe, perplexa, tentou fugir para o telefone em busca de ajuda. Tojó correu atrás dela até ao exterior. Enquanto o pai se esvaía em sangue, atacou a mãe com dezenas de facadas. Depois arrastou o corpo dela para dentro da moradia.
Tudo tinha corrido mais ou menos como planeado, mas Tojó começou a entrar em pânico. Ali, sozinho naquela casa, deu por si sem saber o que fazer. Tentou limpar o sangue que estava espalhado um pouco por todo o lado, mas não conseguiu. Queria apagar as provas, mas não sabia como. Pensou então que o melhor seria pegar fogo à moradia e destruir tudo de uma vez por todas. Agarrou em tudo o que era inflamável, abriu o gás, e esperou que o fogo começasse. Como nada disso aconteceu, acabou a simular um assalto.
Pegou na aparelhagem dos pais, em algum ouro e meteu-se dentro do Toyota Carina rumo à praia de Mira. Consigo levou também o telefone de casa, que arrancou da tomada por estar todo ensanguentado. Em Mira, tentou livrar-se das provas do crime. Mudou de roupa e enfiou tudo dentro da mochila que tinha comprado, juntamente com as chaves do carro. Depois, deitou-a num contentor de lixo e abandonou o Toyota junto a uma mata, a poucos quilómetros da praia, com a aparelhagem lá dentro.
Seguiu para junto de Sara. À polícia, admitiu não saber como teve força para matar os pais. Apesar do “amor de filho”, disse sentir “uma profunda aversão por todos os traumas” que os pais lhe tinham infligido desde a infância. As discussões eram frequentes lá em casa, e ele era geralmente apontado como o culpado. Disse que era habitual o pai sofrer de depressões e descreveu-o como “um carrasco”. A PJ apreendeu na casa o diário da mãe de Tojó. Também nessas páginas era explícito que a relação entre ela e o marido não corria bem. Aliás, os dois chegaram a separar-se judicialmente, embora continuassem a viver na mesma casa.
Depois de confessar o crime, Tojó conduziu a polícia ao local onde abandonou o carro dos pais e a arma do crime. O mandato de detenção foi emitido nesse mesmo dia.
A PJ não se conformou com estas explicações. Na conclusão do relatório intercalar, assinado a 16 de agosto, lê-se ser ainda necessário fazer uma “melhor averiguação” do caso, admitindo-se a possibilidade de virem a ser identificados outros suspeitos. Isto porque, para além das razões económicas, os investigadores desconfiavam de “eventuais ritos satânicos”. A sustentar esta teoria estava o “facto de os crimes terem sido perpetuados numa altura de eclipse solar”.
Sara, a “deusa” que se remeteu ao silêncio
Tojó foi detido a 16 de agosto de 1999. Nessa altura, na prisão, visitam-no os amigos mais chegados, como Hélder e Nuno, e também alguns familiares. O avô paterno, Armando Machado dos Santos, também chegou a ir vê-lo, sempre com esperança de ouvir da boca do neto que tudo não passava de um engano — que não tinha sido ele.
A faltar ficou apenas Sara. A Sara “que era fogo”, “deusa”, segundo as cartas que Tojó escreveu na prisão e que constam no processo guardado no Tribunal de Aveiro. Dez dias depois de estar preso, a mulher ainda o visitou uma vez, com o pai e com a mãe. Queria dizer-lhe que pretendia seguir a sua vida sozinha. Tojó não acreditou que era o fim do casamento, firmado a 21 de maio de 1994.
António Jorge conheceu Sara quando ainda estudavam no secundário. Ela, um ano mais velha do que ele, estudava na Escola José Estevão, em Aveiro. Ele na Escola Secundária de Ílhavo. Os dois não podiam ser mais diferentes: ela, extrovertida e com uma personalidade vincada, contrastava com Tojó, calado e sem gosto por protagonismos. Ainda assim, eram inseparáveis.
Começaram a namorar em 1993, no ano em que fundaram a banda de death metal Agonizing Terror com os amigos Marco e David. Tojó era o vocalista e guitarrista, Sara a baterista. Mas a paixão era tal que, um ano depois de se terem conhecido, decidiram fugir para Lisboa por temerem que os pais não aceitassem o namoro. Por outro lado, ansiavam também, em segredo, por uma independência que, dadas as circunstâncias, demorava — e demoraria — a chegar. Ainda viveram um mês na capital, e só depois acordaram com os pais dela regressar.
