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A invenção do campo português

Portugal saltou do "orgulhosamente sós" para "o segredo mais bem guardado da Europa", até chegar ao boom turístico. Mas o campo foi sempre uma paisagem ideológica. Um ensaio de Bruno Vieira Amaral.

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“Estava para ser o refúgio de aldeia de um casal cansado da vida da cidade que se queria entregar aos humores e amores da montanha. Acabou por ser uma história de amor, a deles por esse lugar, que agora é partilhado por todos os que prezam o regresso às coisas simples.”;

“No Monte é ainda possível encontrar vários animais que fazem parte do quotidiano rural, tais como galinhas, ovelhas e vacas”;

“Pelos nossos campos, verdejantes no inverno, floridos na primavera, dando lugar a uma planície doirada, no início do verão e à cor de ocre quando o outono se anuncia, podem realizar-se passeios pedestres ou de bicicleta, passeios de todo-o-terreno ou mesmo aproveitar para apreciar a natureza e o perfume das alfazemas com um agradável piquenique.”;

“Um espaço profundamente envolvido com a aldeia, a natureza, os locais e as suas tradições.”;

“Entre os 15 hectares de pinheiros, sobreiros e ciprestes que rodeiam a quinta poderá encontrar cadeiras e camas de baloiço, ideais para relaxar e ouvir os sons da natureza. Perfeito para uma escapadela e para fugir ao stress da cidade”

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Neste breve apanhado de citações retiradas de sites de promoção ou de unidades de turismo rural está um resumo do conceito de campo tal como é apresentado ao seu destinatário preferencial, o habitante das cidades e centros urbanos. É possível que essa dimensão do campo seja a mais relevante e a única que se pode discutir. O campo-em-si, o campo real, permanece um mistério, e afinal aquilo de que falamos quando nos referimos ao campo é não mais do que o campo-para-a-cidade, o “refúgio”, uma ficção escapista que proporciona a rotineira fuga à rotina.

Nesse campo estão as “coisas simples”, que se opõem às “coisas complexas” da cidade; ainda há animais exóticos, como “galinhas, ovelhas e vacas”, enquanto na cidade já só há animais de estimação, bichos “apartamentizados”; nesse campo ainda há uma ligação profunda com “a natureza, os locais e as suas tradições”, como se tudo fizesse parte de um cenário onde o turista é convidado a entrar e a perder-se, esquecendo-se, no breve período que por lá estiver, da ficcionalidade do lugar, embalado pelos “sons da natureza”, longe do stress da cidade. Para que o encantamento funcione, “a natureza tem de ser contida na sua desordem e nas suas manifestações exorbitantes”, escreve António Guerreiro, numa crónica dedicada ao tema do turismo rural. No fundo, o rural em “turismo rural” é uma tradução simplista do campo para linguagem urbana, um rural com todas as comodidades da vida urbana, água quente, wi-fi e ar condicionado.

Embora hoje impere a ideia de que a imagem que se vende de Portugal e, por arrasto, do Portugal rural, é politicamente neutra, é curioso notar as semelhanças desse Portugal com o país promovido pelo Estado Novo.

Na concretização plena dessa criação comercial cruzam-se várias dimensões: a estética (na arquitectura da paisagem e dos edifícios, com a valorização do falso rústico), a espiritual (num sentido new age, de espiritualidade terapêutica, com o regresso ao paraíso e a redescoberta da harmonia espiritual perdida) e a literária (convocada para a linguagem da promoção com todo arsenal kitsch das “planícies doiradas” e dos “campos verdejantes”; há uns anos, o Turismo de Portugal tinha uma publicidade na televisão com a banda sonora de “Verdes São os Campos”).

A vertente política não deve ser desvalorizada. Embora hoje impere a ideia de que a imagem que se vende de Portugal e, por arrasto, do Portugal rural, é politicamente neutra, é curioso notar as semelhanças desse Portugal com o país promovido pelo Estado Novo. Mas, mesmo que atribuamos a essa retórica uma neutralidade ideológica, continua a ser possível uma leitura política dessa representação apolítica e da forma como nela são tratadas as tradições e as “gentes”, que, tal como os lugares que habitam, supostamente ainda não foram corrompidas pela civilização.

Campo e cidade, paisagem e nação

Não há nisto qualquer novidade. Um dos pilares da nossa cultura judaico-cristã é a oposição entre campo e cidade, a começar pela expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, essa unidade de turismo rural projectada por Deus, onde se vivia sem preocupações nem pecado. Desde que a humanidade começou a viver em aglomerados urbanos estabeleceu-se uma divisão que tem de um lado a cidade impura – com os seus tráficos e comércios de toda a sorte, a instabilidade e as transformações contínuas, as ameaças, as doenças – e, do outro, a vida simples e previsível do campo. De um lado, tudo o que é falso, artificial, ilusório e transitório. Do outro, tudo o que é autêntico, natural, real e imutável.

