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“Language is a virus” é uma canção incluída no álbum Home of the brave (1986), de Laurie Anderson, e que, por ser das peças mais pop e trauteáveis criadas por Anderson, foi editada como single e teve direito a um videoclip, traduzindo-se num sucesso modesto (mas que foi a maior exposição pública obtida por uma peça de uma artista marginal como Anderson). Na verdade, a canção era um remake de “Language is a virus from outer space: William S. Burroughs”, que fazia parte do álbum ao vivo USA I-IV, gravado por Anderson três anos antes, e a frase do título tinha sido pedida emprestada a The ticket that exploded (1962), um romance experimental do escritor beat William S. Burroughs.

[“Language is a virus”, de Laurie Anderson:]

Nesta obra, Burroughs desenvolve, nem sempre da forma mais clara e congruente, a ideia de que a palavra é um vírus vindo do espaço exterior, que “não é reconhecido enquanto [tal] porque atingiu um estádio de simbiose estável com o seu hospedeiro”. Bernardo Attias, professor de estudos de comunicação em diversas universidades norte-americanas, explanou assim a visão de Burroughs: “Um vírus opera autonomamente, sem intervenção humana. Liga-se a um hospedeiro, alimenta-se dele e alastra de hospedeiro para hospedeiro. A linguagem infecta-nos: o seu poder resulta não da sua capacidade para comunicar ou persuadir, mas da sua natureza infecciosa, do poder que os fragmentos de linguagem têm para se enxertarem noutros fragmentos de linguagem, alastrando-se e reproduzindo-se usando seres humanos como hospedeiros”.

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A disseminação de vocábulos, boatos e narrativas começou por fazer-se de forma lenta, através de transmissão oral, mas hoje tem ao seu serviço o poderio e rapidez fulminante dos mass media e, em particular, da Internet e das suas redes (ditas) sociais, que adoptaram o adjectivo “viral” para qualificar as frases e vídeos que são alvo de uma replicação veloz e abrangente. Mas esta replicação não se processa de forma homogénea, como demonstrou um estudo sobre o Twitter realizado por Soroush Vosoughi, Sinan Aral e Deb Roy, do Massachusetts Institute of Technology, e publicado na revista Science em Março de 2018, que concluiu que “a falsidade se difunde significativamente mais longe, mais rapidamente, mais profundamente e mais amplamente do que a verdade” (ver o capítulo “A mentira tem perna curta?” em O futuro aos algoritmos pertence).

Apesar de hoje dispormos de meios expeditos e gratuitos para verificar e avaliar a veracidade da informação, as tolices, os boatos e a falta de rigor proliferam como nunca, e a linguagem que tem sido usada no espaço público, por políticos, opinadores e jornalistas, para falar da pandemia é disso prova (ver “A Natureza nem sempre é amiga”: Vírus, livros e metáforas). A inadequação no uso das palavras não é um mero preciosismo que só deverá preocupar académicos na área da linguística e professores de Português: as deficiências e falhas na linguagem estão intimamente vinculadas a falhas no pensamento e na percepção da realidade.

Coronavírus

Hoje sabemos, através de estudos filogenéticos, que terá sido em Outubro-Novembro de 2019 que um coronavírus dos morcegos terá adquirido a capacidade de infectar seres humanos, após passagem por um hospedeiro intermédio ainda não identificado. Terá sido a 1 de Dezembro que o paciente zero terá manifestado os primeiros sintomas da doença, mas só a 30 de Dezembro surgiu o primeiro comunicado oficial e público (e reproduzido pelos media chineses e pelas agências noticiosas internacionais), emanado da Comissão Municipal de Saúde de Wuhan, alertando para a existência na cidade de um surto de uma nova espécie de pneumonia, de que tinham sido identificados 27 casos, e recomendando aos habitantes de Wuhan que usassem máscaras e evitassem ajuntamentos de pessoas, sobretudo em espaços fechados.