O casal passou então a morar em casa dos pais de Tojó que, na altura, habitavam num apartamento na Rua João de Deus, em Ílhavo. As despesas ficaram inicialmente a cargo dos pais de ambos até que, depois de um curso de informática de 11 meses, Tojó, então, com 18 anos, foi trabalhar para a Vista Alegre. Sara, por sua vez, entrou no curso de Marketing no Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM), em Aveiro. Os desentendimentos com o pai eram frequentes e o casal acabou por ir viver para casa dos pais de Sara, em Bonsucesso, Aveiro. Apesar do ordenado de 25 mil escudos que recebia da empresa de alumínios Cunha & Guimarães, onde então trabalhava, Tojó tinha ainda uma mesada de 90 mil escudos do pai.
Mas, para Sara, parecia não ser suficiente. Pelo menos é esse o desabafo que Tojó fez nas cartas que escreveu na prisão. Nelas, disse também que nunca pensou que a mulher o abandonasse depois de tudo o que passaram juntos. Acreditando sempre que tudo não passava de uma estratégia de defesa, escreveu-lhe dezenas de cartas, fez inúmeros telefonemas que nunca chegaram a ter resposta. Do outro lado ergueu-se um muro de silêncio que nunca conseguiu passar.
As cartas que Tojó escreveu na prisão para os amigos e para Sara acabaram, a certa altura, nas mãos da PJ. Os investigadores estavam convictos de que Tojó não tinha assassinado o pai e a mãe sozinho e que não era possível praticar um crime assim sem ajuda de alguém. Então foram dadas ordens à cadeia de Coimbra para reter todas as cartas e escutar os telefonemas que o detido fazia a partir da cadeia. Outras cartas foram apreendidas nas casas dos amigos do casal.
Estes dados constam hoje no processo e ajudam a reconstruir o estado de espírito de Tojó que, a pouco e pouco, foi sendo abandonado por todos. “Preciso muito de ver a Sara, dar-lhe explicações, pedir-lhe desculpas…”, escreveu numa das missivas. Ao amigo Hélder Teixeira, em abril de 2000, disse-lhe: “Desde o início que tentei arranjar uma história que pusesse a Sara de lado, só que ela nunca telefonou…”
Desesperado por entrar em contacto com a mulher, Tojó acabou por cometer um erro fatal — foi dando a entender que, tal e qual como a PJ desconfiava, não tinha matado os pais sozinhos e que Sara estaria de algum modo envolvida.
A pressão feita pela polícia, aliada ao desaparecimento de Sara, levou o jovem a pedir ao juiz de instrução para ser ouvido novamente. Tinham passado oito meses do crime e de reclusão. A 7 de abril de 2000 o único detido no processo abriu o jogo e contou como a mulher o tinha levado a cometer um crime que, só por ele, se calhar nunca teria cometido.
A nova confissão de Tojó
Foi naquele verão de 1999 que Sara e Tojó decidiram que Jorge e Maria Fernanda dos Santos tinham de morrer. A sugestão partiu da própria Sara, que esperava assim atingir a tão esperada independência financeira e sair de casa dos pais, com quem as coisas não andavam bem. À PJ, Tojó contou que a mulher tinha reprovado o ano e que tinha receio de contar aos pais.
“Há um dia em que a Sara fala comigo e vem com uma conversa incrível e absurda que me deixou sem saber o que dizer ou pensar”, relatou Tojó durante a entrevista ao “Hora Extra”, da SIC. “Disse-me que já andava com aquilo na cabeça há muito tempo. Achava que era a única solução, que era aquilo que se devia fazer e que não sabia como eu iria reagir.”
Tojó ficou surpreendido quando a mulher lhe disse que tinha de matar os pais, mas à Sara “nada se negava”. À Sara que “era tudo”, que era “oxigénio”.
“Eu recusei muitas vezes, eu apresentei alternativas, mas não foi possível. E há um momento em que eu acabo por ceder e esse, para mim, foi o momento-chave”, contou. “Eu tive que lhe dar essa prova. Mais não podia fazer — ela estava a pedir, a exigir, a implorar. E eu tinha — tinha — que lhe dar essa prova, mesmo que implicasse matar os meus pais.”