Hoje, o marketing turístico serve-se do autêntico e de categorias quejandas como arma de persuasão: dizer “autêntico” torna a experiência que se oferece “real” e “única”, não adulterada, sem corantes nem conservantes, sumo de laranja natural, pão caseiro, cerveja artesanal, saberes típicos, sabores tradicionais. Todas estas categorias estão associadas a ideias de simplicidade, naturalidade, tradição e verdade para que, numa época de turismo de massas, o turista se sinta privilegiado. Por definição, o turismo rural diferencia-se pelo sossego e pelo isolamento, é o parente exclusivista do turismo de massas. Enquanto as ruas das cidades estão pejadas de turistas sôfregos, o turismo rural proporciona uma ilusão de nicho, de refúgio, mais próxima, nesse sentido, da experiência de privilégio que esteve na origem do turismo moderno, o Grand Tour dos aristocratas europeus dos séculos XVII e XVIII.

Lentamente, as coisas foram mudando e, já no século XIX, o poeta romântico inglês William Wordsworth se queixava das hordas de visitantes apressados que iam de comboio para o campo para apreciar a paisagem, uma actividade que misturava o estético e o religioso, e que, pouco tempo antes, estava reservada aos espíritos mais elevados dos artistas e dos poetas. (ver Landskipping, Anna Pavord, Bloomsbury).

“Landskipping”, de Anna Pavord (Bloomsbury)

Nessa altura, a paisagem enquanto tema pictórico já há muito se havia estabelecido e a apreciação das qualidades paisagísticas era uma marca de distinção social e cultural: “Observar uma paisagem, fosse real ou a sua transposição artística, tornou-se o critério para avaliar a cultura de uma pessoa.” (Landskipping) Como o gourmand ou o escanção, o observador de paisagens apurava o seu gosto e era capaz de distinguir uma paisagem bonita de uma paisagem sublime. Da contemplação da paisagem e das suas representações artísticas resultaram duas tendências distintas: a primeira era quando o espectador, ao confrontar-se com o cenário real, não o achava à altura da sensibilidade do artista.

Isto acontecia porque, quando a natureza não oferecia o dramatismo necessário, os pintores acrescentavam esse dramatismo, retocavam a natureza à medida das suas ideias e gosto. A segunda tendência, mais preocupada com a captação do espírito do lugar, censurava os artistas que impunham a sua sensibilidade particular e obliteravam as características particulares, “nacionais”, da paisagem. Richard Wilson, considerado o pai da escola inglesa de paisagem, foi criticado porque os seus quadros tinham muito do “espírito” italiano (Wilson tinha trabalhado em Itália) e não faziam justiça ao carácter distintivo da paisagem inglesa.

Esta segunda tendência demonstra que a cultura da paisagem acompanhou as evoluções da sociedade e que, de tema pictórico, a paisagem foi elevada a elemento da identidade nacional, como a língua, o território, a religião e o património cultural edificado. Da mesma forma que se preservava um monumento, uma obra de arte ou uma expressão cultural, era necessário proteger a paisagem, o que obrigava igualmente a definir o tipo de paisagem característico de cada nação e como devia ser representada. Como tal, a paisagem tornou-se palco privilegiado do conflito entre progresso e tradição, entre passado e futuro, entre economia e cultura, conflito esse que, assumindo variadas formas, dura até hoje. É que um país é não só constituído por múltiplas paisagens, sujeitas a mudanças, sejam estas ditadas pela própria natureza ou por intervenção do homem, como são múltiplos os olhares sobre essas mesmas paisagens. Como é que se chega então à paisagem que contém a verdade de um lugar, de uma nação? Que paisagem é essa que diz a verdade sobre o que se é enquanto povo?

O campo tem sido uma ficção escrita por quem vem de fora – sejam pintores, poetas, romancistas ou políticos – e para quem vem de fora – os cidadãos a quem o poder oferece uma narrativa unívoca da nação, os turistas em busca de um refúgio.