A 11 de Fevereiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde atribuiu designações formais ao novo “vírus de Wuhan” – SARS-CoV-2 – e à doença que ele provoca – covid-19. O baptismo do vírus coube ao Comité Internacional sobre Taxonomia de Vírus (ICTV na sigla inglesa): “SARS” indica que se trata de um agente de uma forma de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Severe Acute Respiratory Sindrome), “CoV”, que se trata de um “coronavírus” e o “2” distingue-o do vírus que causou o surto de SARS de 2002-04. “Covid-19” (por vezes grafado em maiúsculas) designa a “coronavirus disease” identificada em 2019.

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Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS: Embora seja uma das personalidades com maior número de referências nos media em 2020, raríssimos são os locutores que se atrevem a pronunciar o seu último nome

Ainda que a nomenclatura seja clara e fácil de perceber, Donald Trump, figura conhecida pelo pouco amor à verdade e ao rigor e pelo vocabulário limitado e pueril, prefere designar o SARS-CoV-2 por “Chinese virus” e a doença que ele causa por “kung flu”, e em Portugal, 10 meses depois do baptismo formal, continua a haver gente em lugares de responsabilidade (nomeadamente o nosso Primeiro Ministro) que se refere à doença como “a covid” e ao vírus como “o covid”. Quanto aos jornalistas, continuam a referir-se sistematicamente ao “novo coronavírus”, apesar de ele estar connosco há um ano e de, desde então, não se ter passado um dia ou uma hora sem estarmos agudamente conscientes disso. Ao ouvir o adjectivo “novo”, é legítimo que os mais distraídos possam ser levados a pensar que, desde a última vez que ouviu ou leu notícias, a OMS anunciou que o mundo está ameaçado por mais uma pandemia. Porém, trata-se apenas de uma velha doença, que nunca nos deixará: a preguiça mental. A recente aparição de uma nova estirpe, mais contagiosa, do SARS-CoV-2, veio baralhar ainda mais a comunicação: irá implantar-se o termo “a nova estirpe do novo coronavírus”?

A representação mais corrente do SARS-CoV-2: algures entre um medronho e a Death Star de Star Wars

Invisibilidade

O SARS-CoV-2 tem sido repetidamente designado como “o vírus invisível”, como se as doenças que até hoje assolaram a humanidade tivessem sido provocadas por vírus e bactérias suficientemente grandes para serem vistos a olho nu e perseguidos e exterminados com mata-moscas, jornais enrolados e martelos.

O SARS-CoV-2 tem um diâmetro de 50-200 nanómetros (um nanómetro – nm – equivale a um milionésimo de milímetro), o que o coloca dentro do intervalo de tamanhos corrente nos vírus, que vai de 20 a 300 nm e que não é visível nos microscópios ópticos. Em média, os vírus têm um centésimo do tamanho das bactérias, que varia entre 500 e 500.000 nm, ou 0.5 e 500 micrómetros (o micrómetro, que é a unidade em que costuma ser expressa a dimensão das bactérias, equivale a um milésimo de milímetro). A maior bactéria que se conhece, a Thiomargarita namibiensis, descoberta em sedimentos da plataforma continental da África do Sul, atinge 0.5 mm de comprimento, o que permite que seja visível a olho nu, mas trata-se de um caso excepcional.

A ideia de “inimigo invisível” sugere astúcia, dissimulação, insídia e malevolência e talvez a ênfase dada à invisibilidade do SARS-CoV-2 seja uma forma de desculpar os governos e autoridades de saúde do mundo ocidental pela sua inacção nas primeiras semanas da pandemia.

O primeiro microscópio electrónico da história, construído em 1933 pelo físico alemão Ernst Ruska: A ciência postulara a existência de vírus no final do século XIX, mas só com este avanço decisivo na microscopia conseguiu visualizá-los

Epicentro

Durante os primeiros meses da pandemia, as notícias foram reportando a deslocação do seu “epicentro”: começou na China, passou por Itália, Espanha, Reino Unido, EUA, Brasil e, a partir do Outono, com o vírus a grassar por todo o lado, o jornalismo deixou de dar ênfase ao “epicentro”.