Para os que conheciam o casal, não existiam dúvidas de que era Sara que “mandava lá em casa” e que Tojó tinha “uma visível adoração” por ela, como referiu o amigo Nuno Lima — que acabaria por ser julgado juntamente com o casal. Os amigos da altura, com quem o Observador conseguiu falar, reforçaram a ideia transmitida por Nuno, nesse já longínquo ano de 2000. “Ele fazia tudo o que ela queria”, considerou um, preferindo não ser identificado. “Ela era uma venenosa.”
Convencido Tojó, o casal começou a pensar, em conjunto, numa forma de levar a ideia avante — e sair impune. Chegaram então à conclusão que o melhor seria simular um assalto, já que a casa tinha sido roubada há pouco tempo, numa altura em que Jorge e Maria Fernanda se encontravam de férias em Espanha. O casal apontou a data do crime para uma altura em que não estariam em Ílhavo.
Nesta nova versão dos factos, tinha sido Sara quem preparara tudo. Foi ela quem comprou a roupa, um lenço para esconder o cabelo, um chapéu, duas facas e uma lanterna num hipermercado em Coimbra. Aliás, a PJ viria a encontrar o registo dessa compra num cartão multibanco de Sara. Foi também ela que escreveu uma carta que Tojó usou para distrair os pais, pormenor que nunca tinha sido relatado nos depoimentos anteriores. Terá sido esta carta que Tojó deu a ler aos pais antes de os matar, na tentativa de os manter distraídos. Mais tarde, contou o arguido, foi Sara quem se livrou das provas do crime.
O novo depoimento de Tojó levou a PJ a concluir que havia “dois co-autores do crime de homicídio”. Nesse dia, foi emitido o mandado de detenção de Sara que, após um longo interrogatório, foi sujeita a prisão domiciliária. A medida de coação, porém, acabou por cair por falta de provas e Sara aguardou o julgamento em liberdade. Foi ainda detido Nuno Lima, por suspeitas de também ter colaborado com o crime. Ela ficou em prisão domiciliária, ele ficou preso preventivamente.
De cinco suspeitos a três arguidos em tribunal
O novo depoimento de Tojó viria de encontro às suspeitas da PJ de que seria impossível que tivesse cometido aquele crime sozinho. Meses antes da sua nova confissão, a 25 de novembro de 1999, o próprio Ministério Público mandara prosseguir a investigação para determinar se “os factos” tinham sido “praticados apenas pelo detido” ou se havia “a qualquer título outros comparticipantes”, lê-se nos autos guardados no Tribunal de Aveiro e que o Observador consultou.
O facto de Tojó integrar uma banda de metal e de se vestir de preto levou a PJ a acreditar, desde o início, estar perante um crime satânico, cometido em grupo, em nome de Satanás, e marcado precisamente para o dia do último eclipse solar do milénio — a 11 de agosto de 1999. A história do crime satânico foi, na altura, bem aproveitada pelos jornais nacionais que encheram páginas com títulos como “Rituais Satânicos em Vale de Ílhavo” ou “Uma obra do diabo”.
José Miguel Rodrigues, então um jovem jornalista da área da música, trabalhava para o jornal Blitz quando o “Crime de Ílhavo” fez manchete nos jornais nacionais. Na altura, chegou mesmo a escrever alguns artigos sobre o assunto. Num deles fez questão de dizer que “o crime tem sido bastante coberto pelos media nacionais devido à ligação com um género musical olhado com desconfiança pela opinião pública”.
Conhecedor do género musical, José chegou a ser bombardeado por telefonemas de jornalistas “de todo o lado”, que lhe perguntavam sobre o death metal, os Agonizing Terror e sobre um outro crime que, seis anos antes, tinha acontecido na Noruega e que envolveu membros de duas bandas de metal. Em 1993, Varg Vikernes, líder (e único membro) dos Burzum, matou à facada Øystein Aarseth, dos Mayhem. Vikernes foi condenado a 21 anos de prisão, acabando por ser libertado 15 anos depois.
