O caso ilustra os abusos – muito além dos limites autorizados pela lei – a que algumas empresas sujeitam os seus funcionários em teletrabalho. E é uma preocupação de trabalhadores, empresas e juristas, numa altura em que o Governo aprovou por decreto uma extensão do teletrabalho obrigatório até final do ano (que o Presidente promulgou esta segunda-feira). Uma grande companhia portuguesa — cujo nome não será mencionado para garantir a privacidade dos funcionários envolvidos — suspeitava que dois trabalhadores não estavam realmente a trabalhar durante grande parte do horário de expediente. Pediu-lhes que entregassem os computadores sob a justificação de que lhes seriam dados outros. Assim aconteceu. Só que nos novos equipamentos tinha sido instalado um software — ilegal — que reproduz as teclas digitadas (outra monitorização ilegal), para que a empresa pudesse ver (outra vez ilegal) que o que escreviam era conteúdo de trabalho.
Essa instalação foi feita sem conhecimento dos trabalhadores, que só descobriram que estavam a ser controlados quando foram confrontados pela empresa. Um deles, efetivamente, não estava a cumprir com as obrigações laborais (este caso ainda não teve um desfecho). A outra situação era menos grave — o trabalhador apenas dispensou alguns minutos para outras tarefas — e, por isso, as partes chegaram a acordo: o funcionário foi avisado e o software desinstalado.
Ainda que os advogados ouvidos pelo Observador reconheçam que os trabalhadores estão hoje mais cientes dos seus direitos e as empresas mais conscientes do seus limites do que no início da pandemia, há ainda casos de atropelos à lei e à privacidade (o episódio inicial aconteceu este ano). Se no escritório cabe à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) fiscalizar, o que acontece quando o local de trabalho se muda para a casa do trabalhador e as funções da autoridade de fiscalização esbarram contra o princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio? Cai-se numa zona cinzenta. Para Rita Garcia Pereira, advogada especialista em direito do trabalho, falta na lei uma clarificação — e um reforço — dos poderes concretos de fiscalização da ACT ao teletrabalho. Por exemplo, defende, permitindo que aquela entidade possa entrar na casa do trabalhador sob determinadas regras.
Este é um dos pontos que, defende, deveria merecer a atenção do Governo quando este se debruçar sobre o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que será apresentado na quarta-feira aos parceiros sociais, e no qual constará, entre outras matérias, o teletrabalho. O Livro — como acontece com todos os livros verdes — deverá apenas conter orientações gerais que podem, mais tarde, guiar alterações legislativas.
O Executivo já disse que não quer fazer grandes mudanças na lei — “Não é para fazer uma revolução na regulação do teletrabalho”, mas “ajustamentos e melhorias”, afirmou o secretário de Estado do Emprego na semana passada —, mas os partidos políticos já se adiantaram e apresentaram as suas propostas, que implicam clarificações legislativas sobre a partilha de despesas entre trabalhador e empregador ou o direito à desconexão. Essas questões não são novas, têm sido debatidas na opinião pública desde o início da pandemia, mas ainda não suscitaram alterações a uma lei — a do teletrabalho — que existe desde 2003 e não está adaptada aos tempos pandémicos nem à generalização do trabalho remoto, nem sequer às novas tecnologias atualmente envolvidas e ao que elas implicam.
Ainda assim, e apesar das questões pendentes, o Governo já aprovou o teletrabalho obrigatório , nos concelhos de maior risco, até ao final do ano. A decisão é tomada numa altura em que o Executivo e o coordenador do plano de vacinação pretendem atingir os 70% da população vacinada até final de verão (o limiar da imunidade de grupo).
As faturas que faltam esclarecer
O teletrabalho está inscrito no Código do Trabalho desde 2003 e está formulado para situações em que há acordo entre ambas as partes. Com a pandemia, o Governo decretou a obrigatoriedade do teletrabalho, que se manterá até final do ano (quando terminar o estado de emergência, ‘apenas’ nos concelhos de maior risco), e o número de trabalhadores neste regime disparou. Surgiu, por isso, um conjunto de novas questões que, até ao início da pandemia, não preocupavam a maioria dos trabalhadores.