“Epicentro” é uma escolha infeliz, por um lado porque para descrever uma área com elevada incidência de uma doença sempre existiu um termo apropriado – “foco” – como por “epicentro” ser um termo sismológico com um significado preciso: é a projecção na superfície da Terra do “hipocentro”, isto é do ponto de origem de um terramoto. Os hipocentros situam-se em geral, a profundidades entre 2 e 20 Km, quando envolvem as placas continentais, mas podem atingir profundidades de 300 Km nas placas oceânicas.

Porém, na linguagem dos media, o epicentro não só foi confundido com o hipocentro e tomou o lugar deste – as notícias sobre terramotos costumam reportar que “o epicentro se localizou a 10 Km de profundidade” – como é agora usado como mero sinónimo (pseudo-científico) de “centro”, sendo aplicado a numerosos fenómenos que (como as pandemias) se desenvolvem em duas dimensões, embora tenha sido criado para descrever um fenómeno que se desenvolve em três dimensões.

Epicentro e hipocentro

Máscara

Durante a Primavera, os media e os políticos (e, supõe-se, os seus assessores de comunicação) estrebucharam para cunhar um termo elucidativo e expedito para designar os dispositivos, em tecido, destinados a cobrir o nariz e a boca e a limitar a inalação e emissão de partículas (como vírus e bactérias), pelo seu utilizador, de forma a mitigar a disseminação da covid-19. Compreende-se a necessidade de adjectivar este tipo de máscara, a fim de a distinguir das máscaras funerárias, das máscaras de teatro, das máscaras de soldadura, das máscaras lúdicas (de Carnaval e de Halloween) e das máscaras dos meliantes e dos justiceiros que querem manter o anonimato (como o Zorro, o Batman ou os irmãos Metralha), mas as tentativas foram quase todas desastradas.

Lançou-se “máscara facial”, como se fosse corrente usar máscaras nas nádegas; tentou-se “máscara individual” e “máscara de protecção individual”, como se qualquer máscara não fosse, inevitavelmente, individual; ensaiaram-se “máscara comunitária” e “máscara social”, que dão a ideia de uma máscara de uso colectivo (?); aplicou-se “máscara cirúrgica” a todas as máscaras, incluindo as reutilizáveis, de fabrico caseiro ou industrial, privilegiando a estética em desfavor da protecção e sem vínculo a contexto hospitalar. No meio deste borbulhar terminológico, ninguém optou pela solução mais razoável – “máscara sanitária” – e, com o passar do tempo, media e decisores políticos acabaram por desistir da adjectivação e passaram a usar simplesmente o termo “máscara”, já que, por esta altura já todos sabem do que se trata e todos estão ansiosos por se verem livres dela e voltar a ter uma “vida normal”.

Máscara ritual em argila, tribo Asaro, Nova Guiné. Nota: é pouco provável que receba certificação anti-covid de um laboratório acreditado

Cerca

Tomado por si só, o termo “cerca sanitária”, com o significado de barreira à circulação de pessoas criada pelas autoridades para impedir a propagação de uma doença a partir de uma área identificada como foco de contaminação, não merece reservas. O problema de comunicação surge com a expressão “levantar a cerca sanitária”: para uns, significa criar a barreira, para outros, por afinidade com “levantar cerco” em contexto militar, significa desfazer a barreira. Quando, no espaço público, a mesma expressão assume significados opostos, não é de estranhar que as populações fiquem desorientadas e que o vírus continue a propagar-se.

