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O abatimento de uma estrada no concelho do interior do país, localizada entre várias pedreiras de mármore, trouxe à primeira linha dois assuntos que têm estado completamente fora da agenda mediática, revelando realidades desconhecidas fora do universo daqueles que têm que decidir, investir, licenciar e fiscalizar. Estradas municipais, pedreiras e uma combinação fatal que provocou um número ainda indeterminado de mortos lançaram o debate sobre onde começam e acabam as responsabilidades das várias entidades e pessoas envolvidas. Perguntas são muitas, respostas ainda só existem algumas. Mas já se sabe que houve avisos para os riscos de segurança na antiga Estrada Nacional 255, que chegaram ao Governo e à autarquia. E que havia pedreiras licenciadas ao abrigo de legislação antiga que não cumpriam as regras em vigor em matéria de distâncias de segurança que impunham um intervalo mínimo de 30 metros.
O Ministério do Ambiente tutelado por Matos Fernandes, que acabou de receber a tutela das minas, anunciou entretanto a abertura de uma inspeção ao licenciamento, fiscalização, exploração e suspensão das pedreiras na zona. O Ministério Público abriu um inquérito.
Quem era responsável pela estrada que abateu?
A antiga Estrada Nacional 255 foi desclassificada da rede nacional quando foi construída uma variante no quadro da construção da A6, a autoestrada faz a ligação a Espanha. Em 2005, um protocolo assinado entre a então Estradas de Portugal e a Câmara de Borba transferiu um troço desta estrada para a esfera do município. Outro troço foi passado para a Câmara de Vila Viçosa em 2007. A partir destas transferências, a estrada passou a ser municipal e a responsabilidade pela sua operação e manutenção ficou a cargo da autarquia de Borba.
O ministro das Infraestruturas, Pedro Marques, foi muito claro sobre onde acaba a responsabilidade do Estado central. “O que o Governo pode fazer é: nas estradas que são da sua responsabilidade fazer o que faz”, ou seja, monitorizar. “No que está sob a responsabilidade da administração central, e deste Ministério, monitorizamos, investimos e, por exemplo, no caso desta circunstância, há muitos anos foi determinada a realização de uma variante que é aquela que está em funcionamento”, disse Pedro Marques.
O ministro acrescenta que quando se fez a transferência da estrada para a responsabilidade municipal se apresentou a variante como “alternativa segura e disponibilizada às populações de imediato”. Esta variante é gerida pelo Estado.
Quantos quilómetros de estradas municipais existem?
Pela informação recolhida pelo Observador não existe um inventário ou cadastro nacional de estradas municipais. Essa foi pelo menos a indicação de Ribau Esteves, vice-presidente da Associação Nacional de Municípios de Portugal. Cada autarquia terá o seu cadastro e planos de manutenção para a rede de vias municipais, mas esses dados não estarão trabalhados de forma integrada e sistematizada, como acontece com a rede nacional operada pela Infraestruturas de Portugal, nova designação da Estradas de Portugal.
O que sabemos sobre o grau de conservação destas estradas?
Em termos de avaliação nacional muito pouco. Isto além de considerações genéricas sobre o mau estado de algumas estradas municipais. Ribau Esteves adianta que muitas vias passadas para as câmaras pela Estradas de Portugal precisavam de obras e que não foram assegurados recursos financeiros para essas intervenções. Já outro vice-presidente da ANMP, Almeida Henriques, diz ao Público que há milhares de quilómetros de estradas que as autarquias não têm dinheiro para manter.
Quantos quilómetros, qual o estado de conservação desses quilómetros e que intervenções prioritárias teriam que ser feitas, são questões para as quais não parece haver resposta. Ao contrário do que sucede na rede nacional gerida pela IP, para a qual existe uma monitorização das condições de segurança e operação, que resulta num relatório anual sobre o estado de conservação das infraestruturas. Ainda que também no caso desta rede haja alertas para a redução do investimento e para a degradação das vias.
Há também um cuidado especial na vigilâncias das obras de arte — túneis, viadutos e pontes — um trabalho que começou a ser desenvolvido depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. Mas estamos sempre a falar da rede de estradas nacionais. Há quem admita que o acidente de Borba possa vir ter um efeito comparável para a rede de estradas municipais.
Quantos quilómetros de estradas foram transferidos para as autarquias?
