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Vladimir Putin puxou o travão de mão, fez um pião e quase inverteu a marcha. Metaforicamente falando, claro. O Ocidente previu um anúncio formal de guerra à Ucrânia a 9 de maio, uma mobilização geral de tropas russas e ameaças de uma guerra nuclear a pairar no ar da Praça Vermelha, quando o Presidente russo discursasse no Dia da Vitória. Nada disso aconteceu em Moscovo, assim como não aconteceu a demonstração aérea prevista de 77 aeronaves, esta segunda-feira, dia em que o país assinala a capitulação nazi na Segunda Guerra Mundial.
Putin pôs a Rússia no lugar de país ameaçado — a NATO e a Ucrânia é que se preparavam para invadir territórios históricos dos russos —, lamentou os soldados caídos a defender a pátria na região do Donbass e nunca, mas nunca, proclamou vitória na guerra que iniciou a 24 de fevereiro. Aliás, nunca disse a palavra Ucrânia. Kiev, sim, Odessa, sim, Donbass, sim. Ucrânia, nunca. E quando falou do seu povo, “o povo soviético unido”, foi para frisar que essa é a força da Rússia — “a grande e invencível força do nosso único povo multinacional”.
A defesa da Pátria e a ameaça da NATO
Rússia não começou a guerra, foi forçada a iniciar a sua operação especial devido às ameaças do Ocidente, argumentou Putin.
“A defesa da Pátria, quando o seu destino foi decidido, sempre foi sagrada.” Foi com estas palavras que Vladimir Putin começou o discurso do Dia da Vitória. Falou de “patriotismo genuíno” e lembrou vários momentos, sem ser a Segunda Guerra, quando derrotaram os alemães, em que os russos expulsaram os invasores do país — as milícias de Minin e Pozharsky contra a República das Duas Nações (Polónia-LItuânia), em 1612, ou a batalha de Borodino, em 1812, contra o exército francês comandado por Napoleão Bonaparte. Depois, dirigiu-se diretamente aos militares. “Hoje, vocês estão a lutar pelo nosso povo no Donbass. Para a segurança da nossa pátria, Rússia.”
Relembrando a importância do 9 de maio de 1945 — “para sempre inscrito na história mundial como um triunfo do nosso povo soviético unido” —, Putin lembrou qual o dever dos presentes, herdeiros daqueles que combateram os nazis: “Preservar a memória daqueles que destruíram o nazismo, que nos legaram o dever de vigilância para que façamos tudo para evitar que o horror da guerra global aconteça novamente.”
É isso, no entender do Presidente russo, que o seu país está a fazer na Ucrânia. A defender a pátria, já que o país liderado por Volodymyr Zelensky e a NATO tinham intenções de atacar a Rússia e os seus territórios históricos, apesar de Putin ter tentado evitá-lo através da diplomacia.
“Apesar de todas as divergências nas relações internacionais, a Rússia sempre defendeu a criação de um sistema de segurança igual e indivisível, um sistema que é vital para toda a comunidade mundial”, sublinhou o Presidente russo na Praça Vermelha, acrescentando que em dezembro do ano passado a Rússia quis assinar um tratado de garantia de segurança. “A Rússia pediu ao Ocidente um diálogo justo, que encontre soluções razoáveis e de compromisso, que tenham em conta os interesses uns dos outros. Foi tudo em vão. Os países da NATO não nos quiseram ouvir, o que significa que, na verdade, eles planeavam algo completamente diferente. E nós presenciámos isso.”
A invasão de terras históricas e a russofobia
Ucrânia preparava-se para adquirir armas nucleares, criando uma ameaça sobre as fronteiras da Rússia, à qual foi preciso dar resposta.
Além da NATO, também do lado da Ucrânia sopravam fortes ameaças em direção à Rússia, desde logo com a intenção de Kiev, afirmou Putin, de comprar armas nucleares.
Com a ameaça “absolutamente inaceitável” a crescer junto das fronteiras russas, “tudo indicava para o facto de que um confronto com neonazis, defensores de Bandera, em quem os Estados Unidos e companhia confiavam, seria inevitável”, argumentou Vladimir Putin. De seguida, criticou a expansão da NATO e a forma como o Ocidente tem colocado armamento próximo de Moscovo.
“Uma vez mais, vimos como a infraestrutura militar se está a desdobrar, como começaram a trabalhar centenas de conselhos estrangeiros, vimos entregas regulares das armas mais modernas dos países da NATO. O perigo foi crescendo”, sublinhou Putin, considerando que o seu país fez o que devia. “A Rússia tentou rejeitar essa agressão. Foi uma decisão forçada, oportuna e correta. A decisão de um país soberano, forte e independente.”
O seu arqui-inimigo histórico foi o alvo das críticas seguintes, com Putin a alertar que a Rússia não é igual aos outros e não segue, de olhos fechados, as palavras de quem lidera os Estados Unidos.
“Os EUA, especialmente após o fim da União Soviética, falavam acerca da sua exclusividade, humilhando não só o mundo inteiro, mas também os seus satélites, que têm de fingir que não percebem nada e engolir tudo. Contudo, nós somos um país diferente. A Rússia tem um caráter diferente. Nunca desistiremos do amor pela Pátria, da fé e dos valores tradicionais, dos costumes dos nossos antepassados, do respeito por todos os povos e todas as culturas.”
