Invocar o artigo 80 da Constituição que permite ao Presidente tomar “medidas excecionais” em caso de “perigo iminente”, demitir o primeiro-ministro e suspender o parlamento. E, se tudo corresse bem, levar o país para uma “ditadura constitucional”. O guião do que aconteceu na Tunísia no passado domingo, quando o Presidente Kais Saied pôs em marcha todos estes passos, começou a ganhar forma há dois meses, como, aliás, comprova um documento encontrado no gabinete de Saied, escrito pelos seus conselheiros, com data de 13 de maio, tendo sido dias depois divulgado pelo Middle East Eye.
Na altura, o caso parece ter passado despercebido, mas, conforme explica ao Observador o analista Tarek Megerisi, analista do think tank European Council on Foreign Affairs (ECFR), o “golpe constitucional”, como tem sido referido, foi algo que “já era planeado há algum tempo e foi algo para o qual as pessoas já estavam preparadas”. Apontada como o único caso de sucesso após as Primaveras Árabes de 2011, por ter conseguido manter um sistema democrático, as crises económica e política têm deixado a Tunísia à beira da rutura, problemas que persistem há vários anos. Os protestos dos últimos meses foram o gatilho para um momento de viragem cujas consequências são ainda imprevisíveis, mas que, em último caso, podem pôr fim ao regime democrático no país.
“A população está desligada dos seus políticos e do seu sistema político, e quando chega alguém que promete às pessoas que vai mudar tudo e que lhes vai dar tudo o que querem, então as pessoas apoiam-no”, continua Tarek Megerisi, especializado no mundo árabe, remetendo para a forma como o Presidente Kais Saied, de 63 anos, um independente, foi eleito em 2019 com mais de 72% dos votos, com a promessa de combater a corrupção — um dos flagelos que tem afetado a sociedade tunisina e que tem atrasado o processo de transição democrática.
Ao contrário dos países vizinhos, como a Líbia ou o Egito, que viram as suas revoluções serem rapidamente esmagadas após as Primaveras Árabes, a Tunísia, onde tudo começou — quando o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi se imolou pelo fogo em protesto contra as condições de vida no país, dando origem a uma vaga de contestação que levou à queda do ditador Zine El-Abidine Ben Ali, que esteve no poder 23 anos —, conseguiu manter a democracia viva após a chamada Revolução de Jasmim.
No entanto, apesar da democratização, muitos dos problemas do país continuaram sem solução, e os sucessivos governos — dez desde a revolução — e as divisões políticas no parlamento têm impedido que chegue uma estabilidade que permita pôr fim à crise económica e social.
“O facto de a Tunísia não ter estabilizado o seu governo porque estava constantemente ou em crise ou a resolver problemas da transição democrática não permitiu que houvesse um governo estável”, afirma ao Observador Álvaro Vasconcelos, fundador do Fórum Demos e autor do livro “As Vozes da Diferença: A Vaga Democrática Árabe” (editora Bizâncio), sobre as Primaveras Árabes. “Os problemas sociais que o país enfrentava e que levaram à revolução de 2011 não foram resolvidos. Em muitos casos, agravaram-se”, acrescenta.
O Presidente “Robocop” que prometeu combater a corrupção. Até quando terá apoio?
Num país em que um terço dos jovens estão desempregados, com poucas ou nenhumas perspetivas de futuro, uma pandemia de Covid-19, que nos últimos meses se agravou, levando o governo a tomar medidas mais musculadas para travar os contágios, tudo ficou ainda difícil. Um dos setores mais afetados, e do qual o país depende para o seu crescimento económico, é o do turismo, que fez aumentar ainda mais o desemprego e a incerteza quanto ao futuro.
Neste contexto, milhares de pessoas têm saído às ruas para protestar contra a classe política e essa vaga de manifestações foi o argumento utilizado pelo Presidente Kais Saied para demitir o primeiro-ministro Hichem Mechichi, suspender por 30 dias as atividades do parlamento e concentrar em si praticamente todos os poderes do Estado, inclusive a chefia do poder judicial, uma manobra que o maior partido tunisino, o Ennahda, um movimento islamista moderado, inspirado na Irmandade Muçulmana fundada no Egito, considerou como um “golpe de Estado” — que contou com o apoio do exército tunisino, que se pôs ao lado do Presidente.
Mas, apesar de Saied invocar a Constituição para concentrar em si os poderes, os críticos e constitucionalistas têm notado que a medida é inconstitucional, uma vez que para invocar o art.º 80.º é necessário consultar o primeiro-ministro e o presidente do Parlamento, no caso, Rachid Ghannuchi, líder do Ennahda. Para tornar tudo ainda mais complicado, os partidos políticos tunisinos ainda não conseguiram chegar a um acordo para a criação de um Tribunal Constitucional, e Saied tem bloqueado os esforços nesse sentido.
Presidente da Tunísia anuncia ataque à corrupção após concentrar poderes
Apelidado de “Robocop” pela sua postura rígida e austera, Kais Saied, um professor de Direito sem experiência política ou apoio de partidos, ganhou popularidade com um discurso anticorrupção e antissistema e, segundo os analistas, desde que foi eleito que tem dado sinais de querer centralizar o poder em si, bloqueando remodelações governamentais e defendendo a necessidade de aumentar os poderes do Presidente em detrimento do governo e do parlamento. Conforme escreve o The Guardian, a popularidade de Saied tem vindo a diminuir desde que foi eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, mas, ainda assim, é hoje o político mais popular no país.