Milagre

Em comunicação ao país a 16 de Abril de 2020, destinado a anunciar o que esperava ser a última renovação do estado de emergência, a vigorar até 2 de Maio, Marcelo Rebelo de Sousa, manifestou a convicção de que o país estava “a ganhar a segunda fase” do combate à covid-19 e congratulou-se com aquilo “a que tantos estrangeiros chamam ‘o milagre português’”, mas que o Presidente afirmou ser, na verdade, “fruto de muito sacrifício” de todos os portugueses, incluindo os seus governantes e actores políticos. A 6 de Junho, o Diário de Notícias afinava pelo mesmo diapasão de exaltação do orgulho lusitano, num artigo intitulado “Do país de ‘burros na rua’ para o ‘milagre português’, o que mudou no olhar sobre Portugal”, que realçava a (suposta) gestão exemplar da pandemia realizada em Portugal, citando um artigo no jornal britânico The Telegraph, que, desgostado com a caótica gestão do governo de Boris Johnson, elogiava a forma como “um dos países mais pobres da Zona Euro” lidara exemplarmente com a covid-19. A ideia transmitida pelo artigo no DN e por outros similares surgidos pela mesma altura era que não só Portugal fora exemplar no combate à covid-19, como esse triunfo bastara para desfazer o estereótipo multi-secular de Portugal como país atrasado.

Smoking On His Donkey

Ponta Delgada, Açores, 1935, por Hans Tschira

Um dos pontos mais vulneráveis da alma portuguesa é a sua oscilação desvairada entre a auto-glorificação e a auto-flagelação, entre as convicções de que “somos os melhores do mudo” (tantas vezes reiterada por Marcelo Rebelo de Sousa) e de que “isto é uma choldra”. Como somos inseguros, não sabemos bem quem somos (apesar de estarmos obcecados com a nossa identidade) e convivemos mal com a nossa insignificância actual face ao protagonismo que tivemos na era dos Descobrimentos, damos uma importância desproporcionada aos julgamentos vindos de fora, ao que “os estrangeiros dizem de nós”. Na verdade, durante a maior parte do tempo, os “estrangeiros” não dão sequer pela nossa existência, como verificará quem se dê ao trabalho de seguir a cobertura da pandemia na Europa e no Mundo em media internacionais como a BBC ou a Deutsche Welle – mas bastaram dois ou três artigos de jornal e uma nota de rodapé num noticiário televisivo para insuflar o orgulho nacional e criar o mito de que o mundo estava pasmado com o “milagre português”.

“Milagre” que, na verdade, se resumiu a termos registado, na primeira vaga, um número de mortes por 100.000 habitantes abaixo de Itália, Espanha, França, Bélgica ou Reino Unido, embora acima de Finlândia, Noruega, Dinamarca, República Checa ou Grécia – ou seja, em termos europeus tivemos um desempenho mediano. Ora, as comparações de taxas de infecção e mortalidade por covid-19 devem ser sempre feitas tendo em conta um grande número de variáveis (ver capítulo “A esmagadora complexidade da realidade” em Covid-19: Os modelos de previsão merecem credibilidade?), pelo que é leviano olhar para o desempenho a meio da tabela de Portugal e falar em “milagre” e mais leviano ainda é atribuir esse suposto sucesso ao comportamento exemplar ou ao “muito sacrifício” levado a cabo pelos portugueses.

Se a ideia de que Portugal tivera um desempenho excepcional no combate à covid-19 na Primavera era questionável, o Outono veio escaqueirar de vez o “milagre português”. Em Portugal, ao longo da primeira quinzena de Dezembro o número diário de mortos tem oscilado entre 68 e 98, valores que parecem ser mais favoráveis do que as médias de 400 mortes/dia no Reino Unido, 450 mortes/dia na Alemanha, de 500 mortes/dia em França e do pico de 3157 mortes registado nos EUA a 9 de Dezembro (superior ao número de vítimas dos atentados de 11 de Setembro). Porém, quando se entra em conta com a dimensão das respectivas populações, a mortalidade em Portugal neste período é similar à registada nos EUA e em França e ligeiramente superior à do Reino Unido e Alemanha.