A história chegou a Portugal e, de acordo com José Rodrigues, teve “alguma expressão nos media”. “Havia uma ideia geral de que isso se tinha passado. Não sei se isso facilitou a associação [entre o metal e o crime de Tojó], por mais descabida que seja. Foi uma coisa que eu tentei esclarecer na altura, mas houve muita coisa tirada do contexto e mal interpretada”, disse ao Observador. “Mas, se as pessoas não estão dentro do assunto, também lhes custa a perceber.”
Para o jornalista, “há sempre uma tentativa um bocado descabida de associar atos de pessoas à música que elas ouvem, aos livros que leem, aos filmes que veem”. “Acho que acaba por ser uma coisa mais profunda do que isso. É um bocado descabido achar que uma banda tem poder para influenciar isso.”
Mesmo que fosse “descabido”, a associação acabou por ser feita e por danificar ainda mais a reputação de um género musical que, na altura, era encarado com alguma desconfiança. “Como sabemos, nos anos 80 o metal não tinha propriamente uma boa fama. Era um público completamente diferente do que conhecemos hoje em dia, se calhar mais fechado e arruaceiro. Lembro-me de falar com o meu pai e de ele mostrar preocupação e de me perguntar se tinha alguma coisa a ver. As pessoas também acabam por ser um bocado permeáveis”, disse.
O facto é que “o metal sempre teve essa associação com o macabro, que é um interesse como outro qualquer”. “Todas as pessoas têm essa atração, umas mais profundas do que outras. O metal sempre explorou isso, e isso impressiona algumas pessoas”, explicou o jornalista. “Ficam na dúvida e pensam ‘mas estes tipos são malucos ou não?’. Mas acaba por ser o mesmo que acusares um realizador de filmes de terror de ser um tarado. Ele está a explorar um imaginário com o qual a maior parte das pessoas não se sente confortável, mas com o qual sentem sempre alguma atração.”
António Freitas, apresentador do programa “Alta Tensão” da Antena 3, também se recorda bem da história. Para além de ter sido entrevistado durante o telejornal da SIC, onde se debateram as possíveis ligações do heavy metal ao “Crime de Ílhavo”, chegou mesmo a testemunhar em tribunal. Sobre o caso de Tojó, admitiu ao Observador que lhe pareceu logo na altura “que ele obviamente teria outros motivos e outros desencontros, digamos assim, com os seus familiares”. “Os media aproveitaram a história do último eclipse solar do milénio, e que isso serviria eventualmente de motivo para se fazer um ritual. Em termos pessoais, acho completamente patético.”
Mas, a verdade, é que a tese desenvolvida pela PJ, que chamou tanto a atenção dos jornais, acabou vertida no despacho de acusação. A 2 de dezembro de 1999, quatro meses após o crime, a investigação contava já com cinco arguidos: António Jorge Machado (Tojó), que tinha confessado a autoria do duplo homicídio, a mulher dele, Sara Machado e três outros amigos, Nuno Lima e Helder Teixeira e, mais tarde, Marco António. O que tinham em comum: o gosto pelo metal e o facto de se vestirem de negro. Mas só Tojó se encontrava em prisão preventiva, porque tinha confessado o crime. Em relação aos outros não havia prova suficiente para uma medida de coação idêntica.
Tojó era vocalista e guitarrista da banda Agonizing Terror, a mulher Sara tocava bateria. Marco chegou também a fazer parte da banda, abandonando-a devido a desavenças com o casal. Já Helder e Nuno faziam parte de um outro grupo, também de música pesada, os Summum Malum. A PJ acreditava que todos eles tinham, em grupo, assassinado os pais de Tojó. Só em agosto de 2000, quando o Ministério Público proferiu a acusação, as suspeitas contra Helder e Marco António foram arquivadas. O processo seguiu com três arguidos: Tojó, na altura com 25 anos, Sara, de 26 anos, e Nuno, de 21, todos eles foram julgados. Segundo o despacho de acusação, os arguidos “professam o culto” de “satanás” e da “morte”. Todos eles usavam “roupas negras, cinturões e pulseiras cravejados de metais e cruzes invertidas no peito”. E teria sido Sara a comprar e a preparar o material para o dia do crime.
