O Papa Francisco nomeou o arcebispo italiano Ivo Scapolo para o cargo de núncio apostólico em Portugal — ou seja, embaixador da Santa Sé —, anunciou esta quinta-feira o Vaticano em comunicado. O diplomata italiano era, até agora, embaixador da Santa Sé no Chile, país que no ano passado esteve no centro de um dos maiores escândalos de abusos sexuais na Igreja Católica. O próprio Scapolo não foi imune à polémica, tendo sido um dos principais responsáveis pela nomeação para a liderança da diocese de Osorno do bispo Juan Barros, acusado de encobrir décadas de abusos sexuais praticados por um padre chileno — nomeação que motivou o reacender da polémica contra Barros.

Scapolo, que trabalha na diplomacia da Igreja Católica desde 1984 e além do Chile já foi embaixador da Santa Sé no Ruanda e na Bolívia, vai substituir o também italiano Rino Passigato, que representou o Vaticano em Portugal entre 2008 e 2019, tendo abandonado o cargo este ano após atingir a idade de 75 anos, limite canónico para a resignação dos bispos católicos. Esta não será, porém, a estreia de Scapolo em Portugal. Antes de ser nomeado para o mais alto cargo da diplomacia vaticana pelo Papa João Paulo II, em 2002, o arcebispo ocupou cargos em várias nunciaturas, incluindo Angola, Portugal e Estados Unidos.

Núncio no Chile entre 2011 e 2019, Ivo Scapolo era o embaixador do Vaticano naquele país na altura da nomeação de Juan Barros para bispo de Osorno, em 2015 — quatro anos depois da condenação e suspensão do padre Fernando Karadima (agora destituído do sacerdócio), acusado de ter cometido abusos sexuais contra menores durante décadas, e considerado um mentor de Barros. A nomeação incomodou a comunidade católica chilena e motivou fortes protestos contra o Papa Francisco e a hierarquia católica — e esteve na origem da polémica gerada durante a visita de Bergoglio ao país, no ano passado, durante a qual o líder da Igreja Católica teve inclusivamente de pedir desculpa publicamente pela forma como falou das vítimas chilenas.

O ex-padre Fernando Karadima, considerado culpado pela Igreja Católica de abusos sexuais contra menores, durante uma audiência em 2015, num processo movido contra a arquidiocese de Santiago por encobrimento de abusos (VLADIMIR RODAS/AFP/Getty Images)

Para os chilenos, o ex-padre Fernando Karadima é a personificação do drama dos abusos sexuais na Igreja Católica. As primeiras denúncias contra Karadima surgiram em 2004, dentro da própria Igreja, mas só tiveram eco internacional em 2010, quando quatro homens da paróquia de El Bosque contaram as suas histórias ao jornal norte-americano The New York Times. Os denunciantes, entre os quais o médico James Hamilton (que se tornaria no porta-voz das vítimas de Karadima), haviam apresentado queixas formais no tribunal da arquidiocese de Santiago no ano anterior. Um deles contou mesmo àquele jornal que tinha denunciado o caso aos superiores religiosos na diocese sete anos antes, mas não recebeu resposta. A falta de respostas e de ação da Igreja Católica levou-os a, através de uma ONG norte-americana que apoia vítimas de abusos sexuais, mover um processo em tribunal contra o padre Karadima, acusando-o de ter abusado deles em segredo durante anos, na década de 80, quando eram ainda menores de idade.

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O escândalo gerado à volta de Karadima, um dos padres mais conhecidos e influentes do Chile, protegido pela classe política e económica, cresceu ao longo dos anos, com mais vítimas a revelarem as suas histórias. O processo em tribunal acabaria arquivado devido à prescrição dos crimes, praticados quando ainda vigorava o anterior sistema penal chileno. Porém, a Igreja Católica fez o seu próprio processo. Em 2011, e apenas na sequência do escândalo público, a Santa Sé fez saber que já existia desde 2007 um processo canónico contra o padre Karadima. No início de 2011, o Vaticano anunciou que o processo canónico tinha sido concluído e que Karadima tinha sido considerado culpado de abuso sexual de menores. O sacerdote foi destituído das suas funções e forçado a viver uma “vida de oração e penitência“, uma pena comum na Igreja Católica para retirar os clérigos da vida pública.

