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Lorde © Hugo Lima
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Lorde © Hugo Lima

Lorde © Hugo Lima

A encenação de Lorde no fecho do Vodafone Paredes de Coura

A trigésima edição do Vodafone Paredes de Coura terminou com uma lotação de 80 mil pessoas. Em 2024, o festival está de volta de 14 a 17 de agosto.

Imaginemo-nos numa festa de amigos, em que alguém resolve apropriar-se da playlist e tem a peregrina ideia de fazer uma passagem de “Spiders (Kidsmoke)”, dos Wilco, para “Royals”, da Lorde. Quão desconcertante isso seria? Pois bem, foi exatamente isso que o Vodafone Paredes de Coura fez na sua última noite: arriscou um salto mortal e a queda foi, no mínimo, insólita.

Os alinhamentos não têm de ser herméticos e é de salutar que um festival use do seu cunho autoral para gerar confrontação. Em vários momentos isso resulta, como por exemplo na noite anterior, com Black Midi e Little Simz, mas neste caso esteve longe de ser brilhante. Tal como o azeite e a água, Wilco e Lorde não se misturam. É evidência quimicamente comprovada.

Focando-nos nos factos, os Wilco deram um concerto sólido, de canções sacadas de um cancioneiro que tem pouco por onde errar. Passaram por “Handshake Drugs” e “Hummingbird”, do álbum A Ghost is Born (2004), pelo mais recente trabalho, Cruel Country (2022), de onde tiraram “Bird Without a Tail / Base of My Skull” ou pela enérgica “Random Name Generator”, de Star Wars (2015), sabendo balizar os momentos mais calmos com os que pediam pé a fundo no acelerador. Para o final ficou “A Shot in the Arm” (summerteeth, 1999) e uma plateia que, da régie para a frente, estava completamente encantada.

Já Lorde passou o tempo todo a jorrar emoções de tal forma ensaiadas que ficámos com a sensação de estarmos a consumir um produto plástico de rápida absorção, tipo Happy Meal. Era ela a grande cabeça de cartaz e a queen bee da noite. Entrou em cena com “Royals”, single do álbum de estreia-sensação Pure Heroine (2013) e logo aí ficámos de pé atrás. Tudo estava demasiado direitinho, a começar pelos seus movimentos, saídos de um guião muito bem ensaiado sem espaço para genuína comoção, e terminando no timing dos planos das câmaras, sempre a acompanhar os passos da neozelandesa de forma a causar sucessivos ataques cardíacos aos fãs das primeiras filas, que trucidaram as cordas vocais em karaokes e gritos viscerais.

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Ela esteve ali, efetivamente, de corpo inteiro, mas sem alma. Correu de um lado para o outro, lançando esgares caprichosos, deitando-se no chão, sentando-se na ponta do palco para um momento de confidência em que partilhou, entre pausas dramáticas, que nunca tinha sentido tanto amor como em Portugal. “Fico inspirada”, lançou num suspiro, já com quase dois minutos de conversa contemporizada ao pormenor, para introduzir “Liability”, canção triste de um tempo durante o qual fartou-se de chorar, conta.

Em “Sober” perguntou se já estávamos bêbedos; em “Tennis Court” partilhou que sempre que vem ao Porto só lhe apetece dançar (alguém lhe devia ter dito que Paredes de Coura não é o Porto); e no final de “Green Light” ficou de mão no peito, fazendo uma vénia, fingindo sentimentos sem a elevação de um poeta fingidor e, mal teve tempo para se escapulir, lá foi ela a correr para o camarim, como a atriz que anda há meses a repetir a mesma cena sem acreditar minimamente no que está a representar.

A única parte que nos soou efetivamente autêntica foi quando Lorde, antes de se lançar para “400 Lux”, disse que éramos um pouco loucos por andarmos aqui a agendar concertos para a uma da manhã. “A que horas vocês acordam para fazer isto?”, perguntou incrédula, talvez pensado que estaria bem melhor na sua cama do que a fazer a mesma performance batida pela milésima vez na digressão.

No público havia quem delirasse e quem se mostrasse impaciente com a falta de espontaneidade. Para quem vibrou com a atuação de Lorde, certamente voltará para casa jurando ter sido este o melhor concerto das suas vidas. Efetivamente, não houve falhas. Durante praticamente uma hora e meia, tudo esteve muito controlado.