Já no Ocidente, esses valores parecem ter sido abolidos, na opinião de Putin. Essa “degradação moral” tornou-se a base para “falsificações cínicas da história da Segunda Guerra Mundial, desenvolvimento da russofobia, louvor aos traidores”, e o desaparecimento da memória das vítimas. “Sabemos que os veteranos americanos que queriam vir ao desfile em Moscovo, foram proibidos de o fazer”, referiu Putin. Logo a seguir, fez um raro aplauso a combatentes de outros países.
“Quero que eles saibam: estamos orgulhosos de vocês, pela vossa contribuição para a Vitória. Honramos todos os soldados dos exércitos aliados — americanos, britânicos, franceses — membros da Resistência, bravos soldados e partidários da China, todos aqueles que derrotaram o nazismo e o militarismo”, completou o Presidente da Federação Russa.
Donbass é luta pela Pátria
Tropas na região de Donbass estão a lutar pelos seus territórios, defendeu Putin, que desta forma rejeita a ideia de estar a ser violada a fronteira da Ucrânia.
O paralelo entre a guerra contra a Alemanha nazi e os nazis ucranianos foi feito, como era esperado, embora de forma mais subtil do que muitos analistas previram. Mais uma vez, Putin viajou aos primórdios da história do seu país, para falar, por exemplo, de Svyatoslav (945-972), grão-princípe de Kiev, que, durante a sua vida, construiu o maior Estado na Europa. No seguimento das referências históricas, Putin lembrou a Segunda Guerra e lembrou os heróis que nela lutaram até à morte.
“Apelo agora às nossas Forças Armadas e às milícias do Donbass. Estão a lutar pela Pátria, pelo futuro, para garantir que ninguém se esqueça das lições da Segunda Guerra Mundial. Para que não haja lugar para carrascos, punidores e nazis no mundo.” Logo de seguida, Putin fez uma vénia à memória de todos cujas vidas foram tiradas pela Grande Guerra Patriótica, mas também “à memória dos mártires de Odessa, queimados vivos na Casa dos Sindicatos em maio de 2014”.
Antes de pedir um minuto de silêncio, Putin falou ainda da região ucraniana de Donbass — onde se encontram os movimentos separatistas pró-russos e onde a Rússia acusa Zelensky da prática de genocídio: “Lembremo-nos dos idosos, mulheres e crianças do Donbass, civis que morreram de bombardeios implacáveis, ataques bárbaros de neonazis. Agradecemos aos nossos camaradas de armas que morreram numa batalha justa — pela Rússia.”
Perda de tropas reconhecida, mas sem números
Num momento raro, Presidente russo reconhece a perda de soldados no conflito armado e promete apoio especial às famílias.
Vladimir Putin assinou um decreto presidencial, segundo anunciou no seu discurso do Dia da Vitória, para garantir apoio financeiro às famílias, e em especial aos filhos, dos militares russos mortos durante o conflito armado na Ucrânia. Esta foi um raro reconhecimento de perdas humanas na invasão da Ucrânia por parte do Presidente russo — a primeira vez que aconteceu foi a 4 de abril, quando o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, assumiu “perdas significativas” em combate.
Agora, Vladimir Putin promete que “o Estado, as regiões, as empresas e as organizações públicas farão de tudo para proteger essas famílias, para ajudá-las”, dando apoio especial aos filhos de soldados mortos e feridos. “Desejo aos soldados e oficiais feridos uma rápida recuperação. E agradeço aos médicos, paramédicos, enfermeiros, pessoal médico de hospitais militares pelo seu trabalho dedicado. Obrigado por lutarem pelas todas as vidas — muitas vezes sob fogo, na linha de frente, sem se poupar.”
Gangues terroristas e um povo único multinacional
Presidente russo não falou de uma potencial expansão da Rússia, mas referiu-se ao seu povo de várias nacionalidades.
Muitos analistas defenderam que Vladimir Putin usaria o 9 de maio para decretar guerra oficial à Ucrânia (ou até mesmo a outros países vizinhos). Não aconteceu, assim como também não aconteceu a mobilização de tropas que muitos esperavam. O discurso foi antes unificador, patriótico, tentando de alguma forma consolidar o apoio dos russos à guerra atual.
“Caros camaradas! Neste momento, aqui, na Praça Vermelha, estão soldados e oficiais de muitas regiões da nossa grande Pátria, incluindo aqueles que chegaram diretamente de Donbass, diretamente da zona de combate. Lembramo-nos dos inimigos da Rússia que tentaram usar gangues de terroristas internacionais contra nós, procuraram semear inimizade nacional e religiosa para nos enfraquecer e nos separar. Nada disso resultou”, disse Putin.
Continuando a falar de diferentes etnias e cidadanias, voltou a reforçar a ideia do princípio do discurso de um povo soviético unido, onde cabem diferentes países: “Hoje, os nossos combatentes de diferentes nacionalidades juntos em batalha, cobrem-se de balas. E esta é a força da Rússia, a grande e invencível força do nosso único povo multinacional.”
Em seguida, com o discurso prestes a terminar, e antes de começar a habitual parada militar, dirigiu-se diretamente àqueles que combatem na Ucrânia, dizendo-lhes que estão a defender o mesmo pelo qual os pais, avôs e bisavós lutaram. “Para eles, o sentido mais alto da vida foi o bem-estar e a segurança da Pátria.” Para os seus herdeiros, a devoção à Pátria deve ser o principal valor e um pilar da independência da Rússia.
“Aqueles que esmagaram o nazismo durante a Grande Guerra Patriótica mostraram um exemplo de heroísmo para sempre. Esta é uma geração de vencedores”, concluiu Putin, antes de terminar um discurso com vivas às Forças Armadas, à Rússia e à vitória.