Após dez meses com a covid-19 no centro das notícias, das preocupações e dos debates e com um incessante afluxo e discussão de dados, nacionais e internacionais, sobre a pandemia, ainda não se instalou o hábito mental de ajustar os números de mortos à população do respectivo país. Para aumentar o enviesamento da percepção, os media portugueses concentram-se exclusivamente na Europa, EUA e Brasil, esquecendo o lado oposto do planeta, onde, efectivamente, ocorreram “milagres”: Taiwan, com um total de sete mortes desde o início da pandemia (e 24 milhões de habitantes), a Nova Zelândia com 25 (e 4.7 milhões de habitantes), Singapura com 29 (e 5.8 milhões de habitantes), o Vietnam com 35 (e 95 milhões de habitantes).

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Hora de almoço em escola de Taipei, Taiwan, Abril de 2020

Considerando o número de mortes por 100.000 habitantes, os países desenvolvidos da Ásia-Pacífico têm desempenho muito superior à Europa e EUA: Taiwan regista 0.03, China 0.34, Nova Zelândia 0.51, Singapura 0.51, Coreia do Sul 1.16, Japão 2.00. O país europeu mais bem colocado é a Noruega, com 7.40, seguida pela Islândia, com 7.92, a Finlândia, com 8.35, a Estónia (a Finlândia do outro lado do Báltico), com 11.66, a Dinamarca, com 16.39, a Letónia, com 18.27. É preciso dar um enorme salto para encontrar Portugal, com 54.94, e outro ainda maior para chegar ao topo, onde está a Bélgica, com 158.06 (todos estes dados são relativos à data de conclusão deste artigo, a 16 de Dezembro).

Os burros podem já não andar pelas ruas e estradas de Portugal, mas continuam entre nós.

Negativar

Significa “fazer um teste (à covid-19) que dá resultado negativo”. É quase tão horrendo como “parabenizar” e teme-se que possa ser apropriado pelos adolescentes no contexto do desempenho escolar – “Negativei outra vez a Português”.

“Vácina”

No penúltimo lugar da muito discutida hierarquia de prioridades para administração da vacina contra a covid-19 deveriam estar as pessoas que dizem “vácina” (o último lugar iria para os anti-vaxxers, indo ao encontro da sua firme oposição à vacinação).

A palavra “vacina” provém do latim “vaccinus”, adjectivo relativo a vaca (“vacca”), pois foi introduzida pelo médico britânico Edward Jenner na viragem dos séculos XVIII/XIX para designar a inoculação deliberada da varíola bovina (causada pelo vírus vaccinia) em seres humanos, de forma a conferir-lhes imunidade contra a (bem mais perigosa) varíola, naquele que foi um passo pioneiro na história da vacinação.

Edward Jenner administra a primeira vacina da história, a um rapaz de oito anos chamado James Phipps, a 14 de Maio de 1796. Quadro por Ernest Board, c.1910

Na maioria das línguas da Europa Ocidental, a palavra “vacina” reteve do latim o duplo “c” e o primeiro “a” aberto, no espanhol, perdeu o “c” mas mantém o “a” aberto (“vácuna”), no português perdeu o “c” e fechou o “a”, mas há quem insista em abri-lo.

Confinar

“Na Catalunha, dos novos 1.293 casos de infecção, 178 ocorreram em Segria (Lerida), onde os habitantes já voltaram a confinar nas suas casas”. É um exemplo respigado da imprensa nacional, entre muitos possíveis, que atesta a grave entorse sofrida pelo verbo confinar desde Março passado.

“Confinar” pode ter dois significados: enquanto verbo intransitivo significa “confrontar-se, ser limítrofe”; por exemplo: “o meu terreno confina a nascente com o do meu tio”. Enquanto verbo transitivo significa “limitar, circunscrever”; por exemplo: “os bombeiros confinaram o incêndio rapidamente”, “o director da prisão confinou os detidos às suas celas, privando-os de exercício ao ar livre”, “dado o rigor do clima, os criadores de gado confinam as reses ao estábulo durante o Inverno”. Ou seja, a acção transmitida pelo verbo “confinar” recai necessariamente sobre um ser vivo ou uma coisa. Já “confinar-se” é um verbo reflexivo, em que o sujeito gramatical é, em simultâneo, o agente e o alvo da acção; por exemplo: “embora o cabecilha fosse corajoso, faltava-lhe organização, pelo que a actuação do bando confinou-se a pequenos assaltos”; “até ao advento da Internet, a ideia de que a Terra é plana confinava-se a meia dúzia de lunáticos”; “após ter dado uma queda aparatosa a caminho da farmácia, a minha avó confinou-se em casa”.