“Enquanto Saied mantiver o sonho vivo, vai ter apoio. A questão é que, agora, já não tem mais ninguém para culpar e, à medida que o sonho não se transformar em realidade, vai começar a perder apoiantes muito rapidamente”, antevê Tarek Megerisi. “Os tunisinos que saíram para celebrar o que aconteceu [a demissão do primeiro-ministro] não o fizeram por apoiarem Saied ou porque queiram regressar a uma ditadura. Fizeram-no, porque sentiram que a classe política é corrupta e sentem a necessidade de mudança, vendo esta situação como oportunidade para se livrarem da classe política e seguirem em frente com o processo de democratização”, garante o analista do ECFR.
Partidos e sociedade civil na expectativa: os próximos 30 dias serão decisivos
Mas, alerta Megerisi, os tunisinos que acreditam que conseguem manter a democracia viva aproveitando a manobra de Saied “podem estar enganados” e o risco de a Tunísia voltar a ser uma ditadura é bem real, apesar de o analista considerar que o “ golpe não significa o fim da democracia tunisina”.
Um dos momentos de maior tensão parece ter sido ultrapassado, quando os partidos políticos, e principalmente o Ennahda, o maior partido com representação parlamentar, pediram aos seus apoiantes para não saírem às ruas e evitarem os confrontos com os apoiantes de Saied, numa tentativa de evitar uma escalada de violência que pudesse impossibilitar o diálogo.
Nesse sentido, há uma grande expectativa quanto ao que vai acontecer após os 30 dias de suspensão do parlamento, altura em que é expectável que Saied nomeie um novo primeiro-ministro, sendo que o ex-chefe de governo, Hichem Mechichi, já veio dizer que se vai afastar do processo, enquanto o Ennahda disse estar disponível para eleições antecipadas. A grande incógnita é saber se o Presidente vai restabelecer a normalidade democrática ou se vai tentar aumentar ou até consolidar o seu poder.
“Para a Tunísia, o risco é que a democracia morra, que o Presidente Saied concentre o poder nos próximos anos e mude o sistema tunisino para um sistema autocrático, existindo o risco de os deputados começarem a ser presos e os militares reprimirem qualquer resistência. Esse é o maior receio”, sublinha Megerisi.
Acresce que, ao contrário de outros países da região, a Tunísia tem uma sociedade civil muito ativa e vincada e os sindicatos e outras organizações estão, eles próprios, na expectativa quanto aos desenvolvimentos dos próximos dias.
“Não se querem opor frontalmente ao Presidente para não cortarem a possibilidade de diálogo, até porque sabem que o descontentamento popular é muito grande. Por isso, assumem uma posição de cautela”, afirma o analista Álvaro Vasconcelos, recordando que, em 2013 e 2014, durante uma crise política que pôs em causa as conquistas da Revolução de Jasmim, coube precisamente aos membros da sociedade civil apaziguar a situação, marcada por assassínios políticos e grandes protestos, e levar à realização de novas eleições. Por esse motivo, o chamado Quarteto para o Diálogo— constituído pela União Geral dos Trabalhadores da Tunísia, a Confederação da Indústria, Comércio e Artesanato, a Liga dos Direitos Humanos da Tunísia e a Ordem Nacional dos Advogados — recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2015.
O apoio das ditaduras árabes ao “golpe” e o papel “chave” da União Europeia
Nas próximas semanas, a comunidade internacional estará atenta ao desenrolar dos acontecimentos na Tunísia, e tanto a União Europeia como os Estados Unidos já vieram demonstrar preocupação com a situação e apelar ao regresso da estabilidade à única democracia do mundo árabe.
Por outro lado, a manobra de Kais Saied recebeu o apoio dos Emirados Árabes Unidos, da Arábia Saudita e do Egito, países que, nas palavras de Álvaro Vasconcelos, “procuram combater a corrente islamista moderada e democrática” na Tunísia, temendo que movimentos semelhantes se espalhem para os seus países. “Esses países só querem ver ditaduras no mundo árabe e sempre viram com grande horror as revoluções democráticas de 2011. O último exemplo que resta é o da Tunísia, que é visto como um mau exemplo para eles”, afirma o fundador do Fórum Demos.
União Europeia segue situação na Tunísia e pede contenção da violência e regresso da estabilidade
Nesse sentido, Álvaro Vasconcelos considera que uma “questão chave” para o desfecho da crise política na Tunisia será a posição dos Estados Unidos e, em particular, da União Europeia, que mantém uma relação de grande proximidade com Tunes, quer enquanto parceiro económico privilegiado, como enquanto financiador na reconstrução do país, defendendo, por isso, a necessidade de uma posição “assertiva”.
Esta tese é também partilhada pelo analista Tarek Megerisi que, num artigo publicado para o ECFR, refere precisamente que “os europeus não se podem pôr à parte do caos na Tunísia” e que um “envolvimento europeu ativo agora pode ajudar a restaurar a estabilidade do país”.
Milhares de manifestantes protestam contra a classe política na Tunísia
“Um vácuo europeu aqui também levará inevitavelmente a que outras potências regionais tentem explorar a situação no quintal da Europa, como ocorreu de forma mais dolorosa na Líbia”, alerta Megerisi, terminando com uma nota de otimismo: “Se gerida com habilidade, com a ajuda europeia, esta crise pode ser o ímpeto e a oportunidade para lidar com questões políticas e económicas anteriormente sem solução, e dar apoio à contínua transição da Tunísia para a democracia.”