O caso reacendeu-se em 2015, quando Juan Carlos Cruz, uma das vítimas de Karadima, enviou uma carta ao Papa Francisco na qual acusava diretamente o bispo Juan Barros de ter testemunhado vários abusos e de ter utilizado a sua influência eclesiástica para tentar impedir e atrasar as investigações àquele sacerdote, já octogenário, que havia sido em tempos mentor de Barros. A carta, datada de 3 de março e enviada diretamente ao Papa Francisco, conta detalhes sobre os momentos em que sofreu abusos alegadamente testemunhados pelo bispo Juan Barros. De acordo com a BBC, que teve na altura acesso à carta na íntegra, a vítima anexou ao texto que enviou ao Papa uma outra carta que havia enviado, um mês antes, ao núncio apostólico, Ivo Scapolo (agora embaixador em Portugal), na qual descrevia todos os detalhes.

O pedido de desculpas do Papa

A carta não foi suficiente, porém, para impedir a nomeação de Juan Barros para a diocese de Osorno. Duas semanas depois do envio da carta, Barros seria recebido, na cerimónia que marcou a sua entrada oficial na diocese, por mais de 600 manifestantes que tentaram impedi-lo de entrar na catedral. Ao mesmo tempo, mais de mil pessoas enviaram cartas ao Papa Francisco para lhe pedir que revertesse a nomeação — operada, como todas as nomeações episcopais, pelo núncio apostólico, Ivo Scapolo. De acordo com o Crux, Scapolo teve um papel crucial na nomeação de Barros e de mais uma série de bispos chilenos que acabariam por resignar na sequência do escândalo de pedofilia. Apesar de se ter remetido ao silêncio, continua a análise do Crux, Ivo Scapolo foi acusado por muitas vítimas de Karadima de ser um dos responsáveis por ter informado erradamente o Papa sobre o passado de Juan Barros no processo de nomeação.

Todo o escândalo voltou a reacender-se no início de 2018, com a visita do Papa Francisco ao Chile. A viagem do Papa fez ressurgir as críticas contra o bispo Juan Barros e várias vítimas vieram a público exigir a Bergoglio que pedisse desculpas publicamente por ter nomeado o bispo encobridor para um lugar de maior autoridade. O tema não ficou de fora da conferência de imprensa do Papa a bordo do avião que o transportou para o Chile — e foi aí que Francisco proferiu uma frase polémica: “No dia em que vir uma prova contra o bispo Barros, então falarei. Não há uma única prova contra ele. É tudo calúnia. Está claro?

Ivo Scapolo, à direita, com o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, enviado pelo Papa Francisco ao Chile para investigar os abusos sexuais na Igreja Católica daquele país (CLAUDIO REYES/AFP/Getty Images)

As palavras de Francisco causaram choque no país e inclusivamente dentro da hierarquia da Igreja. O próprio cardeal Seán O’Malley, homem forte do Papa para a luta contra os abusos e líder da comissão do Vaticano para a proteção dos menores, criticou duramente Francisco e acusou-o de, com as suas palavras, ter causado “grande dor” às vítimas. No voo de regresso, o Papa Francisco viu-se obrigado a pedir desculpa, pela primeira vez, por palavras ditas por si: “O drama dos abusados é tremendo. O que é que sentem as vítimas? Tenho de pedir-lhes desculpa, porque a palavra ‘prova’ feriu. A minha expressão não foi feliz. Peço desculpa se as feri, sem me aperceber, sem o querer. Dói-me muito.”

Na sequência da viagem polémica, o Papa Francisco viria a ordenar uma investigação de grandes dimensões ao escândalo dos abusos no Chile, enviando o arcebispo Charles Scicluna, um dos principais responsáveis no Vaticano pelo julgamento dos abusos, para liderar pessoalmente a investigação. Na sequência da investigação, o Papa convocou todos os bispos chilenos ao Vaticano para discutir o assunto e foi depois dessa reunião que, num gesto inédito, todos os bispos do país apresentaram a resignação. Um dos bispos cuja renúncia já foi aceite por Francisco foi precisamente Juan Barros. Em setembro do ano passado, Francisco expulsou definitivamente do sacerdócio dois padres chilenos acusados de abusos, incluindo o padre Fernando Karadima. O embaixador Ivo Scapolo, que continua a ser apontado pelas vítimas como o responsável pela promoção do bispo encobridor, vai agora mudar-se para a avenida Luís Bívar, em Lisboa, para ser o representante do Papa Francisco em Portugal.