Lorde

© Hugo Lima

Lorde serviu e serviu-se do seu pop adolescente a seu belo prazer, fez-se monarca absoluta do palco, sem dar protagonismo aos seus músicos (tão escondidos a um canto que só a meio do concerto notámos a sua presença) e usou da cenografia de sois, cortinas de lantejoulas gigantes e luzes para se enaltecer, enquanto despejava os temas que todos esperavam ouvir – “Solar Power”, “Magnets”, “Team”, “Ribs” – com o falso entusiasmo da primeira vez. Não nos espantaria que regressasse a Paredes de Coura ou a outro festival português muito em breve, mas esperemos que, se isso acontecer, não a juntem com Wilco. Há casamentos que estão destinados ao desastre.

Um pequeno milagre chamado Vodafone Paredes de Coura

Outros, como o de Rita com Paredes de Coura, são um daqueles casamentos de “viveram felizes para sempre”. Rita veio do Porto para Paredes de Coura há três anos. Abriu uma loja de produtos artesanais, a Terra D’alma Coura, e aqui se mantém por considerar este sítio “místico”: “Tem uma aura diferente”, diz. Não sendo bem religioso ou espiritual, “como Fátima”, explica, é muito especial.

O sítio confunde-se com o festival há 30 anos. Paredes de Coura é nome de vila e de santuário musical para muitos melómanos dedicados e para toda a comunidade residente que, dos 8 aos 80, mostra-se orgulhosa por sentir que aquilo que ali acontece durante quatro dias, independente das bandas e dos cabeça de cartaz, os identifica, representa e valoriza.

Sabendo disso, a Câmara Municipal de Paredes de Coura avançou este ano com uma candidatura a Património Cultural Imaterial da UNESCO. “Apesar de o Festival Paredes de Coura não ser passível de objetificação, nele se congregam múltiplas formas de sociabilidade e de socialidade”, lê-se na exposição “30 anos – do Rock ao Couraíso”, que pode ser vista no largo do edifício da Câmara.

“Hoje Paredes de Coura é um exemplo mundial. Fazer um festival no interior do país, sem hotéis ou empresas de infraestruturas é um milagre”, partilha João Carvalho, diretor do Vodafone Paredes de Coura. “Eu até costumo dizer que este é o meu pequeno milagre”.

Um pequeno milagre que ronda um investimento total de 5 milhões de euros e que este ano recebeu 80 mil pessoas, menos 35 mil do que no ano passado. Contudo, nada disso assusta o diretor do festival português com mais edições. “Nem sempre temos que esgotar” diz, garantindo de que o Vodafone Paredes de Coura está “completamente equilibrado e estabilizado” em termos financeiros e que tem todas as condições para celebrar mais 30 anos, “mantendo a sua essência” de descoberta e de renovação de gerações.

O otimismo de João Carvalho não esmorece de forma alguma, mesmo com um aumento de 30% nos cachets e nos preços das infraestruturas, em relação ao ano passado, à instabilidade económica do país e ao apertar da concorrência. “Há cada vez mais festivais, mas eu lembro-me de que quando o Paredes de Coura começou não havia rigorosamente nenhum festival. Os outros festivais é que têm de se preocupar. Nós temos a nossa história e já estamos aqui há muito tempo”.

Sobre a queda nos números do público, Carvalho atribui parte da responsabilidade à chuva, mesmo sendo este um festival de “courajosos” que aguentam as maiores intempéries; e à ausência de uma banda “candeeiro” para chamar a atenção do “distraído musical”: “Faltou aquela banda que toda a gente conhece, como uns Arcade Fire ou The National”, aquela banda que faz o tal distraído prestar atenção aos restantes nomes do cartaz.

Para o ano, antevê, provavelmente o Vodafone Paredes de Coura terá mais bandas ligadas à história do festival do que teve este ano. “Programar não é uma ciência exata. Estás sujeito às leis do mercado e às tournées”, diz. Mas nada lhe dá mais prazer do que fazer disso vida. “O entusiasmo é o de sempre. Eu faço isto como se estivesse na primeira edição. Fico feliz com uma contratação pequena e como uma grande com o mesmo entusiasmo de há 30 anos.” A próxima edição, que já está a ser preparada “com muito carinho”, está marcada para os dias 14, 15, 16 e 17 de agosto de 2024. Vejamos se por essa altura, Paredes de Coura já terá o seu nome inscrito na UNESCO.

