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A interferência do embaixador da Santa Sé em Portugal — um arcebispo italiano com um passado controverso ligado a polémicas relacionadas com o encobrimento de abusos sexuais de menores na Igreja chilena — obrigou os bispos católicos portugueses a dirigirem-se esta semana ao Vaticano para obter uma autorização especial, por parte da liderança central da Igreja Católica, para que a comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores possa aceder aos arquivos da Igreja Católica em Portugal.
Segundo informações recolhidas pelo Observador junto de fontes conhecedoras do caso, a grande maioria dos bispos católicos portugueses já estava de acordo quanto à possibilidade de os arquivos eclesiásticos nacionais poderem ser consultados por uma equipa independente de académicos, liderada pelo historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, mobilizada pela comissão independente que está a investigar os abusos de menores na Igreja Católica portuguesa ao longo dos últimos setenta anos, coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.
Contudo, depois de esse acordo entre os bispos e a comissão ter sido publicamente anunciado, o embaixador da Santa Sé em Portugal — ou núncio apostólico, na linguagem eclesiástica — interveio no processo, afirmando que seria necessária uma autorização específica por parte da Santa Sé para que os arquivos secretos das 21 dioceses católicas portuguesas fossem consultados pelos especialistas, tal como sucedeu nas investigações semelhantes que foram conduzidas em França e na Alemanha. A intervenção do núncio apostólico apanhou os especialistas de surpresa, obrigou a um atraso nos trabalhos e levou a comissão independente a exigir respostas à hierarquia da Igreja Católica.
A solução passou por uma deslocação de uma comitiva de bispos portugueses a Roma, esta semana, para debater com elementos da cúpula católica vários temas relacionados com a investigação independente aos abusos sexuais de menores, incluindo a questão do acesso aos arquivos eclesiásticos. Esta quarta-feira, dia em que a comitiva portuguesa ainda se encontrava em Roma, e de acordo com informações recolhidas pelo Observador, já havia sinais positivos de que a tal autorização específica iria mesmo ser emitida e que o problema levantado pelo núncio apostólico seria resolvido em breve.
No centro deste caso surge uma figura da Igreja em destaque — o atual embaixador da Santa Sé em Portugal. Trata-se do arcebispo italiano Ivo Scapolo, nomeado para o cargo em 2019 depois de uma passagem como diplomata do Vaticano no Chile. Como o Observador noticiou na altura, naquele país, Ivo Scapolo foi um dos principais responsáveis pela nomeação de um bispo acusado de encobrir décadas de abusos sexuais cometidos pelo padre Fernando Karadima, um dos mais infames pedófilos da história recente da Igreja Católica.
A história de uma intriga
Para compreender esta intriga eclesiástica é necessário recuar pelo menos até novembro do ano passado, mês em que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), o órgão máximo da Igreja Católica em Portugal, anunciou que iria convocar uma comissão independente para investigar o que tinha acontecido em Portugal ao longo dos últimos setenta anos no que respeita à crise dos abusos sexuais de menores cometidos no seio da Igreja. O anúncio surgiu em resposta a múltiplos apelos por parte da sociedade civil para que a Igreja portuguesa seguisse o exemplo dos bispos de outras partes do mundo, e que se intensificaram na segunda metade do ano passado, depois de ter sido conhecido em França um relatório devastador que estimou em centenas de milhares as vítimas de abuso clerical naquele país desde a década de 1950.
As conclusões da comissão independente até agora
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Até ao dia 10 de maio, a comissão independente já tinha recolhido um total de 326 testemunhos diretos de abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal desde meados do século XX até à atualidade.
Contudo, a comissão estima que o número real de vítimas se cifre nas muitas centenas e que estes testemunhos diretos representem apenas a ponta do icebergue, uma vez que vários casos apontam para a existência de várias outras vítimas.
O universo das vítimas identificadas até agora inclui pessoas com idades atualmente entre os 13 e os 88 anos, que tinham entre os 2 e os 17 anos quando sofreram os abusos.
Além disso, embora haja vítimas de ambos os sexos, existe uma clara predominância de vítimas do sexo masculino. Quanto à escolaridade, todos os níveis de instrução estão representados na amostra, desde a antiga instrução primária até ao doutoramento.
Quanto aos abusadores, trata-se na sua esmagadora maioria de sacerdotes, embora também existam casos que dizem respeito a chefes de escuteiros, professores de Religião e Moral, superioras de congregações religiosas e outras figuras de poder na Igreja.
