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A genial Elena e a história dos autores anónimos

Anónimos, pseudónimos e heterónimos escreveram e ficaram na história. Não é de agora mas a polémica em volta de Elena Ferrante recupera o tema: o que faz uma assinatura por uma obra?

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As razões para um escritor optar pelo anonimato ou pela transfiguração podem ser muitas, umas mais válidas do que outras, umas até mais livres do que outras (veja-se o caso de Joseph Anton/Salman Rushdie). Como em tantos casos modernos, surge até o problema de cada acto poder significar o que significa e o seu contrário. Elena Ferrante, por exemplo: aquilo que podia ser interpretado como um resquício medieval de interesse pela obra e não pela pessoa, tornou-se o filão mais apetecido pelos caça-identidades modernos. Aqui, como bom sintoma do século, a ortodoxia, o velho, volta a ser a posição estranha.

Ferrante conseguiu uma posição mediática ao pedir para não a ter e, ao mesmo tempo, uma certa relação, nunca clara, entre nome e obra. A estrutura dos romances, muito pessoal e pormenorizada, a protagonista com o nome da autora mas apelido diferente ou a coincidência de profissões deixam sempre a pairar a pergunta pela identidade: será esta Elena Ferrante, escritora de um livro sobre duas amigas, de facto a Lenú napolitana, escritora de livros sobre o seu bairro napolitano? O pseudónimo, neste caso, também não é inocente, é sugestivo. Ferrante nunca revela a identidade mas sugere-a sempre, induz em erro. O velho problema da identidade, ganha aqui um novo desenvolvimento. Não como em Pessoa ou Kierkegaard, mas como um daqueles génios do mal que vão enganando os detectives com pistas, além de nomes, falsos. O caso de Ferrante é talvez o último de uma série já com longas barbas. Com falsas barbas, não fossem elas o mais clássico disfarce.

Imagine-se o leitor num bairro escuro, rodeado por criaturas anónimas, escondidas na noite caliginosa. Imagine-o sem varar de medo, sem fazer contas ao dinheiro que tem no bolso e sem se agarrar às do terço, sem esperar um ataque de um bando sinistro acobertado pelas esquinas. Empresa difícil: os escaninhos têm má-fama, os escondidos pior e o desconhecido amedronta. Nos escritos, porém, talvez por se assumir que quem mostra a alma nem sempre tem de mostrar o nome, talvez por se considerar perdoável ocultar uma assinatura para escapar a uma prisão ou a um degredo, o caso não é tão simples. O anonimato pode ser considerado cobardia, torpeza, manha, mas também humildade, desprendimento ou sinal de uma personalidade complexa. Se, do anonimato passamos para as identidades falsas, então a gama de hipóteses ainda cresce mais. Jogo com o leitor, engano, encenação ou soberba?

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O terreno é verdadeiramente nebuloso. Talvez por isso, um dos casos mais paradigmáticos de anonimato diga respeito a uma nuvem: a famosa nuvem do não-saber, um dos mais importantes tratados místico-doutrinários da literatura medieval inglesa, e também um dos – passe a contradição – mais conhecidos casos da literatura anónima.

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As obras espirituais e as outras

A Idade Média, verdade seja dita, é um verdadeiro tesouro de Salomão (embora também esteja por encontrar o autor da dita Chave de Salomão, um anónimo do século XV) para os exegetas. Em parte por distância, claro, já que o tempo apaga muitos dos nomes ilustres, mesmo quando não apaga as obras, mas também por filosofia. É certo que, da mesma maneira que sabemos ter existido teatro Antigo (de Séneca, por exemplo) que se perdeu, obras desaparecidas dos maiores mestres espirituais, que nos leva a ter nomes sem obras, também temos muitas obras a que perdemos o sinete de autoria. A algumas, os estudiosos vão reencontrando a paternidade ou aventando hipóteses mais e menos prováveis. A imitação de Cristo, durante tantos anos publicada como anónima, é raro que hoje em dia saia do prelo sem o nome de Tomás de Kempis na lombada. Outras, porém, nunca conseguiram sair do orfanato e, verdade seja dita, os verdadeiros pais não fizeram grande esforço para serem encontrados.