A participação de Nuno não era bem clara. Mas, segundo os vestígios recolhidos no local e analisados pelo Instituto de Medicina Legal, havia vestígios de sangue seu no carro estacionado no local do crime — o carro dos pais de Tojó, que foi mais tarde recuperado. Nuno alegou sempre que se encontrava no Porto naquele dia e que os vestígios de sangue podiam justificar-se com a troca de correspondência entre todos, onde muitas vezes usavam o próprio sangue como assinatura.
A juntar às suspeitas de que Tojó não estaria sozinho, há o depoimento de uma vizinha que garante ter visto duas pessoas dentro do carro do casal, na manhã a seguir à sua morte. Esta testemunha chegou a queixar-se de ameaças por telefone durante a investigação e após ter prestado depoimento.
Roupas negras, pulseiras com metais e Satanás. Um crime satânico?
Antes desta acusação, a PJ ouviu vários amigos do casal na tentativa de justificar a tese de que os gostos musicais e a forma de vestir dos suspeitos teriam conduzido ao macabro crime. A polícia começou pelos elementos dos Agonizing Terror, David e Marco António, que tinham abandonado a banda um mês antes do crime, para integrarem os Metal Band, um grupo que descrevera ser de “música variada, destinada a bailes”, e para ganharem algum dinheiro.
Agonizing Terror: último álbum saiu em 2015
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Quando os Agonizing Terror acabaram, no verão de 1999, a discografia da banda resumia-se a duas demo tapes. Apesar do projeto de lançamento de um mini CD, o prémio ganho no Concurso de Música Moderna Portuguesa do Hard Club, em 1998, seriam precisos 17 anos até este ser atirado cá para fora.
Em 2015, a Firecum Records, uma editora de Aveiro, lançou Disharmony in Existence, uma compilação composta pelas antigas demos, Disharmony in God’s Creation e Ways of Existence, e por dois temas inéditos retirados do tal mini CD, que ia servir para apresentar a banda a potenciais editoras.
De acordo com a informação divulgada pela Firecum, o álbum foi lançado com a aprovação dos antigos membros.
David esclareceu que as letras das músicas da banda eram todas da autoria de Sara. Recusou que aquele estilo de música ou a forma de se vestirem estivesse relacionada com “práticas satânicas”. Aliás, disse o amigo que era através da música que Tojó conseguia “alguma independência e individualidade”, uma vez que Sara “exercia uma ascendência notória” sobre ele. E que ele fazia tudo o que ela queria.
Marco António explicou que depois de sair da banda tinha estado com Tojó e Sara um par de vezes. Quando a polícia lhe perguntou pela roupa, pela música, e pelos “filmes de terror”, Marco defendeu-se que não vestia apenas preto, mas também “azul e cinzento”. Já “Sara, Tojó, Nuno e Helder só vestiam negro”, logo “eram satânicos”. Assumiu ainda ser ateu e pouco apologista de “tais ideologias”, daí ter-se afastado do casal. Mais. Alegou estar “farto de metal”. E por isso decidiu tocar música de baile.
Já Nuno Lima, também constituído arguido, disse às autoridades não perceber como Tojó foi capaz de cometer tal crime. Definindo-o como uma pessoa “terra a terra”, sem grandes convicções espirituais, Nuno Lima argumentou ser muito mais admissível que o crime se tenha prendido com razões de ordem material do que consumado no seio de uma qualquer “prática sobrenatural”, de índole “satânica”. Embora lhe fosse difícil admitir que Sara tivesse participado no crime, como Tojó acabou por afirmar, oito meses após o crime, Nuno pensava ser muito provável que “o plano tenha sido arquitetado por ambos”, dada relação de cumplicidade que mantinham.
A forma como estes arguidos se vestiam era, em 1999, determinante para adensar suspeitas. Mas essa não era uma realidade apenas portuguesa. Pouco mais de um mês após o crime, a Interpol de Ankara enviara às autoridades portuguesas um pedido de informação. A polícia turca perguntava se em Portugal tinham sido registados crimes idênticos a um ocorrido em Istambul, a 13 de setembro de 1999 — em que um turco, na altura com 19 anos, fora assassinado por um grupo que dizia chamar-se “satânico”. Os suspeitos disseram à polícia que acreditavam em “em Satanás/Diabo”. E que, na data que correspondia ao 13º. dia do mês, “sacrificaram a vítima por estrangulamento e várias punhaladas”. Depois violaram-na.