A comissão também já identificou indícios de encobrimento de casos de abusos por parte da hierarquia católica nacional, incluindo por parte de bispos atualmente no ativo.
Embora a maioria dos casos já tenha ultrapassado o prazo de prescrição, a comissão já enviou para o Ministério Público um total de 16 casos que ainda não prescreveram — e planeia enviar mais no futuro próximo.
O bispo D. José Ornelas, atual presidente da CEP, convidou o pedopsiquiatra Pedro Strecht — que foi um dos principais responsáveis pelo acompanhamento das vítimas do caso Casa Pia — para coordenar esta comissão independente e para escolher os seus membros. Strecht convidou para a comissão o psiquiatra Daniel Sampaio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos. Desde o primeiro momento, a comissão independente assumiu que uma das suas grandes linhas de ação passaria pela consulta dos arquivos das 21 dioceses católicas portuguesas, onde os investigadores acreditam ser possível encontrar vestígios documentais que permitam entender como a hierarquia da Igreja Católica lidou com denúncias de abusos sexuais no passado.
No entanto, também desde o primeiro momento, a consulta dos arquivos das dioceses foi um dos grandes focos de controvérsia no debate sobre a investigação. Isto porque, apesar de a CEP ser um órgão colegial que assume a representação da Igreja Católica em Portugal, a verdade é que não tem poder executivo sobre os bispos, que são a autoridade soberana nas suas dioceses, respondendo apenas ao Papa. Nos primeiros dias do trabalho desta comissão, antecipava-se que esta realidade pudesse causar entraves à investigação, uma vez que, na verdade, nem todos os bispos estão exatamente no mesmo ponto no que respeita a este estudo. Segundo apurou o Observador, alguns bispos, nomeadamente aqueles que já em 2019 e 2020 se mostravam relutantes face à criação das suas próprias estruturas diocesanas de proteção de menores — como o bispo do Porto, D. Manuel Linda, ou o bispo de Lamego, D. António Couto —, continuam a manter posições de ceticismo perante a nova comissão independente.
Ainda assim, o que é certo é que os bispos e a comissão independente se puseram de acordo no que toca à consulta dos arquivos.
De acordo com informações recolhidas pelo Observador, os bispos e a comissão independente tiveram algumas reuniões de trabalho para debater o assunto e chegaram recentemente a um entendimento, que foi anunciado por ambos os lados em dois momentos distintos. O primeiro anúncio partiu da comissão independente, que numa conferência de imprensa em 12 de abril revelou que tinha convidado o historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, para coordenar uma equipa técnica de historiadores e arquivistas que iria reunir-se com cada um dos 21 bispos portugueses para avaliar o estado dos arquivos diocesanos e, depois, levar a cabo o trabalho concreto de consulta dos arquivos. Nessa conferência de imprensa, a comissão independente revelou até que esta equipa técnica já se encontrava no terreno a realizar contactos exploratórios com alguns bispos.
Alguns dias mais tarde, os bispos portugueses reuniram-se em Fátima, na sua habitual assembleia plenária semestral, entre os dias 25 e 28 de abril, com o tema dos abusos como um dos pontos centrais da agenda. Os seis elementos da comissão independente deslocaram-se a Fátima no segundo dia desta assembleia plenária, terça-feira, 26 de abril, para atualizar os bispos sobre o andamento dos trabalhos da comissão. Segundo apurou o Observador, ficou definido que os bispos emitiriam um comunicado conjunto a confirmar a disponibilidade de todas as dioceses — sem exceção — para a abertura dos seus arquivos à equipa de Francisco Azevedo Mendes. Assim aconteceu. No dia 28 de abril, no final da assembleia plenária, o porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, leu o comunicado no qual os bispos portugueses mostravam “todo o interesse em colaborar com a Comissão Independente e a Equipa por esta designada, respeitando a Lei Civil, a Lei Canónica e o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados”.
Abusos de menores. Bispos católicos prometem à comissão independente acesso aos arquivos da Igreja
Tudo parecia, então, encaminhado: a equipa técnica estava constituída e os bispos tinham dado o seu compromisso público de que abririam as portas dos seus arquivos aos investigadores.