O culto prestado aos escritores românticos como Vitor Hugo ou, por cá, mais modesto, a Garrett, tidos por génios colossais, heróis pátrios e humanos de excelência, mostra, de facto, o começo de uma nova era, em que o autor (por ter escrito o texto, é claro) é talvez mais valorizado do que a própria obra.

A questão da autoria, na Idade Média, é vista por um prisma completamente diferente. Se, dos romances de Cavalaria, das canções de gesta ou dos cantares de amigo vemos que, desde cedo há uma tentativa de descobrir autorias, como no caso da discussão peninsular sobre o romance de Amadis; se, mesmo nos casos mais complicados, como a Chanson de Roland, o Cantar de mio Cid, o Beowulf ou, mais a oriente, as mil e uma noites, se admite uma espécie de aperfeiçoamento geracional – o chamado mester de juglaria – que impossibilita a assunção de uma paternidade óbvia; se em todos estes casos as questões autorais são discutidas como se a falta de autor se tratasse de um engano, nas obras espirituais, que constituem as jóias da coroa do pensamento medieval, o anonimato é tido como parte da própria filosofia.

Os autores, no mais das vezes, estão interessados na verdade dos seus livros, em ajustar o seu pensamento à doutrina Divina. Não há, ou não pretendem que haja, originalidade no seu pensamento: aquilo que querem dizer é aquilo que Deus diz. A ambição, neste caso, estaria quase no apagamento do sujeito: quem fala é Deus, por meio de quem, não interessa. Para a mão que Deus toma, o anonimato até pode ser forma de ascese: quem sabe que a responsabilidade da obra está em Deus, não tem de se orgulhar; ver o seu trabalho reconhecido é bom, ver o autor reconhecido é vão. Menos vaidade e mais verdade, poderia pensar o cartuxo que se calcula ter escrito a nuvem do não-saber.

Daí que, tantas vezes, nas obras medievais, encontremos textos alterados e edições pouco cuidadas. A ideia de respeito pelo património de um autor, hoje tida como sagrada, é, para os padrões monásticos, terrena. Nem os tradutores se coíbem de acrescentar ou rasurar aquilo que consideram importante para a doutrina, nem os copistas fazem caso de entaramelar os seus dizeres nas obras de génio. Daí que, das várias edições da Consolação da Filosofia, de Boécio, por exemplo, tenhamos quase uma versão por cada cópia. O anonimato foi, durante muito tempo, mais respeitado do que a autoria.

As preocupações com a autoria começaram, assim, quando se começou a sacralizar o escrito em vez do seu conteúdo. A lista de pequenos sopros que vão virando a página nesta história dos livros e seus autores seria interminável: poderíamos considerar a escolástica, com a sua preocupação pela definição e partição de conceitos, um primeiro espirro, as academias de estilo, primeiro em Itália, depois em França, um sopro infantil, até que o Romantismo crescesse como um verdadeiro furacão contra o anonimato. O culto da subjectividade, que encontramos em qualquer compêndio de lugares-comuns sobre o Romantismo, a valorização da arte pela arte, o aparecimento das recolhas etnográficas dos irmãos Grimm, interessados, não na verdade, mas no registo do património existente, sem mácula, tudo isto terá contribuído para a valorização da identidade do autor. Apesar de já haver uns protestos de Verney contra os tradutores sem escrúpulos, que plagiavam histórias e tratados sem remeterem para o original, é só com Herculano que aparece a primeira tentativa séria de proteger os direitos de um autor, de definir a propriedade intelectual e, com isso, valorizar o autor.

O culto prestado aos escritores românticos como Vitor Hugo ou, por cá, mais modesto, a Garrett, tidos por génios colossais, heróis pátrios e humanos de excelência, mostra, de facto, o começo de uma nova era, em que o autor (por ter escrito o texto, é claro) é talvez mais valorizado do que a própria obra. Ora, com as estátuas erguidas aos dilectos das musas, com cartas de nobreza dadas aos que mais abrilhantassem as suas próprias cartas e discursos, quem haveria de querer furtar-se à glória e permanecer anónimo?

Um livro anónimo é sempre de um novo anónimo; um livro de Manuel Tiago, por muito que não se saiba que este nome esconde Álvaro Cunhal, é sempre do mesmo anónimo. O autor priva-se do estrelato marginal, mas não se furta de reclamar o crédito pela sua obra.

