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Oleksandr nasceu quatro dias antes de começar esta guerra, mas mesmo assim o risco de ser atingido por uma das bombas lançadas pelos soldados a mando de Vladimir Putin não foi o primeiro grande obstáculo que teve de enfrentar na sua curta vida. Nem o segundo.
O primeiro foi o facto de ter nascido com uma série de malformações congénitas no coração, um problema no maxilar e outro num rim, que dificultam o seu crescimento e obrigarão a intervenções cirúrgicas, quando for possível.
O segundo é o facto de ter sido abandonado pelos pais e entregue a um orfanato de Sumy, 340 km a leste de Kiev, e a 50 km da fronteira com a Rússia.
Depois sim, veio a invasão do inimigo, que bombardeou e cercou brutalmente pela força da artilharia a zona onde se localizava o orfanato que o acolheu.
Correndo perigo de vida, Oleksandr e outros 66 órfãos tiveram de ser retirados dessa sua primeira casa e foram transferidos para a cave do hospital pediátrico local, para terem hipóteses de sobreviverem aos bombardeamentos constantes à cidade. Viveram neste abrigo improvisado duas semanas, longe de terem as condições para um bebé saudável, e menos ainda para um que necessita de tantos cuidados de saúde.
Uma imagem incrível partilhada no Facebook pelo governador da região de Sumy, Dmytro Zhyvytskyy, mostra seis bebés apertados num daqueles pequenos parques onde os mais crescidos já poderiam brincar em pé — foi transformado numa cama improvisada. Estão todos encasacados e com o gorro a cobrir as pequenas cabeças para se protegerem do frio. Quatro estão alinhados em cima, os outros dois estão na horizontal aos seus pés. Dos seis bebés na imagem, dois dormem, dois estão de olhos abertos e os outros dois choram intensamente.
A importância das voluntárias ligadas à Igreja Evangélica
Mykola Kuleba, 50 anos feitos esta quarta-feira, pai de quatro filhos, foi até há pouco tempo o comissário do Presidente Zelensky para os Direitos da Criança. O cargo foi extinto numa reorganização recente da cúpula do Estado, mas desde que começou a guerra seria mais necessário que nunca. Kuleba pode já não ter o cargo, mas mantém o sentido de missão, a experiência e os contactos para tentar salvar o máximo de crianças dos horrores da guerra. Tem coordenado uma série de organizações não governamentais no âmbito da Save Ukraine e esteve diretamente envolvido na organização do resgate dos órfãos de Sumy.
Foi contactado diretamente pelo diretor do orfanato, a dizer que as crianças deviam sair dali o mais rapidamente possível, mas havia três problemas: primeiro, os bombardeamentos e a forte presença militar russa em Sumy tornavam quase tão perigoso sair como ficar; depois, só uma parte dos funcionários do orfanato estavam dispostos a deixar a terra para acompanhar as crianças órfãs na viagem, e apenas o fariam se pudessem também levar os seus filhos e familiares; por último, havia nove bebés muito pequenos ou com problemas de saúde como Oleksandr, que são alimentados por sondas e exigiam um acompanhamento médico ao longo da viagem.
Negociar com os russos não era uma opção. “Eles não dão garantias de segurança”, lamenta ao Observador Mykola Kuleba. “Também não era possível envolver militares ucranianos para proteger a operação de resgate, porque se arriscavam a ser mortos se entrassem em Sumy. Por isso recorremos a voluntários ligados à Igreja evangélica, sobretudo mulheres”.
O primeiro grupo de 58 órfãos, mais 14 funcionários do orfanato e 11 familiares, foi retirado de Sumy a meio da noite, em autocarros escolares de cidades vizinhas, numa operação articulada com o governador e outras autoridades locais. Todas estas pessoas foram levadas por 11 voluntários para um centro de uma ONG ligada à Save Ukraine, numa localidade mais segura, que Kuleba prefere não identificar por razões de segurança.
Apesar do medo e do perigo, esta primeira parte da missão foi cumprida com toda a gente viva, mas faltava ainda resgatar os 9 bebés com problemas de saúde, incluindo Oleksandr.
Foi possível preparar três ambulâncias e um carro para irem a Sumy completar o resgate, mas os voluntários que as conduziam tiveram de ficar quatro dias retidos numa cidade constantemente a ser bombardeada, sem que os militares russos permitissem a sua saída.
Só ao fim de 96 horas a correrem risco de vida foi anunciada a abertura de um corredor humanitário, na passada sexta-feira, dia 18: foram buscar os 9 bebés previstos, aos quais se juntaram mais dois órfãos que foram entretanto entregues ao hospital pediátrico, e que não iam deixar ficar para trás. Os voluntários retiraram as crianças da cave do hospital, enfiaram-nas nas quatro viaturas, deixaram Sumy e seguiram o mais rápido que podiam em direção a Kiev, por caminhos previamente combinados com as autoridades ucranianas.