O problema surgiu no dia seguinte, 29 de abril, para o qual estava agendado um encontro entre a equipa técnica e o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, para discutir os moldes nos quais seriam consultados os arquivos da diocese lisboeta. Nesta altura, a equipa técnica já se tinha reunido com alguns bispos portugueses — e tudo tinha corrido bem. O mesmo não aconteceu naquele dia 29 de abril em Lisboa. Segundo apurou o Observador junto de fontes conhecedoras do caso, o cardeal-patriarca levantou uma questão que até ali não tinha sido colocada: a necessidade de uma autorização especial por parte do Vaticano para o acesso aos arquivos, tal como tinha acontecido em França e na Alemanha.
Algo tinha mudado. O caso motivou uma série de comunicações de última hora entre a comissão independente e a Conferência Episcopal com vista à identificação e resolução daquele problema.
De acordo com informações recolhidas pelo Observador, o problema terá surgido depois de uma intervenção do núncio apostólico em Lisboa, o arcebispo Ivo Scapolo, já depois da divulgação do comunicado dos bispos, algures entre os dias 28 e 29 de abril. Scapolo terá dito à hierarquia católica portuguesa que o processo de acesso aos arquivos não podia ser feito como anunciado: era necessário seguir uma série de trâmites legais, que incluíam a emissão de uma autorização expressa por parte do Vaticano, à semelhança do que tinha acontecido nos casos de França e da Alemanha. Segundo apurou o Observador, esta exigência colocaria entraves ao trabalho da comissão independente, uma vez que tinha potencial para atrasar significativamente o acesso da equipa técnica aos arquivos — e os historiadores e arquivistas tinham de realizar o trabalho ainda antes do verão para que o relatório final da comissão pudesse ser publicado na data prevista, que é dezembro de 2022.
Este obstáculo ao acesso aos arquivos foi, de acordo com o que o Observador apurou, um dos motivos centrais que levaram uma comitiva de bispos portugueses, liderada pelo presidente da CEP, D. José Ornelas, a deslocar-se esta semana de urgência a Roma para uma ronda de reuniões com altas figuras da hierarquia do Vaticano.
A deslocação da comitiva foi inicialmente anunciada na terça-feira, num comunicado em que a CEP se limitava a dizer que era “oportuna e necessária a colaboração entre as Igrejas locais e as estruturas da Igreja universal que se ocupam deste tema a nível global”, pelo que iria acontecer “em Roma uma reunião conjunta de trabalho entre alguns membros do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa e alguns Dicastérios da Santa Sé”. O comunicado nem sequer referia a data da reunião, mas bastou um dia para que a CEP enviasse um novo comunicado a confirmar que, na verdade, o encontro já tinha tido lugar, na manhã de quarta-feira.
A reunião contou com a presença de D. José Ornelas, o líder da CEP, e também do bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, do arcebispo de Évora, D. Francisco Senra Coelho, do arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, e do porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa. Do lado do Vaticano, estiveram presentes nomes como o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, ou o cardeal Luis Ladaria, prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé — dois dos mais importantes membros da cúpula da Igreja Católica. De acordo com informações recolhidas pelo Observador, dessa reunião saíram sinais claros de que vai ser mesmo formalizada a tal autorização para o acesso aos arquivos e de que o trabalho da equipa técnica deverá regressar brevemente ao normal.
Núncio polémico em silêncio
Ao longo da última semana, o Observador procurou recolher informações sobre esta história complexa e controversa junto de diversas fontes, incluindo os bispos portugueses, a CEP, a comissão independente e a nunciatura apostólica.
A nunciatura apostólica foi a mais direta na recusa de esclarecimentos sobre a interferência no processo de articulação entre os bispos portugueses e a comissão independente. O Observador tentou obter esclarecimentos do núncio apostólico, mas só depois de vários contactos telefónicos foi possível obter uma reação. A resposta, porém, foi liminar: “A Nunciatura Apostólica em Portugal acusa a receção da mensagem chegada via email no dia 13 do corrente mês de maio e, em resposta ao pedido que dirige a Sua Excelência Reverendíssima o Núncio Apostólico, comunica que não será dada resposta às perguntas formuladas.”
Certo é que Ivo Scapolo já chegou a Portugal com um rasto de polémica em relação à crise dos abusos sexuais de menores.
