Há cem anos, em Lisboa, esta música era nova e dava os primeiros passos em Portugal. E no mesmo ano, na mesma cidade, nascia um dos seus principais divulgadores. Atravessando mudanças culturais, transformações políticas e sociais, o jazz cumpre um século de vida em Portugal, no mesmo ano em que se assinala o centenário de Luís Villas-Boas.
Se é verdade que há motivos de instabilidade e incerteza no jazz nacional, as duas ocasiões são motivo suficiente para celebração. A data será lembrada com uma programação especial no Centro Cultural de Belém esta sexta-feira, dia 9 de fevereiro, encabeçada por Tudo Isto é Jazz, uma encenação teatral musicada ao ritmo de um século de jazz, acompanhando a evolução dos estilos e sonoridades do género narradas por Villas-Boas.
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Mas se a efeméride não foi esquecida, a memória do que aconteceu nesse “ano zero” do jazz nacional perdeu-se com o passar do tempo. Uma memória histórica associada a lutas sociais e políticas que definiram a primeira metade do século XX, numa relação evidente entre a música negra e a instabilidade do pós-guerra.
“O jazz começa a aparecer na Europa sobretudo a seguir à Primeira Guerra Mundial”, explica ao Observador João Moreira dos Santos, investigador, e vice-presidente da Égide – Associação Portuguesa das Artes, e criador do espectáculo desta sexta-feira. Foi justamente esse conflito o responsável por trazer o jazz, nascido na comunidade afro-americana e na arte negra de Nova Orleães no final do século XIX, para a Europa. Através dos Harlem Hellfighters, o conhecido batalhão negro do exército dos EUA, a Europa devastada pela guerra tomou contacto com uma nova e frenética sonoridade, muito diferente daquela a que hoje associamos ao género.
“O jazz que se ouvia na altura não tem nada a ver com o que se ouve hoje. Era uma música de alegria, de festa, estrepitosa, de transgressões. É a banda sonora dos Loucos Anos 20”, diz Moreira dos Santos. Presente sobretudo em contextos noturnos e de dança, esta versão primordial do jazz explorava as potencialidades do espaço sonoro, aproveitando desde instrumentos tradicionais a campainhas, buzinas e serrotes. A receita perfeita para uma Europa devastada e em busca de diversão e escapismo dos horrores da guerra – justamente o som que, em 1924, chega a Portugal.
Um mistério não resolvido: qual foi a primeira banda de jazz a atuar em Portugal?
A identidade do primeiro conjunto não é conhecida com exatidão. Sabe-se o ano – 1924 – e o contexto – um programa de teatros de revista vindos de Espanha e que passaram pelo Teatro da Trindade, em Lisboa. Mas os registos são escassos — e aqueles que existem nem sempre revelam utilidade. Ainda assim, Moreira dos Santos avança uma hipótese que crê sólida, apoiada nos factos conhecidos.
“[Em 1924], a Companhia Velasco, do Teatro Apolo de Madrid, vem fazer uma série de revistas musicais no Teatro da Trindade. Eram sempre companhias grandes, com bailarinos, atores, malabaristas. (…) e, no meio dessa gente toda vinha uma jazz band que presumo que seja um conjunto formado por um tipo chamado Eleuterio Iribarren”, diz.
Nascido em 1890 na cidade espanhola de Navarra, Eleuterio Iribarren, um “nome menor” na história do jazz internacional, foi em todo o caso uma figura com importância na sua génese. Emigrando na década de 10 para a Argentina, é lá que cria o primeiro grupo de jazz do país, encabeçando o primeiro conjunto composto por artistas norte-americanos e argentinos. “Em 1924 ele regressa à Europa, onde anda por Espanha, França e, nesse mesmo ano, passa por Portugal.”
O nome da banda varia consoante a fonte – Pan-American Ragtime Band, Grupo hispano-americano e American Jazz Band são alguns dos títulos. Também a sonoridade, com uma mistura delicodoce de cordas, piano e melodia dançável, divergia bastante daquilo que, anos mais tarde, se viria a convencionar como o jazz contemporâneo:
“Se formos procurar no Google e nos livros, esta banda não aparece com este nome. Mas estudando a biografia dele percebemos que há grupos com designações muito parecidas”, explica Moreira dos Santos. A passagem da Pan-American por Portugal em 1924 é corroborada por uma fotografia de maio desse ano, na capa do jornal O Século, a propósito de um concerto de angariação de fundos para a primeira travessia aérea Lisboa-Macau, precisamente no Trindade. “Até conseguir perceber quem era esta gente foi todo um processo”, confessa.
Neste período, os principais dinamizadores do jazz português são sobretudo programadores de espetáculos e eventos, homens de uma burguesia viajada que tomam contacto com as novidades culturais do estrangeiro e as procuram apresentar à sociedade portuguesa. “Há um tipo que está muito desvalorizado, que era um ator muito conhecido da época, o Erico Braga”, aponta Moreira dos Santos. Braga, que além de estrela de filmes mudos de Georges Pallu e Leitão de Castro, era também empresário e diretor artístico de vários espaços de diversão lisboeta e, mais tarde, do Casino do Estoril, foi um dos principais dinamizadores dos primórdios do jazz nacional.
