Se a curva dos mortos por Covid-19 anunciados diariamente pelas autoridades de saúde continuar com a tendência que tem assumido nas últimas duas semanas, dentro de pouco mais de um mês Portugal poderá registar cerca de 180 óbitos por infeção pelo novo coronavírus.
O alerta é de Carlos Antunes, o investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que, em parceria com o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, aconselha o Governo com os dados científicos que sustentam as medidas de restrição adotadas para conter a epidemia.
No domingo, o relatório de situação da Direção-Geral da Saúde revelou um novo máximo no gráfico das mortes por Covid-19: 98 óbitos entre a meia-noite e as 23h59 de sábado. Esta segunda-feira, o boletim indica 90 mortes nas últimas 24 horas — um número inferior, mas pouco, ao divulgado no sábado.
São números que chegaram a estar nas contas de Carlos Antunes, mas que, nesta altura, fazem soar alarmes: porque é que o número de mortes aumentou se já tinha estabilizado e devia estar agora a baixar?
Pico de óbitos pode demorar até quatro semanas a surgir
Francisco Antunes, infecciologista do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, não estranha estes valores. O fenómeno que fez disparar o número de óbitos até perto da centena este fim de semana será até “relativamente fácil de explicar”, garante: quem está a perder a vida neste momento foi quem testou positivo à infeção pelo novo coronavírus durante o pico da segunda vaga, na terceira semana de novembro.
Em entrevista ao Observador, o médico explica que, entre a deteção dos sintomas iniciais de uma infeção pelo novo coronavírus — como o surgimento de tosse, a perda de olfato e paladar — e a evolução para um quadro clínico mais grave, costumam passar, em média, sete dias. Ou seja, na maior parte dos casos, a necessidade de internamento só surge uma semana depois do início dos sintomas.
Durante o internamento, os doentes que entram em insuficiência respiratória e têm uma taxa demasiado baixa de oxigénio em circulação no sangue podem melhorar dois a três dias depois de receberem oxigenação artificial. Nos casos em que isso não é suficiente e a condição médica continua a deteriorar-se, o doente necessita mesmo de ventilação.
Depois disso, e nos casos letais, o tempo de internamento em unidades de cuidados intensivos antes do óbito depende das características do próprio doente: se for um jovem que era saudável ou cujas comorbilidades eram menos preocupantes, o internamento será mais longo, porque a resistência do organismo é maior. Se for um idoso, com um sistema imunitário significativamente mais fragilizado, o tempo de internamento até à morte será mais curto.
Por isso é que, segundo Francisco Antunes, o elevado número de óbitos a que se tem assistido nos últimos dias é “o reflexo da letalidade entre os indivíduos diagnosticados há entre duas e quatro semanas”. Da mesma forma, o impacto do acentuado decréscimo do número de novos casos na letalidade anunciada diariamente pelas autoridades de saúde também pode demorar duas a quatro semanas a evidenciar-se.
As quase 100 mortes diárias que a matemática já não previa
Mas não é apenas o número de óbitos dos últimos dias que tem preocupado Carlos Antunes. Aliás, numa entrevista ao Observador a 19 de novembro, o investigador já tinha previsto que o pico no número de óbitos chegaria a meio de dezembro, com entre 95 e 100 óbitos em 24 horas — um intervalo de dados onde se enquadram os valores registados nos últimos dias.
Mas, de lá para cá, as circunstâncias mudaram e, por isso, um número de óbitos desta magnitude já não era expectável, explica agora. “Essas previsões foram feitas numa altura em que se vivia uma evolução exponencial de pandemia”, justifica o investigador. No fim de novembro, quando reajustou o modelo matemático que utiliza para estudar a evolução epidemiológica da Covid-19, Carlos Antunes percebeu que as primeiras contas deviam estar erradas: o número de óbitos tinha estabilizado.
A nova previsão indicava que, na primeira semana de dezembro, os óbitos por Covid-19 registados diariamente iriam começar a baixar sem alcançar as 100 mortes. Em meados de novembro, quando Portugal registou 91 mortes por Covid-19, a tendência era de estabilização — tanto que, a 28 de novembro, a média de óbitos diários nos sete dias anteriores ficava-se pelas 74 mortes. Mas isso não aconteceu: em vez de descerem, as mortes por Covid-19 aumentaram.
Neste momento, a média está entre os 88 e os 90 óbitos — um salto demasiado grande em tão pouco tempo, segundo o investigador: “A média de sete dias tem uma inércia, não muda de um momento para o outro, é estável”, descreveu Carlos Antunes. Apesar de ter disparado de forma inesperada nas últimas duas semanas, não há indicações que permitam esperar que ela volte a diminuir tão depressa quanto subiu.