É nesta altura, então, que o anonimato ganha a sua aura maldita de vileza, cobardia ou indecência. De facto, tirando casos anteriores e insulados como o do Lazarillo de Tormes, o anonimato fica reservado às páginas saturninas dos devassos, aos livros difamatórios e a todos os autores que, podendo os seus livros provocar consequências nefastas, se procuram escusar a elas. O anonimato aparece assim como sinónimo da falta de escrúpulo e falta de coragem ou, nos casos já mais que queimados e esturricados por censuras e afins, falta de alternativa. Mesmo neste caso, porém, mais vulgar do que o anonimato, foi o uso do pseudónimo.

É o meu nome… mas não é bem

O pseudónimo, à partida, parece não diferir muito do anonimato. Afinal, esconde a identidade do autor, seja com uma página em branco, seja com uma máscara Humana; mas apesar da semelhança, tem contornos mais complexos. Para já, permite construir um corpus, uma obra, por mais que anónima, coesa. Um livro anónimo é sempre de um novo anónimo; um livro de Manuel Tiago, por muito que não se saiba que este nome esconde Álvaro Cunhal, é sempre do mesmo anónimo. O autor priva-se do estrelato marginal, mas não se furta de reclamar o crédito pela sua obra; a glória pode não estar associada ao seu nome, mas está associada a um seu nome.

O pseudónimo aparece, assim, também como uma forma de coesão. Coesão essa que, aliás, sempre foi procurada, mesmo que não pelos próprios autores. Quem navegar um pouco pelas patrologias grega ou latina não deixará de reparar na quantidade de pseudo-dionísios, de falsos Aristóteles, de obras atribuídas a S. Tomás ou de prováveis Damascenos. Avançando um pouco no tempo, tocamos o harmónio do corpus de Camões, dilatado ou retraído constantemente, por força das afinidades de estilo ou primazia do rigor científico que cada estudioso prefere. De Bocage também temos uma parafernália de poesias eróticas e satíricas que, encontradas por Inocêncio num caderno que juntava vários autores sem distinção, lhe são atribuídas.

O estilo, de facto, é uma forma possível (talvez a única, à falta de assinatura) e legítima de reconhecer autorias. Porém, a definição do que é um estilo próprio é obviamente difícil: a certa altura da nossa historiografia literária, todos os sonetos eram atribuídos a Camões ou Sá de Miranda e toda a poesia devassa a Bocage; esta organização, embora confusa, também podia fazer parte de uma estratégia de engrandecimento dos documentos anónimos. Da mesma maneira que se lê com mais atenção um tratado filosófico de Aristóteles do que os dislates etéreos de um maduro que experimentou a filosofia, também se lê com mais contentamento a poesia de Bocage do que as alarvidades de um popular desconhecido.

A escolha de um nome pode, assim, influenciar o prestígio de uma obra. Nem é preciso, aliás, encostar a obra ao espólio de um autor conhecido; na Nova Arcádia, apostada em renovar os votos clássicos da literatura, assentam muito melhor os nomes de Elmano Sadino, Cândido Lusitano ou Alcipe do que Manuel Bocage, Francisco José Freire ou Leonor, Marquesa de Alorna. O nome é já uma forma de entrar no espírito da poesia, e que poderia ser tirado (já que pelo menos a Marquesa de Alorna o leu) do caso mais singular de uso de um pseudónimo que a literatura já viu.

O anonimato pode ser considerado cobardia, torpeza, manha, mas também humildade, desprendimento ou sinal de uma personalidade complexa. Se, do anonimato passamos para as identidades falsas, então a gama de hipóteses ainda cresce mais. 

Em pleno século XVIII, em época de primícias românticas, descobre-se na Escócia um ciclo antiquíssimo de poemas épicos, do “Homero gaélico”, o bardo Ossian. Ossian seria o expoente de uma cultura pré-inglesa, o símbolo da ancestralidade escocesa, caso não fosse… uma farsa. Descobriu-se depois que os poemas eram escritos, não por Ossian, um vetusto e inexistente bardo antecristão, mas por James Macpherson, o poeta escocês que editava os versos sob a capa respeitável de um sedimentado e esquecido poeta nacional. O caso Ossian é provavelmente a maior fraude literária que a Europa viu, mas também o exemplo maior do potencial de um pseudónimo. Macpherson ajustou a sua poética à personagem que criou e usou-a como literatura real para legitimar a sua obra.

