O primeiro-ministro saiu apressado para apanhar o avião para a Nova Zelândia e o Presidente podia ter continuado a reunião (o que fez quando saiu, duas horas antes, Miguel Albuquerque), mas queria que António Costa ouvisse tudo e aproveitou a ocasião para marcar um segundo round do Conselho de Estado: “Sendo assim, continuamos este debate em setembro“. A frase antecipava que nesta guerra de 100 dias (na verdade ainda só passaram 90 desde a não-demissão de João Galamba) vai haver um cessar-fogo em agosto, mas que em setembro é retomada a pressão presidencial. Com um objetivo: a remodelação.

Até lá, como contou um conselheiro ao Observador, a ideia em Belém é a de que até à rentrée política não vão existir “novas diligências” do Presidente sobre a “situação política”. Leia-se: a avaliação de fim de ano ao trabalho do Governo.

O calendário faz com que haja um cessar-fogo decretado a partir de Belém (porque, por vontade de São Bento, o conflito já estaria sanado). O primeiro motivo para o Presidente deixar de fora a pressão ao Governo é o facto de o Parlamento e o país político estar em período férias. O segundo é a Jornada Mundial da Juventude, em que o Presidente, fervoroso católico, fará questão de estar presente em vários eventos, incluindo uma receção ao Papa Francisco em Belém. Marcelo chegou a confessar, nas audiências de julho com os partidos, que temia que Costa estivesse excessivamente “colado” ao líder da Igreja Católica — mas não quer alimentar qualquer tipo de conflito institucional até o evento acabar.

Até ao fim do mês, o Presidente da República deve gozar um pequeno período de férias e depois deverá visitar, segundo noticiou o semanário Expresso, a Ucrânia e fazer ainda algumas outras deslocações oficiais ao estrangeiro (entre o final de agosto e o início de setembro).

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Só depois de acabar este período de visitas externas é que se reabre a janela para que o Presidente da República volte a pressionar o Executivo de António Costa em dois sentidos: numa remodelação governamental e para um Orçamento do Estado em que permita aos portugueses sentir as melhorias da economia no bolso. Será entre o regresso da Ucrânia e outros compromissos internacionais no início de setembro e a apresentação do Orçamento do Estado que Marcelo Rebelo de Sousa deverá marcar uma nova reunião do Conselho de Estado.

Notas azedas de maio, junho e julho significam agosto mais doce?

No conflito particular com Costa, Marcelo dividiu a resposta à não demissão de João Galamba em quatro frentes: a comunicação ao País a 4 de maio, as audiências com os partidos em Belém, o Conselho de Estado sobre a atual situação política (interrompido a meio) e vetos e promulgações críticas. É também através das notas da Presidência que o Presidente da República tem feito parte dessa nova forma de escrutínio ao Governo.

Um dia antes do arranque oficial da Jornada, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou precisamente para fazer uma promulgação com críticas. O Presidente da República promulgou o diploma do Governo que estabelece os regimes especiais de acesso e ingresso no ensino superior, mas ressalvou que o fazia “atendendo à urgência de resolver o problema”, criticando o facto de a solução lhe ser apresentada “em cima da hora” e “para efeitos imediatos”.

Já esta terça-feira, um dia antes da chegada do Papa Francisco, Marcelo Rebelo de Sousa promulgou a Lei da Amnistia, mas também advertiu a “contradição entre o limite etário para a sua aplicação a crimes, mas sem limite de idade para a sua aplicação a contraordenações”. O Presidente lamentou ainda que a “amnistia não tenha efeitos imediatos”. Estes reparos não podem, no entanto, ser direcionados ao Governo já que — como lembra Marcelo — houve uma “maioria parlamentar que aprovou este diploma”. Quase todas as propostas do PSD foram, aliás, aprovadas.

Marcelo promulga diploma de acesso ao ensino superior, mas porque é “urgente” e critica ter sido feito “em cima da hora”

Seis dias antes, a 25 de julho, o Presidente utilizou mesmo (pela 25ª vez desde que está em Belém) o veto político. Marcelo Rebelo de Sousa travou o diploma sobre a progressão da carreira dos professores e ainda deixou um conselho, com malícia quanto baste, a António Costa para não fazer “cálculos políticos”.

Marcelo veta progressão de carreiras de professores e diz a Costa para não fazer “cálculos políticos”

A 17 de julho houve outro “promulgo, mas…“. O diploma em causa era sobre o novo regime de avaliação de aprendizagens dos alunos e o Presidente começou a nota presidencial a “lamentar” a “opção política do Governo de reduzir de reduzir o número de exames nacionais obrigatórios para a conclusão do ensino secundário”.

Apesar de promulgar, Marcelo destacava que as alterações do Governo passavam a permitir agora a conclusão do ensino secundário nos cursos de ciências e tecnologia e ciências socioeconómicas sem a realização do exame nacional de matemática. O problema, avisava o chefe de Estado, é que opção carecia de estudos: “[É uma] alteração que não decorre da realização de estudo independente conhecido, nem de mais aprofundada discussão pública, nem sequer da consulta das associações nacionais de matemática”.