“Agora que reajustei o modelo matemático à realidade atual, temos uma taxa média muito grande de 2% por dia”, contabilizou o investigador. A manter-se esta tendência, Portugal vai duplicar os óbitos a cada 35 dias.
E há outros dois aspetos a intrigar a equipa de trabalho de Carlos Antunes. Por um lado, na primeira vaga da Covid-19, o pico do número de óbitos aconteceu seis dias depois do pico de internamentos em cuidados intensivos. Agora, duas semanas depois do pico destes internamentos na segunda vaga, os óbitos não só não baixam, como têm aumentado.
Por outro lado, o pico de casos sintomáticos de infeção já foi atingido a 9 de novembro, mais cedo do que o pico de casos gerais e diários anunciados pelas autoridades de saúde. Desde então que o número de sintomáticos entre os milhares de infetados pelo novo coronavírus tem diminuído consistentemente, mas a taxa de letalidade nesse universo de doentes continua a subir.
O frio e mais idosos infetados: porque é que os óbitos dispararam?
Carlos Antunes não encontra explicações para estes números, mas está a estudar uma teoria: é possível que o aumento dos óbitos por Covid-19 seja o efeito conjunto do frio que atingiu o país nos últimos dias — condições meteorológicas em que os vírus do trato respiratório, incluindo o SARS-CoV-2, se propagam com maior facilidade — e de um maior impacto da doença entre as pessoas mais idosas. “Se os lares não tiverem condições de comodidade, o frio pode agravar quadros clínicos de doenças pulmonares”, sugere o investigador.
Além disso, de acordo com os relatos recolhidos desde domingo pelo professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, desde meados de novembro que os hospitais região Norte tem recebido mais idosos infetados pelo novo coronavírus a necessitar de internamento. Isto pode indiciar uma mudança na forma como a epidemia está a atingir a população: se, numa primeira fase da segunda vaga, havia mais jovens nas unidades de cuidados intensivos, agora parece haver uma maior afluência de pessoas mais idosos.
Esta é “uma mera tese, uma mera teoria, são coisas muito difíceis de correlacionar”, sublinha Carlos Antunes. Nos próximos dias, o investigador vai explorar o número de novos casos e de óbitos das últimas semanas para desvendar como é que a incidência da doença tem evoluído nas várias faixas etárias.
Mas Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, encontra sentido nesta tese: embora considere que o aumento de óbitos “não é assim tão inesperado”, também ressalva que, perante um grande volume de novos casos como aquele que se registou em novembro, é natural que também se assista a um aumento de infetados entre as faixas etárias mais frágeis, o que trará, por consequência, mais óbitos.
Portugal pode estar especialmente vulnerável a este comportamento da epidemia por causa das condições demográficas do país: a esperança média de vida é muito elevada, o que também significa que grande parte da população, sendo idosa, ficará especialmente suscetível perante uma infeção pelo novo coronavírus; e é dos países com menos anos de vida saudáveis após os 65 anos, uma métrica que indica o número de anos que os idosos podem esperar viver sem incapacidade física depois dessa idade. Em Portugal, a média é de 7,8 anos nos homens (menos dois que a média europeia), e de 6,9 nas mulheres (menos 3,1 que na União Europeia).
Uma população vulnerável: mais tempo de vida, menos qualidade
Este foi um aspeto sublinhado por Tiago Correia, professor de Saúde Internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, ao Observador: dada a vulnerabilidade da população portuguesa a uma epidemia que é mais agressiva para os mais idosos, “é muito importante conseguir proteger estas pessoas, vivam ou não em lares para idosos”. “Temos mesmo de voltar a tentar controlar o número de novos casos.”
De acordo com os relatórios de situação dos últimos dias, o número de novos casos tem baixado consistentemente desde a terceira semana de novembro. No domingo, quando se atingiu um novo máximo de óbitos por Covid-19 no país, foram detetados 4.044 novas infeções e o número de casos ativos era 71.863. Mas Tiago Correia coloca a hipótese de, ainda assim, os números poderem ser superiores a estes e que apenas tenham diminuído por terem sido feitos menos testes, à conta dos feriados das semanas passadas.
Por enquanto, os dados do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) não permitem confirmar essa possibilidade. Os últimos números da taxa de positivos — em cada 100 testes, quantos confirmaram uma infeção pelo novo coronavírus — foram reportados a 1 de dezembro, precisamente na altura em que a curva do número de mortes disparou. Até esse momento, a taxa de positivos tinha estabilizado, mas, a 1 de dezembro aumentou ligeiramente. Agora é preciso esperar por mais dados e, como sublinha o especialista em saúde pública, observar o que vai acontecer ao longo desta semana.