Segundo os relatórios da Infraestruturas de Portugal, há mais de três mil quilómetros de estradas que foram desclassificadas da rede nacional, mas que não foram ainda transferidas para os municípios, por várias razões. A mais evidente prende-se com restrições financeiras. As próprias autarquias têm recusado receber responsabilidades por novas vias sem que isso seja acompanhado dos recursos financeiros ou intervenções prévias de requalificação.
Ribau Esteves refere que nas negociações para a descentralização de competências, a discussão sobre essas transferências não avançou quando o Governo reconheceu que não existiam disponibilidades financeiras para responder às exigências da câmaras.
Mas antes deste processo, e sobretudo entre 2005 e 2008, foram passados muitos quilómetros para as autarquias, ao abrigo de protocolos assinados com a Estradas de Portugal, hoje Infraestruturas de Portugal. Fonte oficial da empresa adianta ao Observador que essa passagem foi feita no quadro do Plano Rodoviário Nacional (PNR), aprovado em 1998, segundo o qual as estradas não incluídas no PNR integrarão as redes municipais, mediante protocolos a celebrar entre a Junta Autónoma de Estradas (antecessora da Estradas de Portugal) e as câmaras municipais, após intervenções de conservação que as reponham em bom estado de utilização ou, em alternativa, mediante acordo quantitativo com a respetiva autarquia”.
Ribau Esteves sublinha que muitos destes protocolos partiram do pressuposto de que haveria disponibilidade de verbas públicas e de fundos comunitários para obras, mas que a partir da crise financeira e económica deixaram de existir. Lembra que a Comissão Europeia limitou o uso de fundos comunitários para investimentos na rodovia. E destaca ainda o corte de investimentos do Estado desde a crise e que continua com as cativações de despesa que afetam obras nas estradas, na saúde e nas escolas.
Mas nem todas as estradas transferidas foram acompanhadas de dotações financeiras ou planos de intervenção. Ribau Esteves dá o exemplo da Estrada Nacional 109. O troço que foi passado para Ílhavo quando era presidente da câmara teve associado um plano de intervenção, mas outro troço da mesma estrada transferido para Aveiro, não teve o mesmo tratamento.
No caso da Estrada Nacional 255, o protocolo assinado com a Câmara de Borba não previa a realização de obras, segundo informação recolhida pelo Observador, mas o documento não foi disponibilizado pela Infraestruturas de Portugal.
Questionada sobre a extensão de rede rodoviária que foi transferida para as câmaras, a Infraestruturas de Portugal refere apenas que, desde 2009, foram objeto de mutação dominial (mudança de domínio) para as autarquias 543,3 quilómetros de vias desclassificadas, envolvendo 89 municípios.
Dados da empresa revelam que a IP chegou a ter uma despesa de mais de 10 milhões de euros anuais no quadro dos protocolos com as autarquias para a manutenção de vias rodoviárias, mas esses valores caíram drasticamente nos últimos anos e têm estado abaixo de um milhão de euros.
Mas é só um problema de falta de dinheiro?
O vice-presidente da ANMP recorda que a entidade propôs ao Governo a criação de um fundo municipal de apoio à requalificação de estradas municipais que as câmaras não têm recursos para reabilitar, mas a proposta feita há dois anos, não teve acolhimento por razões financeiras. No entanto, várias fontes contactadas destacam que há outros problemas e apontam para insuficiência ou mesmo ausência de quadros técnicos ao nível das autarquias, sobretudo nas mais pequenas, que assegurem uma capacidade local para fazer a monitorização e identificação de necessidades de intervenção. A falta de engenheiros, uma consequência da crise, e em especial de quadros de geotecnia com formação e experiência, foi assinalada por vários especialistas.
Existe ainda outra consideração. Mesmo sem dinheiro para fazer as obras necessárias, as autarquias podem sempre decidir impor restrições à circulação numa determinada via, e, no limite, fechar a estrada ao trânsito por razões de segurança. Isto desde que os riscos estejam devidamente sinalizados e identificados. E é neste ponto que começa a discussão mais complicada no caso do aluimento de Borba.
Como foi possível uma estrada cercada por pedreiras e poços com dezenas de metros de profundidade?
As imagens aéreas exibidas na sequência do acidente de segunda-feira mostram uma realidade que parece falar por si. Uma estrada rodeada dos dois lados por precipícios, depressões no terreno de várias dezenas de metros que resultaram de anos de escavação para extrair o mármore, que tem sido uma importante fonte de riqueza para os concelhos do Alto Alentejo. Também é possível perceber que para quem circulava na antiga Estrada Nacional 255 a proximidade desses precipícios não era visível porque existiam barreiras, algumas de vegetação, que limitavam a perceção do risco. As imagens parecem reforçar a tese dos que defendem que esta era uma tragédia anunciada, o que tem sido desmentido pelos responsáveis pelas pedreiras e pelo presidente da Câmara de Borba.