Decorre daqui que a frase citada no início deste capítulo deveria ser “os habitantes já voltaram a confinar-se nas suas casas” – ou “voltaram a ser confinados nas suas casas”, se se quiser transmitir a ideia de que o fizeram a contragosto, por imposição das autoridades. Pela mesma razão, é incorrecto dizer “Confinei durante duas semanas” ou “A Alemanha vai confinar até 10 de Janeiro”.

New York City streets getting empty day by day

A usualmente frenética Times Square, em Nova Iorque, a 16 de Março de 2020

Verdade

Tal como Donald Trump tem, desde o início do seu mandato presidencial, rotulado de “fake news” todas as notícias que lhe desagradam, também a palavra “verdade” ficou associada, nos últimos meses, a visões do mundo com escasso contacto com a realidade, ou pelo menos, com o consenso científico sobre um determinado assunto. Em Portugal, a manifestação mais visível da visão conspiracionista de que os governos e os media estão conluiados para ocultar realidades terríveis ou para fabricar ameaças imaginárias, com o fito de manter as massas submissas, é o movimento Médicos pela Verdade, que “minimiza a gravidade da covid-19, é contra o uso generalizado de máscaras” e contra a testagem de indivíduos assintomáticos (ver Médicos pela Verdade: Ordem abre processo contra movimento que nega a gravidade da covid-19) e até divulga “receitas para possíveis infectados testarem negativo” (ver Ordem dos médicos abre processo disciplinar a médica “pela verdade”).

Por outro lado, se para a maior parte das pessoas – e dos especialistas de saúde pública – a administração generalizada da vacina contra a covid-19 parece ser a única forma prática de controlar a presente pandemia, há um número crescente de cépticos que vê na vacina mais uma conspiração maquiavélica para o domínio do mundo por forças sinistras (ver capítulo “A Marca da Besta” em Como a matemática controla os nossos dias).

[Edward Jenner e os políticos Thomas Dinsdale e George Rose (à direita) escorraçam três oponentes da vacinação (à esquerda). Cartoon por Isaac Cruikshank, 1808]

Os lunáticos que alimentam mundividências ao arrepio do consenso científico e até do mais elementar bom senso sempre existiram e Umberto Eco até publicou, há 32 anos, uma deliciosa sátira sobre esta fauna exótica, O Pêndulo de Foucault. Em 1988, o raio de acção destas teorias conspirativas confinava-se a um círculo restrito de “iluminados” com escassa vida social, mas o advento da Internet e, em particular, das redes sociais não só facilitou enormemente a difusão de teorias estultas como garantiu que os estultos só dialogam e trocam informação com estultos, o que tem o efeito de fortalecer tremendamente as suas esdrúxulas crenças. As mensagens dos que se reclamam detentores da Verdade são invariavelmente precedidas da advertência de que “isto são coisas de que os jornais e as televisões não falam”, por crerem que os media estão ao serviço das forças malignas que aspiram a controlar o mundo (o Clube de Bilderberg, Bill Gates, George Soros, os Sábios de Sião, uma rede islâmica que visa destruir a civilização europeia e impor a Eurábia, o Deep State, uma rede de pedófilos-vampiros com sede em Hollywood e Washington, lagartos inteligentes de outra galáxia) e não há desmentidos, estatísticas, argumentações racionais ou fact-checking capazes de convencer quem se alimenta deste tipo de babugem intelectual.

Para efeitos de processamento e filtragem de informação e preservação da sanidade mental, deve, pois, presumir-se que qualquer movimento que se apresente como sendo “pela Verdade” é um logro.