Scapolo, que trabalha na diplomacia do Vaticano desde 1984, já passou por posições diplomáticas no Ruanda, Bolívia e Chile. Foi neste último país, onde esteve entre 2011 e 2019, que Scapolo foi um dos principais responsáveis pela nomeação de Juan Barros para o cargo de bispo de Osorno, em 2015. A nomeação ocorreu quatro anos depois de o idoso padre Fernando Karadima ter sido condenado por ter cometido abusos sexuais contra menores durante décadas. Karadima era um mentor espiritual de Juan Barros que, quando chegou a bispo, terá sido instrumental no encobrimento dos casos de abuso — algo que já era público quando Barros foi nomeado para o cargo de bispo de Osorno. Na altura, a nomeação causou enorme polémica no Chile, um país onde as feridas dos abusos de menores continuavam por sarar em 2018, quando o Papa Francisco visitou o país e acabou por se ver no meio de uma controvérsia que hoje é considerada como um dos momentos decisivos para a mudança de atitude da Igreja global em relação aos abusos de menores.
Segundo notícias da época, Ivo Scapolo, então embaixador da Santa Sé no Chile, tinha inclusivamente recebido uma carta detalhada de uma das vítimas de Karadima dando conta dos abusos que sofreu às mãos do sacerdote e do modo como Juan Barros tinha ocultado o caso. Ainda assim, depois de ter tido conhecimento daquela carta e da polémica em torno de Karadima e Barros, Scapolo avançou na mesma para a recomendação de nomeação do bispo — e a tomada de posse de Juan Barros viria a ficar marcada por um motim de 600 manifestantes que o tentaram impedir de entrar na catedral de Osorno. Scapolo é ainda hoje acusado pelas vítimas de abuso de ter informado erradamente o Papa Francisco sobre o bispo Juan Barros.
Ivo Scapolo saiu do Chile em 2019, justamente o ano em que a polémica dos abusos na Igreja Católica a nível global ganhava uma nova dimensão com a mudança de políticas motivada pelo Papa Francisco, e foi enviado para Portugal — onde o seu passado no Chile é bem conhecido. Segundo informações recolhidas pelo Observador, Ivo Scapolo já se terá incompatibilizado com vários elementos da hierarquia católica, incluindo figuras relevantes no Vaticano. Uma fonte do episcopado português disse ao Observador esperar que o caso do Chile tenha feito Ivo Scapolo mudar a sua atitude em relação aos casos de abuso sexual de menores.
Bispos contactados antes da intervenção do núncio não manifestaram oposição
Por seu turno, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, também recusou responder às várias perguntas sobre o caso que o Observador lhe enviou, por ter sido ele o primeiro bispo a levantar obstáculos no acesso da equipa técnica aos arquivos. Em contrapartida, através do seu gabinete de comunicação, D. Manuel Clemente enviou uma curta declaração ao Observador: “No Patriarcado de Lisboa, bem como nas outras dioceses, tudo se fará para que o assunto se resolva do melhor modo e depressa, respeitando todos os cânones e o trabalho da Comissão Independente.” Fica, ainda assim, claro que existiu um “assunto” a precisar de ser “resolvido”.
Um assunto que não existiu noutras dioceses portuguesas que já tinham sido contactadas pela equipa técnica antes da intervenção do núncio apostólico. Por exemplo, o bispo de Portalegre-Castelo Branco, D. Antonino Dias, confirmou diretamente ao Observador que já se tinha reunido com a equipa e que não havia qualquer obstáculo — mas que ainda aguardava, depois da primeira reunião, a ida dos especialistas a Portalegre para a consulta dos arquivos propriamente ditos.
“Já há muito me reuni com a Comissão Independente e com a Comissão de História e dos Arquivos. A reunião com esta última Comissão foi presencialmente, aqui, em Portalegre. Só vieram para terem essa reunião comigo, que eu quis fosse conjuntamente com o arquivista diocesano. Da nossa parte, não há nada a opor, até lhes propusemos que, se o desejassem, poderíamos ser os primeiros”, disse D. Antonino Dias ao Observador, acrescentando: “Aguardamo-los com todo o respeito e estima. São pessoas competentes na área, sabem bem as normas pelas quais se regem, quer quanto às leis civis quer quanto às canónicas, e estão em sintonia com o Presidente e Conselho Permanente da CEP. De resto, não recebi qualquer intervenção de ninguém.”