Mas se em matéria de estradas, as responsabilidades estão mais ou menos limitadas à Infraestruturas de Portugal, na rede nacional, e às autarquias, nas estradas municipais, quando chegamos às pedreiras, a questão complica-se. Há mais responsáveis e os protagonistas têm mudado de tutela ao longo dos últimos anos, por via das mexidas na estrutura orgânica do Estado. Uma coisa é certa: a estrada já lá estava quando muitas destas pedreiras começaram a laborar e há explorações licenciadas há muitos anos que não cumprem as distâncias mínimas de segurança.
Quem licencia as pedreiras?
Atualmente, a competência pelo licenciamento e fiscalização pertence à Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), uma entidade que até à última remodelação estava na tutela do Ministério da Economia e que passou, a partir de outubro, para o Ministério do Ambiente, tendo ficado debaixo da tutela do secretário de Estado da Energia, João Galamba, que já no final da semana passada substituiu o diretor-geral da DGEG. Mas esta é apenas a última das mexidas. Até 2015, a entidade licenciadora era a Direção-Regional de Economia. Foi aliás o responsável por esta entidade que participou em reuniões com a Câmara de Borba e os industriais de mármore em que foram feito alertas para os riscos da estrada e onde foi discutida até a possibilidade de fecho da via, segundo notícia de novembro de 2014 da Rádio Campanário.
Mas João Filipe de Jesus saiu do cargo poucos meses depois das declarações não gravadas em que reconhecia a existência de uma questão de segurança que poderia colocar em perigo as pessoas e revelava a existência de um estudo, ainda por concluir, do Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia que o confirmava. Em 2015, as direções regionais de economia são extintas e estas responsabilidades passam para o núcleo da DGEG que opera em Évora e onde tem estado o mesmo responsável. É uma espécie de regresso ao passado, porque num período anterior estas funções já tinham estado na esfera da antecessora da DGEG, a Direção Geral de Geologia e Minas.
O que precisa uma pedreira para laborar?
Uma pedreira tem de ser licenciada para a atividade, mas também tem de apresentar um plano de lavra (de exploração) que é revisto a cada três anos e aprovado pela entidade licenciadora. Um aumento de capacidade também requer autorização e a partir de uma certa dimensão, o projeto tem de ter estudo de impacte ambiental com uma declaração favorável que passa pela Agência Portuguesa do Ambiente.
Qual era a situação das duas pedreiras situadas em redor da estrada que ruiu?
Em resposta a esta pergunta, fonte oficial do Ministério do Ambiente, que herdou esta competência, identifica as pedreiras Olival Grande Sebastião e Carrascal JS, licenciadas em 1989, ao abrigo de uma legislação que já não está em vigor. Uma destas pedreiras está ativa a outra tem a lavra suspensa, o que no quadro da lei implica o cumprimento do Plano Ambiental e de Recuperação Paisagística.
Essas pedreiras estão a cumprir as normas?
Na mesma resposta, o Ministério do Ambiente reconhece que as explorações já existiam quando entrou em vigor legislação que impunha uma distância de 30 metros da zona de defesa.
Confrontada com a existência de “facto” dessas pedreiras, a entidade licenciadora considerou à data “que o licenciamento propiciaria a imposição de regras e condições mais adequadas à sua regularização em sede de trabalhos de exploração e também de segurança. Ou seja, as pedreiras já existiam nas condições encontradas, não sendo tecnicamente possível afastá-las para os 30m da zona de defesa. Todavia, perante a situação de facto, considerou-se que o respetivo licenciamento permitiria impor a adoção de medidas ao nível da segurança da exploração“.
O Ministério do Ambiente sublinha ainda que, com exceção das pedreiras mais antigas e já existentes, “todos os licenciamentos de pedreiras respeitam as zonas de defesa previstas na lei (a partir de 1990, a zona de defesa para as estradas nacionais ou municipais passou a ser de 50m)”.
E acrescenta que a “Divisão de Pedreiras do Sul (DPS) da DGEG tem efetuado um acompanhamento de proximidade ao nível técnico junto das empresas, quer ao nível da fiscalização no local, quer ao nível de reuniões e contactos designadamente com os responsáveis técnicos das pedreiras. Quando existem acidentes em pedreiras a DGEG acompanha a ACT na visita ao local” o que aconteceu neste caso como adiantou fonte oficial da Autoridade para as Condições de Trabalho.