[“Honolulu Blues”, pela banda de Eleuterio Iribarren:]
“Ele tinha uma companhia de teatro que fazia temporadas no Trindade. Ia muito a França, a Paris, e nessas viagens de comboio terá visto uma coisa nova, o jazz, os afro-americanos, e é ele quem traz estas bandas”, diz o investigador, ressalvando, contudo, que não há certezas da sua ligação à banda de Iribarren. “Não sei se a Pan-American já é dele, porque o Teatro da Trindade tinha sido vendido à Companhia dos Telefones e ia ser demolido. (…) E aquilo depois é recomprado por um empresário português emigrado no Brasil, que também começa a trazer várias coisas, entre elas grupos de jazz”.
Desta primeira temporada de concertos há poucos registos. Sabe-se, por exemplo, que os jornalistas António Ferro e André Brum estavam na plateia, ainda que não tenham escrito nada sobre a novidade musical. A este respeito, sobrevive uma breve nota do Diário de Notícias que, aquando da estreia do conjunto de Iribarren, encapsula : “No primeiro ato o número da jazz band hispano-americano é um achado e uma síntese – não é uma jazz band, é toda a nossa época tumultuosa e incoerente”.
O preconceito contra a música negra na antecâmara da ditadura
Mas se houve quem demonstrasse sensibilidade para um novo movimento musical, também se viu o contrário. “Isto passou muito despercebido, o jazz ainda não tinha chegado em força. É antes da chegada da Josephine Baker a França, por exemplo”, sustenta João Moreira dos Santos, acrescentando que as poucas reações que foram surgindo foram sobretudo de escárnio. “Uns meses depois deste primeiro concerto temos o Ferreira de Castro, o grande escritor português da época, a escrever na Ilustração Portuguesa já contra o jazz, a dizer que era ‘música de selvagens’.”
O uso do adjetivo não era inocente. A reação anti-jazz de então era sobretudo definida por preconceitos raciais, muito mais do que artísticos, associados a um contexto político e social particular – em Portugal, na antecâmara da Ditadura Militar e do Estado Novo, e numa Europa na ressaca do pós-Primeira Guerra Mundial, onde os nacionalismos ganhavam protagonismo. O jazz, a música negra, era alvo a abater.
“Há um artigo do Artur Portela (pai), a propósito da vinda de um grupo ao Coliseu dos Recreios em 1930, que é muito interessante a este respeito. Parafraseando, a tese é basicamente: ‘Cuidado – isto é o soterrar das diferenças que nos separam ‘deles’. A superioridade branca está alicerçada no facto de termos um Shakespeare, um Camões, e ‘eles’ não. Mas agora já fazem cultura, estão nos nossos teatros. É o fim da separação racial, da limitação de fronteiras. A partir daqui, vamos caminhar para a igualdade’. E isso não caía muito bem“.
Para mudar o paradigma, foi necessária uma certa reeducação cultural da sociedade portuguesa. Para tal, muito contribuíram os esforços de Luís Villas Boas, divulgador e dinamizador que começou cedo a redefinir aqueles que eram entendidos como os “cânones” do género.
“O Villas-Boas vai fazer uma cruzada para legitimar o jazz, para mostrar à sociedade que o jazz dos anos 20 era uma coisa, mas evoluiu, ganhou outra profundidade harmónica”, diz Moreira dos Santos, que escreveu uma biografia do fundador do Hot Clube (Luís Villas-Boas — O pai do jazz em Portugal, pela Avenida da Liberdade Editores). “Quando se fala nos anos 40 na ‘defesa do verdadeiro jazz’, o falso era aquele que ficava para trás, ligado à dança, as orquestras melosas, sem vivacidade. O que ele queria era o jazz do Armstrong, o jazz ‘hot’, improvisado, cru, duro. Não era a música de Hollywood, com cordas, era o jazz que estava na rua, em Nova Orleães, em Nova Iorque”.
Essa evolução, que Villas-Boas acompanhou ao longo de todo o século XX (viria a morrer em 1999), será espelhada na encenação retrospetiva a apresentar no CCB, e que começa justamente com o nascimento do fundador do Hot, interpretado pelo ator João Lagarto. “Está lá toda a progressão do jazz em termos da sua estética musical, desde o ragtime até à fusão dos anos 80”, explica Moreira dos Santos.
Também os primórdios do aparecimento do género em Portugal estão representados, cortesia da licença poética que permitirá ao Villas-Boas de Tudo Isto é Jazz comentar os primeiros concertos de 1924 – coisa que o real nunca chegou a presenciar. “Vai falar sobre a banda de 1924 e vai ler e rasgar jornais da época estas “jazzofobias”, este racismo, para as pessoas saberem que existiu”, diz o investigador.
A este propósito, mostra uma opção criativa curiosa, porque reveladora do espírito da época: “Tivemos de tomar a decisão de filtrar certas coisas, porque se puséssemos a coisa muito crua podíamos chocar as pessoas (…) Aquilo que se escrevia nos anos 20 era impossível de publicar hoje. Era de uma crueldade e de uma crueza tal que tive de escolher as menos graves, que mesmo assim são ofensivas”.