Outro exemplo é o bispo do Algarve, D. Manuel Neto Quintas, que também já se reuniu com a equipa técnica liderada por Francisco Azevedo Mendes, segundo disse ao Observador o responsável pelo gabinete de comunicação da diocese algarvia. Também naquele caso, o bispo garantiu aos membros da equipa que não tinha qualquer oposição a que os especialistas consultassem os arquivos, desde que respeitadas as normas definidas por acordo entre a comissão e a CEP.
Estes são apenas dois exemplos de dioceses com as quais a equipa técnica já se tinha reunido antes da intervenção do núncio apostólico. De acordo com informações obtidas pelo Observador, os especialistas já se tinham reunido com várias outras dioceses portuguesas, obtendo genericamente dos vários bispos a anuência em relação à consulta dos arquivos.
Que autorização é esta?
Impõe-se, então, uma pergunta fundamental. Se os bispos têm autoridade plena sobre as suas dioceses e não se opõem à consulta dos arquivos, por que razão é necessária uma autorização especial do Vaticano? De acordo com fontes eclesiásticas ouvidas pelo Observador, o que parece estar em causa é um formalismo canónico que obriga a perceber o modo como a Igreja Católica legisla sobre os seus próprios arquivos.
Numa diocese católica, é expectável que se encontrem pelo menos três tipos de arquivos: o arquivo comum, o arquivo histórico e o arquivo secreto. O acesso aos dois primeiros arquivos é relativamente pacífico. Devem ser observadas as normas determinadas pelo bispo diocesano para que se faça a consulta daqueles arquivos, onde se guardam essencialmente documentos relacionados com a vida da diocese e das paróquias, bem como documentação com valor histórico. Contudo, o arquivo secreto levanta mais questões. É nesse arquivo que estão guardados os documentos mais sensíveis da diocese, que incluem documentos sobre pessoas concretas, comunicações diretas dos bispos, processos mais complexos dos tribunais eclesiásticos, documentação relativa aos casamentos, entre outros documentos. O Código do Direito Canónico determina que “somente o Bispo tenha a chave do arquivo secreto”, uma formulação que levanta inclusivamente algumas dúvidas entre os canonistas — será uma formulação literal (ou seja, só o bispo pode ter a chave física do arquivo secreto, mas pode abri-lo a quem entender) ou uma formulação mais metafórica (significando que só o bispo pode ter acesso àquela documentação)?
Aparentemente, a maioria dos bispos portugueses está disponível para abrir os arquivos à comissão independente. Porém, não foi isso que aconteceu em França, país em que houve bispos menos disponíveis para colaborar com a investigação. Naquele caso, a Conferência Episcopal Francesa decidiu fazer um decreto executivo determinando a suspensão daquela norma do direito canónico para todos os bispos franceses no que respeitava à comissão independente para o tópico dos abusos de menores, o que obrigava todos os bispos a abrirem o seu arquivo secreto, mesmo contra a sua vontade, à comissão. Contudo, para que um decreto executivo de uma conferência episcopal tenha, efetivamente, força executiva, precisa de ser expressamente aprovado pela Santa Sé — algo que aconteceu no caso francês.
Até à intervenção do núncio apostólico, a Conferência Episcopal Portuguesa não tinha considerado necessário tomar uma decisão executiva destas, uma vez que os bispos tinham anunciado publicamente estar de acordo com a consulta dos arquivos por parte da equipa técnica. No caso português, para que uma decisão da CEP tenha força sobre todos os bispos tem de ser aprovada por dois terços dos bispos com direito de voto na assembleia plenária e depois tem de receber aprovação do Vaticano — aprovação essa que está agora a ser preparada em Roma para desbloquear o impasse em Portugal.
O Observador contactou diretamente a Conferência Episcopal, através do seu porta-voz, o padre Manuel Barbosa, que também recusou responder às perguntas colocadas. Em vez disso, o sacerdote remeteu o Observador para o tal comunicado divulgado em 28 de abril, afirmando que se mantinha tudo o que foi dito naquela altura.
Já o coordenador da comissão independente, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, questionado sobre a questão da interferência do núncio apostólico no acesso aos arquivos, optou por não comentar por se tratar de “assuntos da competência da Igreja”. Mas disse estar “totalmente convicto de que a Igreja não faltará à sua palavra de abrir os arquivos à equipa de historiadores”. Pedro Strecht garantiu, ainda, que não continuará à frente da comissão caso a Igreja Católica não permita o acesso dos historiadores aos arquivos: “Obviamente, demito-me.”