As autoridades escreviam ainda: “As principais características dos satânicos são: cabelos compridos, pera, cruz no pescoço, vestem-se de t’shirts escuras ou capas e normalmente ouvem música Rock ou Metal”. A PJ respondeu que tinha registo de um crime cujo modus operandi podia assemelhar-se, mas que em relação aos suspeitos em causa, não tinha qualquer referência.
Um homicídio “impiedoso” e um julgamento cheio de dúvidas
Os relatos dos jornais da altura relatam verdadeiras “lavagens de roupa suja” no julgamento, que chegou a estar marcado para o dia 21 de dezembro de 2000, mas que acabou adiado para dois meses depois. Foi a 21 de fevereiro de 2001 que Tojó se sentou no banco dos réus ao lado da ex-mulher, Sara, e do amigo Nuno — todos acusados de duplo homicídio qualificado. Os arguidos tentaram concentrar as culpas em Tojó e desresponsabilizar-se do crime.
António Freitas esteve lá naquele dia. Antes do julgamento, Sara ligou-lhe para a Antena 3 e pediu-lhe se não se importava de comparecer como testemunha abonatória pelos seus conhecimentos sobre heavy metal. “Eu disse que não me agradava muito, mas ela acabou por dar o endereço da rádio (porque não tinha o meu de casa) e eu acabei por ser convocado e ir pelos meus próprios meios. Na altura não foi nada barato.”
Em tribunal, perguntaram-lhe sobre o metal, Ozzy Osbourne e os suicídios nos Estados Unidos da América, assuntos que rebateu até ao fim. O ambiente era “semi-solene”, e alguns dos juízes pareciam “bastante indignados”. “O Tojó estava lá sentado num dos bancos”, lembrou. “Perguntaram-me se o conhecia. A noção que eu tinha dele é que era um puto como muitos outros que me abordavam com projetos e maquetes e que era uma pessoa inteligente.”
O caso de John McCollum
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Em 1984, John McCollum, um jovem de 19 anos, suicidou-se na sua casa na Califórnia. Os seus pais acreditaram que a sua morte era da responsabilidade de Ozzy Osbourne, porque o jovem se tinha matado ao som do álbum Blizzard of Ozz (1980), que tem o tema “Suicide Solution”. O caso acabou em tribunal, com os pais de McCollum a defenderem que “Suicide Solution” tinha um duplo significado e que incentivava os jovens a pegarem na arma e a matarem-se, algo que Ozzy sempre negou.
A ação judicial foi rejeitada pelo Tribunal da Califórnia em 1988, depois de ter sido determinado que o suicídio de McCollum não tinha qualquer relação com a música do Blizzard of Ozz.
Tojó foi um dos primeiros a sugerir que as bandas portuguesas fizessem uma espécie de intercâmbio entre si — que, por exemplo, uma banda de Lisboa fosse a Aveiro tocar e fosse ajudada por um grupo local com estadia e tudo o que fosse necessário. Mais tarde, essa banda receberia em Lisboa o grupo de Aveiro, oferecendo-lhe a mesma ajuda. “Ele foi das primeiras pessoas a ter esse plano. Até tenho isso escrito numa carta dele, o que revela alguém com dois dedos de testa. Tinha uma noção de como se poderia fazer as coisas.”
Já Sara fez de tudo para passar uma imagem negativa do marido. Alegou que Tojó sempre foi controlador, que lhe impunha como devia vestir-se. Impedia-a de vestir roupa colorida. Disse que ao fim de dois anos de casamento chegou mesmo a pensar no divórcio, mas que não o fez “por medo”. Que tinham ido viver para casa dos pais dela na sequência de uma agressão de Tojó aos pais e que as discussões entre ambos eram comuns. Para rematar, afirmou que foi obrigada a mudar o número de telefone da casa dos pais, para onde Tojó ligava insistentemente da prisão na tentativa de ouvir a sua voz. Negou qualquer envolvimento no crime e apresentou-se como vítima.