Rita Garcia Pereira considera que falta à lei o “estabelecimento de regras claras e inequívocas” quanto à reparticipação dos custos do teletrabalho que recaem sobre o trabalhador “para se saber o que compete a uns e a outros”. Pedro da Quitéria Faria, advogado de direito laboral da Antas da Cunha Ecija, concorda, embora rejeite que este seja o tempo de grandes alterações legislativas “a quente”: “Entendo que poderão existir alterações cirúrgicas ao regime, nomeadamente algum tipo de clarificação — sendo certo que ela vai ser sempre muito difícil — no que concerne às despesas”.
O artigo 168.º do Código do Trabalho refere que, caso o contrato não estipule o contrário, “presume-se que os instrumentos de trabalho respeitantes a tecnologias de informação e de comunicação utilizados pelo trabalhador pertencem ao empregador”, pelo que que este “deve assegurar as respetivas instalação e manutenção e o pagamento das inerentes despesas“. Em fevereiro, o Ministério do Trabalho esclareceu que os empregadores devem suportar as despesas com internet e telefone, mas não com água, eletricidade e gás.
Governo diz que empresas em teletrabalho têm que suportar despesas de internet e telefone
Esta afirmação pública não chega, defende Pedro da Quitéria Faria, devendo existir legislação que o especifique. “Se se pretende clarificar, é preciso vermos como e de que forma. Porque no mesmo agregado familiar podem existir duas pessoas em teletrabalho a tempo completo e só existir uma fatura. Como é que se computa qual das duas empresas — do marido ou da mulher — é que paga a fatura da internet?”
Numa proposta entregue no Parlamento na semana passada, o Bloco de Esquerda formula uma solução ao sugerir que fique estabelecido na lei que cabe ao empregador o pagamento das despesas inerentes ao teletrabalho — “nomeadamente os custos fixos gerados pelo uso de telecomunicações, água, energia, incluindo climatização, e outros conexos com o exercício das funções“. A proposta deixa em aberto os valores a pagamento. Nesse sentido, a proposta do PCP é mais concreta: as empresas devem pagar o equivalente a, pelo menos, 2,5% do IAS (10,97 euros) por dia, para compensar os consumos de água, eletricidade, internet e telefone.
Mas há outra fatura pendente — a fiscal. Segundo o Negócios, as empresas que comparticipem os custos dos trabalhadores — com internet e telefone — não conseguem deduzir esses valores ao IRC porque apenas podem ser deduzidas despesas em que a fatura esteja em nome da empresa (o que não acontece com a internet e telefone de casa dos trabalhadores). A solução seria as empresas contratarem o serviço ou darem ao trabalhador esses valores sob a forma de rendimento ou reembolso — que seriam sempre sujeitos a IRS e Segurança Social.
O Governo já sinalizou disponibilidade para alterar este problema. No Parlamento, em fevereiro, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, disse que são precisas “soluções de bom senso”. “Não é surpresa, por exemplo, que nos encargos de compensação para deslocação em viaturas próprias não é obrigatório que haja o NIF das empresas e é uma das situações em que devidamente mapeado e documentado uma situação desta natureza pode ser enfrentada.” O Governo, garantiu, “está a estudar a melhor solução para o fazer porque estes rendimentos não são rendimentos isentos, não está neste momento regulado, e não quantificam como custos senão tiverem a despesa associada. Mas há outras soluções de outras situações”. O Observador perguntou aos ministérios das Finanças e do Trabalho que soluções encontrou o Governo — e se constarão no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho —, mas não obteve resposta.
Pedro da Quitéria Faria considera, porém, que este não é o tempo de significativas alterações na lei “a quente”, numa altura em que o teletrabalho está “massificado” por causa da pandemia. “É preciso amadurecermos o efeito do teletrabalho, qual a sua adesão para futuro, se caminharemos para um regime de teletrabalho massificado, ou ao invés para um regime híbrido”, defende.