Há vários casos, depois ou antes, de farsas literárias e de criações imaginárias instrumentalizadas como reais. Dos escritos plúmbeos de Granada, ao protocolo dos Sábios de Sião, ou às próprias cortes de Lamego, vários são os exemplos. Macpherson, porém, abriu a porta para um novo uso do pseudónimo muito conhecido pelos portugueses. É que Macpherson não se limitou a inventar um nome, inventou uma personalidade. Ora, entre inventar uma personalidade ou inventar muitas, a diferença está em chamar-lhes apenas Ossian ou chamar Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou Barão de Teive.

Eu, tu e todos os que conhecemos

Fernando Pessoa, de facto, é um dos casos mais curiosos de múltiplas identidades literárias. As diversas personalidades, numa interpretação enviesada e que qualquer português sabe completar, correspondem ainda, por um lado, à tentativa primitiva do pseudónimo de homogeneizar a obra mas, por outro, ao reconhecimento de que ela responde a várias formas. O estilo define a obra, sim, mas o Homem tem vários estilos e, por isso, personalidades múltiplas a que correspondem várias poéticas. Fernando Pessoa não tem o lado enganoso de Ossian-Macpherson, mas tem a complexificação do nome como mais do que uma assinatura.

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Fernando Pessoa

Kierkegaard, porém, apesar de, à primeira vista, tornar as suas personalidades mais óbvias, como se não fossem pessoas mas apenas pontos de vista – afinal, conseguimos perceber que Johannes Climacus e Anti-climacus são as faces contrárias de uma moeda – acaba por entrar no jogo das identidades trocadas. É raro o livro em que não haja uma ficção à volta do editor e do autor, em que o editor escreva a explicar que achou os papéis perdidos, por exemplo, e há mesmo casos em que chega a escrever para jornais com nomes diferentes a criticar e a refutar a própria crítica ao seu livro. Kierkegaard não tem uma carta dos heterónimos, como Fernando Pessoa, mas tem um livro em que explica a sua obra como escritor e trata do assunto das várias autorias. Kierkegaard parece mais controlado do que Pessoa: as suas diferentes personalidades funcionam como uma topografia das disposições existenciais e não como uma espécie de contra-génio a funcionar dentro dele.

Os casos de Kierkegaard e de Fernando Pessoa elevam os pseudónimos e anonimatos a um patamar literário a que habitualmente só os seus escritos têm acesso e tomam-nos como peça essencial da obra. Outros autores, porém, como Agatha Christie ou J. K. Rowling recorreram ao novo nome depois do êxito, quase como forma de confirmar o seu êxito: isto é, de saber se, de facto, a popularidade dos novos livros se devia apenas à fama já conquistada ou à qualidade intrínseca da obra. O pseudónimo pode ser, assim, uma forma de retirar o livro do espaço mediático, mas também uma forma de entrar nele. A certa altura, um grupo de escritores portugueses resolveu internacionalizar os seus nomes, convictos de que, com uns fumos anglófilos, os seus policiais seriam mais acreditados pelo público. Foi assim que Roussado Pinto se tornou Ross Pynn e Dinis Machado se tornou Dennis McShade.

A esquipática opção destes escritores mostra, porém, a forma como o nome pode influenciar a relação dos leitores com os livros. Não falamos apenas das mulheres que, em séculos de antanho, publicavam com nome de homem, ou dos júris de concursos que vasculham nomes estrambólicos à cata de maior “diversidade” ou “justa representação”. O nome, não tivesse Joaquim Coelho escolhido ser tratado por Júlio Dinis ou Adolfo Rocha dar-se a conhecer por Miguel Torga, influenciam a leitura. Se um nome rafado não atrai o leitor, muito menos um escritor, de ouvido mimado pelos mais doces sons da língua. Se um livro já empolga o leitor, quão mais o entusiasmará o mistério em roda do escritor, ou a súbita guinada que transforma George Eliot, autor famoso, na singela Mary Ann Evans? Até pode, como na pergunta de Shakespeare, não haver nada num nome, nem sequer numa personagem; mas também não está mal começar a literatura logo pela própria identidade.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.

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