À medida que o julgamento avançou, houve dúvidas que continuaram por esclarecer e que não se dissiparam. Como é que Tojó conseguiu sozinho matar o pai e a mãe com dezenas de facadas? “A minha mãe não caiu logo com o primeiro golpe que lhe dei no pescoço e, juntamente com o meu pai, tentou tirar-me a faca. Caímos todos no chão. Atingi o meu pai no peito, a minha mãe correu para o telefone e depois para fora de casa. Ficou sem forças ao pé do muro. Tirei a segunda faca e matei-a já cá fora”, declarou Tojó em tribunal. Uma versão que não convenceu os peritos nem os juízes. Não era credível que tivesse conseguirdo matar o pai e a mãe à facada, sozinho.
Também as palavras de Sara foram pouco convincentes. Na sentença, lida ao fim de dois meses de julgamento, os juízes consideraram que era ela quem dominava a relação. Que não ficou provado que ele controlava a sua forma de vestir nem que a agredia com frequência. Os juízes também não deram como certo que Tojó odiava os pais e que até desejava a sua morte. Na sentença, lida a 17 de abril de 2001, percebe-se que ficaram muitas dúvidas por esclarecer. E isso beneficiou Sara e Nuno. “Esta circunstância e o facto de também não se ter afastado de forma inequívoca a intervenção de qualquer deles só pode determinar a sua absolvição, quanto mais não seja porque a isso obriga o princípio in dúbio pro reo“, lê-se na sentença.
Por outro lado, as palavras de Tojó e a sua descrição do dia do crime fizeram com que os juízes acreditassem nele. Na sentença lê-se, até, que ele mostrou algum arrependimento. O tribunal considerou, no entanto, que “o arguido é pessoa sem qualquer perturbação mental, tem inteligência normal, é uma personalidade estável” e condenou-o a uma pena máxima de cadeia de 25 anos — 23 anos anos por cada homicídio em cúmulo jurídico. Consideraram o crime de “acentuada censurabilidade e forte perversidade”, de “uma insustentável brutalidade e impiedade” e que “o arguido revelou uma personalidade fria e insensível, indiferente aos apelos das vítimas”. Já Sara e Nuno acabaram absolvidos, pelas dúvidas que se mantiveram até ao fim.
O único herdeiro é o homicida
Naquele dia, Armando Machado dos Santos acordou preocupado. Tinha já tentado falar com o filho por telefone várias vezes e ele não atendia. A companheira, Conceição Brandão, recordou ao Observador que o incentivou a dar um pulo a Ílhavo para ir ver o que se passava. Armando, avô de Tojó, vivia em Coimbra e depressa chegava lá. “Ligou-me depois a dizer que tinha que ir ao velório do filho. Eu nem estava a perceber a conversa. Só depois percebi que ele e a mulher estavam mortos”, contou Conceição, já debilitada pela idade e por um AVC que a abalou há dois anos.
Conceição Brandão tem dificuldades em falar, mas a memória não a atraiçoa. Embora seja a segunda mulher de Armando, partilhou com ele 25 anos de vida e de memórias. Recorda-se dos passeios que fazia com o “Doutor”, assim se referindo ao pai de Tojó, seu neto. “Era um rapaz tão sossegado. Eu sempre duvidei que ele tivesse feito aquilo sozinho.” Conceição diz que o homicídio do “Doutor” arrasou Armando. “Ele já tinha perdido um filho, também vítima de um crime, e depois disto começou a ficar doente. A perder a força de viver, até que acabou acamado”, recordou.
Antes disso, e pouco depois do crime, Armando ainda visitou o neto na prisão. Acreditava que um dia ele lhe ia dizer que era inocente e que não tinha roubado a vida aos pais. Não encontrava explicações. Tojó nunca lhe mentiu. Também não lhe apresentou motivos. Então Armando decidiu recorrer para o tribunal para deserdar o neto, mas quando o quis fazer já tinham passado os prazos. Interpôs então outro processo contra ele: pediu-lhe uma indemnização pela dor que este lhe causou ao roubar-lhe a vida do filho e da nora.
Armando alegou em tribunal que a morte do casal “em especial a de seu filho, causaram-lhe profunda dor e grande sofrimento, até porque este era o seu único filho e tinha consigo relações de grande proximidade e afeto”, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. E pediu uma indemnização de 149.639,36 euros. Tojó refutou o pedido: disse que o avô mentia “tendo referido que (…) não tinha relações de proximidade com o filho”. Alegou que o valor pedido era exagerado e que devia ter sido solicitado junto do processo-crime que acabou na condenação de Tojó.