Quatro bebés presos com fita no banco de trás de um carro
Borys Todurov, diretor do Instituto do Coração da capital ucraniana, recebeu uma chamada de um dos médicos que se voluntariou para participar nesta operação de resgate, quando já conduzia uma das viaturas com os 11 bebés a caminho de Kiev: “Temos alguns bebés de uma casa de órfãos de Sumy. Resgatámo-los da linha da frente e vamos para Kiev. Pode ajudar-nos e ficar com estas crianças no seu hospital?”, perguntou o médico. “Eu disse que sim. Automaticamente. Sem hesitar”, recorda ao Observador o diretor do Instituto do Coração.
“Quatro bebés vieram no banco de trás de um carro, presos uns aos outros com fita, para não caírem”, descreve Borys Tudorov. “Não havia tempo nem hipótese de os transportar de outra forma. Os voluntários só tiveram alguns minutos para colocarem os bebés nos carros e porem-se a caminho de Kiev. Isto é a guerra”.
A viagem de 325 km entre o abrigo na cave de Sumy e a enfermaria do Instituto do Coração poderia fazer-se em 4 horas e meia em condições normais, mas durou o dobro do tempo. Ao longo dessas 9 horas, o pequeno Oleksandr — ainda sem ter completado um mês de vida — e os outros órfãos passaram sem saber por check points controlados por russos, com militares armados a espreitar os vários recém-nascidos.
No caminho, com tão poucos adultos para tantas crianças, com o risco permanente de um bombardeamento ou de uma troca de tiros, não houve tempo para os alimentar convenientemente a todos quando tinham fome, nem para mudar fraldas no imediato, nem mesmo para lhes retirar alguma peça de roupa assim que reclamassem por sentirem calor. Apesar do choro e do desconforto, inevitáveis, a prioridade era fugir e seguir em frente, até conseguirem chegar a um local minimamente seguro.
Berçários na enfermaria onde se esperavam soldados feridos em combate
Borys Tudorov já enfrentava demasiados dramas desde que, há um mês, as primeiras bombas russas rebentaram a 5 km de sua casa às 5 da manhã. Os seus pais, já falecidos, são de Mariupol, cidade arrasada pelo inimigo. Morreu-lhe uma tia num dos bombardeamentos, mas nem sabe se conseguiram enterrar o corpo, porque não há condições para fazer qualquer funeral numa cidade destruída pelas bombas. E tem lá outros familiares que não sabe se ainda estão vivos ou também já morreram.
“Sei o que é a guerra. Estive como médico no Kosovo em 2004 e no Iraque em 2005. Agora, logo no primeiro dia, percebemos que era o início de uma grande guerra. Soube que haveria crianças e adultos a fugir e a morrer”. Borys preparou o seu hospital para tentar resistir ao pior. Conseguiu comprar um grande gerador para manter os equipamentos a funcionar caso cortem o acesso à eletricidade. Armazenou água. E com a ajuda de voluntários conseguiu angariar comida e medicação para manter o hospital a funcionar se e quando deixar de se conseguir abastecer por causa da guerra.
Mas mesmo assim estava a enfrentar grandes contrariedades. Metade dos seus profissionais de saúde saíram de Kiev com as crianças para Lviv e outras localidades no Oeste do país, a parte menos fustigada pelos russos. Ficaram apenas 300 médicos, enfermeiros e auxiliares, que passaram a viver no hospital, 24 horas por dia, 7 dias por semana: dormem ali, tomam banho ali, comem ali — sempre nos curtos intervalos em que podem fazer uma pausa nos cuidados permanentes que os doentes exigem.
Tem 50 doentes internados que precisam de uma cirurgia cardíaca, mas não pode fazer mais do que duas a três operações por dia, e só nos casos realmente críticos. Faltam-lhe equipamentos como pacemakers e ventiladores; e falta-lhe medicação específica para as cirurgias, que deixou de conseguir comprar em tempo de guerra nas quantidades necessárias. Faz aliás vários apelos no Facebook aos seus 229 mil seguidores, para ver se lhe conseguem arranjar alguns desses fármacos, para continuar a conseguir fazer cirurgias cardíacas urgentes.
Tem também alguns doentes internados que são de Mariupol, Kharkiv ou Sumy, três das cidades mais arrasadas pela artilharia russa. “Ficaram cá depois de serem operados, porque já não têm casa para onde possam voltar”, justifica o diretor.
Apesar deste contexto difícil, não ia obviamente fechar portas a 11 bebés que fugiam da guerra: “Estas crianças não têm pais e ajudámo-las a sobreviver, porque em Sumy já não tinham condições para isso. A casa onde estavam acolhidas ficava na linha da frente e foi parcialmente destruída. Era muito perigoso ficarem ali”.