Enquanto em Portugal não se avança na regulamentação da (mais do que provável) forma dominante de trabalho no pós-pandemia, no país vizinho – Espanha – desde setembro do ano passado que existe um Real Decreto que já vai mais longe: é obrigatória a prévia enumeração dos custos e a quantificação da respetiva compensação. Na nova legislação espanhola – que obriga a acordos formais entre empresa e trabalhador – consideram-se situações de teletrabalho aquelas em que pelo menos 30% das horas sejam feitas à distância, durante um período de três meses, ou o equivalente a um dia e meio por semana.
Menos tranquilizador é que o novo diploma espanhol deixa espaço, sem detalhar, para que a empresa adote “as medidas de vigilância e controlo que considere oportunas” – e isto inclui, obviamente, meios informáticos.
A zona cinzenta da fiscalização
A advogada Rita Garcia Pereira é perentória: “A ACT terá de ter poderes para fiscalizar o teletrabalho” (e não apenas para verificar se ele está a ser adotado sempre que as funções o permitem). “Se o empregador pode ir a casa do trabalhador, a ACT também deveria poder”, defende ao Observador.
O Código do Trabalho prevê, no artigo sobre a privacidade do trabalhador em regime de teletrabalho, que o empregador pode visitar o trabalhador em casa para “o controlo da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho”. Essa visita apenas pode acontecer entre as 9h00 e as 19h00, “com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada”. Além disso, a lei abre portas a que a visita aconteça sem aviso.
Essa é uma possibilidade que o PCP pretende alterar. Na proposta sobre o teletrabalho que apresentou ao Parlamento, os comunistas defendem que quando o teletrabalho é realizado no domicílio do trabalhador, “a visita ao local tem que ter a concordância do trabalhador e só deve ter por objeto a instalação, reparação e manutenção dos instrumentos de trabalho, devendo ser marcada por acordo e apenas pode ser efetuada, entre as 10 e as 17 horas, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada”. Além disso, querem que “o controlo da atividade laboral do trabalhador em regime de teletrabalho” só possa “ser efetuado no local e posto de trabalho do mesmo, nas instalações da entidade empregadora”.
Mais: pedem que a lei seja mais clara quanto à proibição da vigilância do teletrabalhador, inscrevendo na legislação que “os instrumentos de trabalho eletrónicos, de imagem e som destinam-se exclusivamente ao exercício da atividade laboral não podendo ser usados para vigilância e controlo do trabalho e do espaço em que o trabalhador se encontra, por parte da entidade empregadora”.
De facto, as soluções tecnológicas para controlar o trabalhador à distância “não são admitidas”, segundo uma orientação da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). Esta proibição inclui os softwares que rastreiam o tempo de trabalho e de inatividade, mas também as páginas de internet visitadas, a localização do terminal em tempo real, as utilizações de dispositivos como o rato e o teclado (como no caso mencionado), programas que captem o ambiente de trabalho, que registam o acesso a uma aplicação, que controlam o documento em que se está a trabalhar e que registam o tempo gasto em cada tarefa.
“Ferramentas deste tipo recolhem manifestamente em excesso dados pessoais dos trabalhadores, promovendo o controlo do trabalho num grau muito mais detalhado do que aquele que pode ser legitimamente realizado no contexto da sua prestação nas instalações da entidade empregadora”, considera a CNPD. O facto de o trabalho estar a ser prestado em casa “não justifica uma maior restrição da esfera jurídica dos trabalhadores“. Daí que a recolha e o tratamento desses dados “violam o princípio da minimização dos dados pessoais“, que consta no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD).
Exigir que o trabalhador mantenha a câmara de vídeo “permanentemente ligada” também “não é admissível”. Só que esta formulação — “permanentemente ligada” — levou, segundo a advogada de direito do trabalho Rita Garcia Pereira a que as empresas contornassem a orientação da CNPD: em vez de ordenarem aos trabalhadores que mantenham as câmaras ligadas durante todo o dia, passaram a fazê-lo só nalgumas alturas do horário de trabalho. Nalguns casos, esse pedido é feito por email — “para que liguem as câmaras naquele momento de forma a ver se as pessoas estão imediatamente a trabalhar”.
Na secção sobre os direitos de personalidade, o Código do Trabalho define que “o empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador“. A violação deste ponto constitui uma contraordenação muito grave.