Armando morreu em 2005, antes de conhecer a decisão do Tribunal que lhe concedeu uma indemnização de 40 mil euros, com juros de mora. A advogada que tratava do caso decidiu recorrer do valor atribuído, em nome da única herdeira de Armando: Conceição, com quem viveu em união de facto durante 25 anos. O Tribunal da Relação de Coimbra acabou por fixar, em 2009, o valor da indemnização em 60 mil euros. Mas, 17 anos depois, Conceição não viu sequer 1 euro.
A viúva de Armando ainda enviou a sentença para a Comissão de Proteção à Vítimas de Crimes — um organismo do Estado ao qual as vítimas de crimes violentos podem recorrer quando os autores dos crimes não têm dinheiro para as indemnizar. Mas a resposta foi clara: o arguido tem património e pode pagar a indemnização. Mas Conceição, que vive num apartamento da câmara num bairro de Coimbra, nada recebeu.
O Observador não conseguiu apurar que bens Tojó tem à disposição quando sair em liberdade. Mas uma advogada, que chegou a representá-lo, duvida de que disponha de dinheiro vivo. Também nas cartas que escrevia aos amigos, a partir da cela da cadeia de Coimbra, Tojó chegou a pedir dinheiro para comprar produtos básicos de higiene. Um guarda prisional contou ao Observador que ele chegou a desistir de alguns dos cursos que frequentou por não ter dinheiro para os livros.
Mesmo a casa de família, em Ílhavo, onde o crime aconteceu e onde viviam recentemente, não estava completamente paga. Os pais de Tojó tinham contraído um empréstimo ao banco, que o Diário de Aveiro, em 2004, dizia rondar os 125 mil euros. A casa foi vendida, para o pagamento da dívida. E desconhece-se se sobrou dinheiro.
17 anos depois, a vida mudou
A venda da casa onde os pais de Tojó foram assassinados não se revelou fácil. Depois de algum tempo encerrada, exatamente como a GNR a encontrou, foi finalmente adquirida por uma família que diz não importar-se com o que se lá passou. As paredes do número 60 da Rua Prior Valente são hoje amarelas, quando antes a casa era cinzenta, da cor do cimento, e o jardim está cuidado. A casa onde há 17 anos foram descobertos os corpos de Jorge e Maria Fernanda parece outra.
Mas não foi apenas a casa que sofreu mudanças. Os principais arguidos, Sara, Nuno e Hélder, também seguiram cada um o seu rumo, tentando distanciar-se ao máximo dos eventos trágicos daquele verão de 1999, que estão ainda tão frescos na cabeça de quem os conheceu.
Sara Matos, atualmente com 40 anos (fará 41 em novembro), vive ainda no concelho de Aveiro e terá casado outra vez. O marido é guarda prisional. Sara foi também mãe de um rapaz. O Observador tentou entrar em contacto com ela, mas a antiga baterista dos Agonizing Terror não mostrou interesse em responder “a mais entrevistas”.
Hélder Teixeira, amigo do casal — e que também chegou a ser constituído arguido no processo — tem agora 36 anos e, tanto quanto se sabe, vive ainda no norte de Portugal, de onde é natural. Continua ligado à música, tendo dado seguimento ao projeto começado com o amigo Nuno Lima, mas sob outro nome.
Nuno, atualmente com 37 anos, terá emigrado, mas ninguém parece saber ao certo para onde. Quando questionados sobre o possível paradeiro, os amigos da altura limitam-se a atirar países ao ar: talvez Inglaterra, Itália. Uma coisa, porém, parece ser certa: terminado o julgamento, o músico decidiu que o melhor era sair do país. Para quem o conhecia, não parece haver dúvidas: “Deram-lhe cabo da vida”.
Tojó continua preso, como há 17 anos, a estudar para conseguir encontrar um trabalho fora da prisão e para convencer a juíza de que, em liberdade, conseguirá reintegrar-se na sociedade. Com mais de metade da pena cumprida, Tojó recusou dar uma entrevista ao Observador. A sua liberdade condicional só será novamente apreciada por um juiz em março de 2017.