Avisou os médicos e enfermeiros e prepararem-se para a chegada das ambulâncias. Falou com Irina Golomai, anestesiologista-chefe, e disse-lhe: “Temos de arranjar o mais rápido possível mais berçários para estas 11 crianças que vão chegar. Têm alguns problemas de saúde e precisam de cuidados médicos”.
Irina tinha uma unidade vazia, e estava a contar que fosse usada talvez para dar assistência a soldados ucranianos feridos em combate. Mas reuniu um conjunto de enfermeiras para adaptar o espaço e ter tudo pronto para a chegada súbita dos 11 bebés ao Instituto do Coração.
A chegada: “São todos órfãos. Eu sou o pai, elas são as mães”
Denis Voropaev, um interno de enfermagem, foi chamado a ajudar a retirar as crianças das ambulâncias à porta do hospital. Pegou ao colo, levou para as urgências, ajudou a despir os bebés para ver se estavam bem, e ajudou a alimentá-los, antes de serem medicados e de lhes ser dado finalmente um banho.
“Vieram médicos e enfermeiros de todos os departamentos. Já éramos mais do que os bebés”, recorda ao Observador. “No início fiquei um pouco chocado quando começaram a chorar. São tão pequeninos, estava com medo de partir-lhes algum osso a mudar-lhes a roupa”. Nos dias seguintes, tem ido brincar com os bebés para lhes dar atenção e tentar assim atenuar o facto de serem órfãos. E, feliz por ter podido ajudar, guarda orgulhosamente no telemóvel uma foto em que segura ao colo um dos recém-nascidos.
Dos 11 bebés, 7 dormiram no Instituto do Coração apenas uma noite, para descansarem antes de seguirem viagem até Lviv, acompanhados por dois especialistas em emergência hospitalar. Permaneceram em Kiev a bebé Oksana, de 5 semanas, o Maxim, de 2 meses, outro Oleksandr, mais velho, de 5 meses, e o pequeno Oleksandr de um mês. “Este bebé nasceu pouco antes de a guerra ter começado. Tem alguns problemas, que é possível tratar, mas tem de esperar uns meses até à operação”, diz o diretor, mesmo ao lado do recém-nascido. Outro bebé tem síndrome de Down e também um problema cardíaco, que obrigará a uma intervenção não urgente. Os outros dois aparentam ser saudáveis.
Cada um dos quatro recém-nascidos tem uma etiqueta no pulso, com o nome, a alimentação e a medicação que recebem por sondas, e que varia consoante o estado de saúde e as doenças de que sofrem.
“Como vê, todos os bebés são recém nascidos. São todos órfãos, não têm pais. Eu sou o pai, elas são as mães”, assume, referindo-se às médicas e enfermeiras que seguram as crianças ao colo. “Todos somos pais e mães agora”.
“Tentamos fazer o melhor por estes bebés como se fôssemos mães deles. Acho que nunca tiveram tanto uma mãe como agora”, concorda a enfermeira Oksana Surova, a única que fala inglês das quatro que estão nesta unidade, aproveitando um pequeno momento de sossego dos quatro recém-nascidos.
As noites podem ser mais agitadas, com todos a chorar ao mesmo tempo, entre as mudanças de fraldas e a alimentação de 3 em 3 horas. Mas mantêm-se aparentemente alheados dos ruídos dos bombardeamentos em redor. E mesmo quando soam as sirenes fora do hospital a alertar para ataques aéreos, não são levados para o bunker: permanecem nos seus pequenos berços, com as enfermeiras ao lado, sempre vigilantes.
A ida dos órfãos para a Alemanha e o entrave à adoção
Oksana não sabe se os bebés vão ser entregues para adoção, mas confidencia que alguns médicos do hospital estão a ponderar candidatarem-se a ficar com eles.
“Não há legislação que permita que estes órfãos sejam adotados no estrangeiro. É responsabilidade do governo criar essa regulamentação e aguardamos uma decisão no futuro próximo”, comenta Mykola Kuleba, o CEO da Save Ukraine, que se tem empenhado para retirar o máximo de crianças das zonas de perigo, e pede a quem possa para contribuir com donativos em dinheiro e comida.
Depois de uns dias em Lviv, a maioria destas crianças, mais os funcionários do orfanato e respetivos familiares atravessam a fronteira da Ucrânia com a Polónia esta quinta-feira à noite, um mês depois de ter começado a guerra. À sua espera terão autocarros que os levarão até à Alemanha, onde receberão tratamentos médicos e acolhimento provisório. E a seguir? “Se os processos de adoção no estrangeiro não passarem a ser autorizados, estas crianças devem voltar à Ucrânia”, explica Mykola Kuleba.
O governador de Sumy, Dmytro Zhyvytskyi, fez um post no Facebook a agradecer a todos os que participaram no resgate, acolhimento e acompanhamento clínico dos órfãos. E acaba com duas promessas: “Vamos derrotar os orcs [numa equiparação dos invasores russos aos vilões do Senhor dos Anéis] e devolver as crianças à sua região nativa de Sumy”.