Muito crítico do diploma, o Presidente defendeu ainda que esta mudança “poderá contribuir para o enfraquecimento do sistema nacional de avaliação da qualidade das aprendizagens”. Marcelo dizia mesmo que só optou pela promulgação perante a garantia de que o exame “continuará a ser obrigatório para quem queira aceder ao ensino superior em áreas em que seja imprescindível”.

E não se ficou por aqui o julho espinhoso. Sete dias antes, quando promulgou a Lei da Saúde Mental, vieram novas críticas à forma como o Governo desenhou a lei, com o Presidente a alertar para a “falta de densificação de conceitos e figuras jurídicas”.

Não especificamente sobre um diploma, mas sobre a inauguração do monumento de homenagem às vítimas dos incêndios de 2017, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a utilizar uma nota a 20 de junho para dizer que teve conhecimento pela comunicação social da cerimónia. Na altura, o Presidente da República terá ficado incomodado quando o primeiro-ministro confirmou a presença na inauguração, tendo ambos combinado previamente que não iriam a Pedrógão naquela ocasião. O assunto só ficou sanado quando o evento foi adiado umas horas para que o Presidente pudesse chegar da cimeira da COTEC, em Itália.

O silêncio, o passou-bem a Galamba e o anúncio que vincula Costa no day after das europeias

Quatro dias antes, a 16 de junho, Marcelo promulgou uma alteração da orgânica do Instituto do Turismo de Portugal, mas sublinhou os “custos de cíclicas mudanças” num “domínio tão sensível para a coerência da desejável coordenação estratégica e imagem externa de Portugal”. No final de maio, quando promulgou os diplomas do Governo que substituem o SEF, o Presidente da República alertou para as “dificuldades que a Agência irá ter para gerir — nesta fase inicial — os processos de autorização de residência atualmente pendentes”. Além disso criticou os “graves prejuízos para a imagem externa do País e para o acolhimento dos que o procuram” ao longo do processo.

A 22 de maio, quando promulgou um dos diplomas sobre habitação, Marcelo advertiu que o mesmo “deveria ter sido submetido à Assembleia da República, por razões políticas, já que não é meramente orgânico ou processual” e “cria um novo regime de arrendamento para subarrendamento e se conjuga, numa parte, com Proposta de Lei acabada de ser aprovada pelo Parlamento”. O chefe de Estado criticava ainda o facto do diploma não aproveitar “nem para ir mais fundo na recuperação de instituições essenciais para a sua aplicação”. E ainda a opção de “não esperar por dois estudos mandados fazer pelo Governo, já iniciados, e que poderiam aproveitar ao seu conteúdo. Para Marcelo, “em rigor”, o diploma “não tendo sido apresentado na AR, deveria, pelo menos, esperar pelo termo do processo legislativa ainda em curso”.

Na promulgação do novo estatuto das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), a 19 de maio, o Presidente disse que não podia “deixar de apontar falta de clareza no plano estratégico — metas e calendário — na transferência de atribuições do Estado para as CCDR”. Marcelo criticava ainda a “díficil compatibilização entre algumas medidas do novo regime legal e o processo de descentralização em curso para as autarquias locais”. O chefe de Estado criticava ainda o “precedente aberto” com os salários dos dirigentes das CCDR “atingindo, num caso, o do primeiro-ministro e ultrapassando os dos ministros que tutelam as várias áreas”.

A 8 de maio, apenas quatro dias depois da comunicação ao País, Marcelo Rebelo de Sousa também promulgou com críticas o diploma — apesar de não concordar com os termos — porque isso permitiria a 8 mil professores concorrerem ao invés de apenas 2400 (em caso de veto).

A janela curta para a pressão presidencial

A oposição a partir de Belém deverá assim ficar circunscrita às notas com avisos ao Governo publicadas no site Presidência — que têm sido mais comuns. Mas atos concretos para cumprir a missão de supremo escrutinador do Governo a que se propôs a 4 de maio ( “Terei de estar ainda mais atento à questão da responsabilidade política e administrativa dos que mandam.”;”Terei de estar ainda mais atento e mais interveniente no dia a dia, para evitar o recurso de poderes de exercício excecional, que a Constituição me confere e dos quais não posso abdicar”) só mesmo depois da visita à Ucrânia.

Marcelo não esclareceu textualmente se a “continuidade do debate” era uma nova reunião do Conselho de Estado, mas foi isso que subentenderam vários dos conselheiros presentes. Para Belém, o espaço para a crítica é assim curto: entre o regresso da Ucrânia (final de agosto ou início de setembro) e a entrega do Orçamento do Estado, a 10 de outubro. Depois do OE, o Presidente já considera que se trata de um período pré-eleitoral para as eleições europeias em que qualquer intervenção pode ser vista como interferência na campanha. Algo que Marcelo quer evitar.

A continuidade do debate (pressão ao Governo) anunciada pelo Presidente está a assim marcada para setembro. Para já, Marcelo tem repetido que nada mudou do que pensava a 4 de maio. Ou seja: não quer dissolver a Assembleia da República, mas defende uma remodelação que refresque o Executivo.