Lee Fields: a banda sonora de um coração apaixonado

Neste pequeno milagre que é Paredes de Coura, há vários micro-milagres que acontecem sem que consigamos encontrar explicação para tal, como as tréguas que a chuva deu ao último dia do festival, depois de horas impiedosas a massacrar os corpos que se arrastaram pelo recinto, enxaguados e extenuados.

À falta de uma evidência científica à qual nos possamos apoiar, agarramo-nos à crença de que foi Lee Fields que travou a raiva das nuvens com o amor universal da sua música. Precisamente quando entrou em palco, às 18h, o céu secou. De repente, os pés já não se enterravam na lama, a roupa deixou de estar empapada, as capas da chuva — muitas delas improvisações deliciosas derivadas de sacos do lixo ou de cortinas de banho com golfinhos — foram arrumadas para canto.

Lee Fields

© Hugo Lima

A soul de Lee Fields iluminou todos nós, ele que aos 72 anos continua a saber seduzir com os seus melhores moves, à Rufus Thomas, e com uma voz que vem das entranhas da música negra norte-americana (não por acaso é apelidado, muitas vezes de Little JB, pelas parecenças com James Brown).

“Ele é maravilhoso”, entusiasmou-se uma senhora ao nosso lado, uma beautiful ladie como as muitas a quem Lee Fields dedicou “Ladies”. Por esta altura já Paredes de Coura tinha calçado os seus melhores botins e vestido as suas mais garridas calças de cetim para dançar como se estivesse num clube de Detroit, dos anos 70. “You can count on me”, o blues “What Did I Do”, a incontornável “Forever”, que passou na última edição do Super Bowl e deixou os apaixonados de Coura ainda mais coladinhos na plateia, foram-se sucedendo como carícias. Se Coura é amor, Lee Fields é a sua banda sonora, o toque de veludo para o coração.

“Nós somos explosivos no céu”

De Sleaford Mods não reza a história e, como tal, saltamos diretamente para Explosions in the Sky, banda que sabe muito bem o quão limitador pode ser o uso das palavras, esses seres complexos dos quais nos tornámos reféns. Usamo-las por serem a ferramenta mais prática para comunicarmos com o outro, mas também por não sabermos melhor forma de expressar as nossas emoções. É aí que elas se tornam entidades.

Mas, sendo as palavras concretas, são também uma prisão. Saber prescindir delas com graciosidade torna-se, muitas vezes, vital para a nossa sobrevivência. É um ato de libertação e, nesse exercício de desapego, torna-se igualmente num ato de ascensão a um outro patamar abstrato e mágico.

Explosions in the Sky

© Hugo Lima

Quando os Explosion in the Sky subiram a palco, Munaf Rayani usou da palavra, antes mesmo de tocar um único acorde na guitarra, para falar das saudades que tinha de aqui estar. Fê-lo para mostrar o quão felizes estavam por tocar novamente em Paredes de Coura. “Nós somos explosivos no céu”, disse em bom português.

Feita a introdução, calou-se e deixou que a música instrumental de The Earth Is Not a Cold Dead Place (2003) dissesse tudo o que lhes vai na alma. E isso é um dom que este coletivo do Texas continua a ter e que em breve terá expressão num novo álbum, End¸ com data de edição para 15 de setembro.

Quantos sonhos cumpridos e outros desfeitos, como castelo de cartas, contêm as canções dos Explosions in the Sky, feitas de dedilhados doces e de reverbs ásperos? Quantos dos que ali os estiveram a ver, de olhos fechados, viram a vida em retrospetiva e imaginaram um futuro inconcreto, perdendo-se em divagações antes de aterrarem novamente na relva do Couraíso? Na hora que durou o concerto, houve múltiplos mundos que se abriram e cruzaram, até a palavra ressurgir e nos puxar para terra. Mais concretamente, para A Terra, esta de Paredes de Coura, que é vila, festival e, acima e tudo, amor.

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