Pedro da Quitéria Faria aponta que a legislação atual — o Código do Trabalho, eventuais instrumentos de regulamentação coletiva e o RGPD — “protege substancialmente a posição do trabalhadores relativamente a condutas invasivas ou intrusivas da sua privacidade“.
Além disso, “já existe jurisprudência relevante sobre a proibição de determinado tipo de prova que emerja da violação destas normas e preceitos”. Um empregador que queira usar provas adquiridas de forma ilícita, como as elencadas pela CNPD, para agir disciplinarmente contra um trabalhador terá um “trabalho difícil pela frente“. “São muito poucos os casos onde esse tipo de prova é valorado para efeito da licitude da sanção disciplinar ou do despedimento“, explica.
Como o teletrabalho dificultou os meios de prova
A CNPD já considera legítimo — e os advogados ouvidos pelo Observador convergem nesse sentido — que o empregador possa registar os tempos de trabalho dos funcionários, num sistema semelhante ao “picar o ponto” no trabalho presencial. Nesta solução, considera Pedro da Quitéria Faria, “não existe nenhuma invasão da privacidade do trabalhador, da sua vida intima ou privada”. Por isso, o advogado tem aconselhado várias empresas a adotar este mecanismo — que também pode ser útil num outro debate que se tem intensificado: o trabalho suplementar.
De facto, uma das queixas recorrentes dos sindicatos tem sido a de que o teletrabalho veio aumentar o ritmo de trabalho e a desregulação dos horários, sem que isso se traduza necessariamente num acréscimo remuneratório. A lei dita que o trabalho suplementar pode ser pedido ao trabalhador “quando imperiosos interesses da empresa o justificam, desde que exista fundamentação objetiva” e que seja remunerado, explica o advogado.
Um sistema que permita registar os tempos de trabalho pode, por isso, monitorizar as horas laboradas e “defender ambas as partes”: o trabalhador “para que não exceda o seu período normal de trabalho” e as empresas “para que se possam defender relativamente a eventuais pedidos de remuneração suplementar feitos pelos trabalhadores quando é o próprio trabalhador que decide trabalhar além do período normal de trabalho” (situação em que não há lugar ao pagamento extra).
O problema é que as empresas podem exigir ou pressionar o trabalhador a prestar trabalho suplementar sem que esse pedido fique registado. Numa eventual disputa sobre o pagamento dessas horas, será mais difícil para o trabalhador provar que o trabalho suplementar lhe foi pedido. O teletrabalho também não ajuda nessa situação. É que uma das provas usadas poderia ser a testemunhal (por exemplo, de colegas), mas estando em teletrabalho, a prova testemunhal — por exemplo, de familiares — “estará enfraquecida”.
Por isso, a proposta sobre o teletrabalho apresentada pelo PCP quer tornar claro na lei que, para que o trabalhador realize trabalho suplementar, é preciso que haja um pedido por escrito do empregador. Além disso, defendem, o horário não pode começar das 8h00 nem terminar depois das 19h00.
O Bloco de Esquerda, por sua vez, quer colocar na lei o direito — e o dever — às desconexão profissional. Segundo a proposta apresentada, “o dever de desconexão por parte do empregador inclui, nomeadamente, disposições práticas para desligar ferramentas digitais para fins de trabalho”. Estas formas de garantir a desconexão profissional “designadamente através da não utilização das tecnologias de informação e comunicação durante o período de descanso do trabalhador”, podem ser estabelecidas através da negociação coletiva, admitem. Mas a violação deste direito “pode constituir assédio”.
Além do Bloco e do PCP, outros partidos já disseram que querem apresentar propostas para regular o teletrabalho — o PS, o PSD e o PAN. Com a obrigatoriedade do teletrabalho até final de ano nos concelhos mais afetados, o tema veio para ficar — e por cá deverá continuar mesmo depois da pandemia. Os números da Deco, enviados ao Observador, também mostram como os portugueses estão atentos às alterações em matéria de trabalho. Desde o inicío de pandemia, a Deco recebeu sete mil pedidos de informação relacionadas com questões laborais — com forte incidência no teletrabalho. Deste valor, 3.300 contactos foram feitos desde janeiro.