Assinala também que foram impostas condições por parte da entidade que também é responsável pela fiscalização que incluem a apresentação de estudos técnicos (Instituto Superior Técnico e Universidade de Évora), designadamente no que respeita à estabilidade dos taludes, bem como a adoção de “pregagens” para evitar deslizamentos.
Quem mais é responsável?
Antes de mais a própria empresa exploradora, que tem de ter um diretor técnico com formação e experiência que assina o plano de lavra e a quem compete fiscalizar as condições de segurança da pedreira. Isto quer esteja em exploração ou com atividade suspensa, como era o caso da pedreira onde houve a derrocada. De acordo com o proprietário de uma das explorações, Jorge Plácido Simões, os requisitos de segurança foram cumpridos. A empresa solicitou os estudos técnicos que avaliaram a estabilidade do talude desde pelo menos 2001 e fez as intervenções propostas pelos técnicos e que passaram pela grampagem (prender a estrutura com ganchos metálicos).
O último terá sido em 2015, adiantou este responsável ao Observador. E foi na sequência das fraturas detetadas na parede do poço em alguns destes estudos que foi suscitada a questão dos riscos para a estrada, que levou alguns industriais do setor a propor ao presidente da Câmara de Borba o encerramento da via numa reunião em junho de 2014. Estas iniciativas foram aliás noticiadas pela Rádio Campanário, em novembro de 2014, que cita o autarca de Borba, António Anselmo: “A câmara não tem que fazer obras na estrada, se existir algum relatório que prove que a estrada é insegura, a única coisa que se pode fazer é limitar o trânsito, é um processo que estamos a avaliar com muita atenção e muita calma”. A responsabilidade da autarquia neste caso não se limita às competências em relação à estrada municipal, porque a câmara é também a autoridade em matéria de proteção civil.
Informações divulgadas esta terça-feira indicam que foram apresentadas alternativas à antiga estrada 255, mas que não terá havido consenso entre os empresários do setor de mármore sobre a solução a adotar. Os riscos sinalizados resultavam dos estudos técnicos às condições de segurança das pedreira. Não há, para já, informação de que a Câmara tenha pedido uma avaliação autónoma e específica à situação da própria estrada.
“Nunca na vida”, respondeu o autarca de Borba, António Anselmo, quando questionado pela agência Lusa sobre se, na reunião com técnicos dos serviços regionais de Geologia, não tinha já sido alertado para a perigosidade da estrada onde, na segunda-feira, ocorreu um deslizamento de terras para uma pedreira, que provocou, pelo menos, duas vítimas mortais.
Sabemos também que a pedreira do lado em que ruiu a estrada estava inativa, apesar de ter um plano de lavra aprovado, há cerca um ano por razões económicas. Há ainda a indicação da existência de várias explorações abandonadas e empresas promotoras insolventes ou em liquidação. Nestes casos, a manutenção das condições de segurança passa para uma outra entidade no Estado. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Alentejo é quem tem a responsabilidade por essas funções e ainda pela resolução do passivo ambiental deixado por essas explorações. Para isso, as entidades têm de entregar uma caução no momento de licenciamento cujo valor depende da dimensão da exploração.
E o que provocou o aluimento?
Ainda não há resposta conclusiva, apenas hipóteses levantadas por vários especialistas ouvidos ao longo destes dias. A passagem de um veículo pesado na estrada no momento da derrocada, a retroescavadora que caiu ao poço, pode ter sido a gota de água que fez transbordar o copo, mas a chuva que caiu nos últimos dias também terá desempenhado um papel importante. A precipitação pode levar à transformação do carbonato de cálcio presente no mármore em argila — a terra vermelha que surge nas imagens — uma matéria plástica que atua como lubrificante e que cria condições favoráveis à erosão e aluimentos, sobretudo na camada entre a parede mármore e a estrada. Mas este é também um processo que demora o seu tempo.
Independentemente das causas imediatas desta tragédia, os grandes acidentes acontecem quase sempre na sequência de uma combinação imprevista de fatores que, isoladamente, não teriam capacidade para provocar o problema. A pergunta essencial que não tem para já resposta é se neste caso os fatores de risco e a sua conjugação podiam ter sido previstos e o seu efeito evitado com ações concretas.