A paisagem enquanto elemento da identidade nacional e o campo como reservatório de qualidades antigas e imutáveis de uma comunidade são, mais do que espaços geográficos, lugares da imaginação, disputados por visões artísticas, culturais e políticas concorrentes, são palco e objecto da disputa entre essas visões antagónicas. Enquanto objectos de contemplação, de peregrinações laicas e artísticas, lugares de turismo e de ideologia, a natureza, a paisagem e o campo evadiram-se do “natural” e foram integrados no “cultural”, transformaram-se em categorias de discursos de diversas ordens que muitas vezes se confundiram e sobrepuseram. Desta forma, o campo tem sido uma ficção escrita por quem vem de fora – sejam pintores, poetas, romancistas ou políticos – e para quem vem de fora – os cidadãos a quem o poder oferece uma narrativa unívoca da nação, os turistas em busca de um refúgio, da tranquilidade, do sossego e do autêntico, um autêntico feito à medida.

O campo na literatura portuguesa do século XIX

A questão campo vs. cidade, inserida no contexto mais vasto da modernização do país, da divisão política entre liberalismo e absolutismo, é um dos eixos dominantes da literatura portuguesa do século XIX e que entra e persiste até muito tarde no século XX, talvez, mas não só, por Portugal ser, ainda na segunda metade do século XX, um país maioritariamente rural. No capítulo X de Viagens na Minha Terra (1846), romance que inaugura a modernidade romanesca em Portugal, Almeida Garrett faz uma descrição do Vale de Santarém como lugar de ordem e harmonia e incorre na comparação bíblica com o Jardim do Éden:

“O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar , a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.”

Almeida Garrett

Um promotor turístico com talento literário não descreveria melhor o seu refúgio rural. O lugar não traz apenas sossego espiritual com também inspira toda a sorte de sentimentos benfazejos. O mal ali não tem lugar. O campo assim descrito é tanto o Éden dos nossos primeiros pais como o paraíso prometido no Apocalipse, onde não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.

O campo terapêutico, sanatório para a cura dos males do homem moderno, surge também em A Morgadinha dos Canaviais (1868), de Júlio Dinis. Segundo Ferrão Katzenstein, no prefácio a uma das edições da obra, aqui “o escritor advoga a tese segundo a qual a felicidade só existirá no regresso ao campo e à vida simples”. Para ilustrar a tese, Júlio Dinis escolhe um lisboeta de 27 anos, Henrique de Souselas, que vive dos rendimentos e divide o demasiado tempo livre de que dispõe entre discussões literárias e políticas. Na verdade é quase uma caricatura daquela espécie de lisboeta de que fala Garrett nas Viagens e que passava a vida entre o Chiado, a rua do Ouro e o Teatro de S. Carlos, sem cuidar que o mundo não começava nem terminava na capital do reino. Naturalmente, Henrique acaba por ficar saturado daquela vida mole e fastidiosa:

“Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas câmaras, bocejava no Grémio, bocejava no Suíço, no Chiado e nos círculos dos seus amigos, os quais principiaram também a achá-lo insuportável de insipidez”.

Mas em nenhum outro livro português, nem mesmo em A Morgadinha dos Canaviais, a oposição entre campo e cidade, entre o ambiente rural e a civilização, é tão marcada, tão programática, como em A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queirós, publicado postumamente em 1901.

O médico recomenda-lhe que vá para uma grande cidade, como Paris ou Londres, ou que se recolha por completo no “viver da aldeia”. Henrique opta pela segunda hipótese. Aí conhece a Morgadinha dos Canaviais, símbolo de uma vida mais livre e saudável, menos afectada e menos espartilhada pelos códigos supérfluos da civilização. Em vez de passeios janotas pelo Chiado, Henrique tem de “trepar montes, atravessar ribeiras, costear precipícios”. Os perigos do caminho são compensados com a beleza da paisagem que, “a cada ângulo que dobrava, aparecia mais surpreendente e maravilhosa.”

Henrique é curado pela paisagem – magnífica, admirável, soberba – e por um estilo de vida mais natural nos hábitos e nos costumes, em que as pessoas se tratam como parentes, onde não há lugar a galanteios de salão e toda a gente diz o que lhe vai na alma, não permitindo que nelas cresça o rancor, o cancro dos sentimentos contidos. O mal de Henrique de Souselas é, afinal, a cidade. A cura está no campo.

Mas em nenhum outro livro português, nem mesmo em A Morgadinha dos Canaviais, a oposição entre campo e cidade, entre o ambiente rural e a civilização, é tão marcada, tão programática, como em A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queirós, publicado postumamente em 1901. Aqui, o Henrique de Souselas chama-se Jacinto e, em vez de Lisboa, entedia-se em Paris. Porém, no início não há tédio; “a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, de uma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente.”

Eça de Queirós

Já o campo infunde-lhe um terror sobrenatural:

“Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva de um ramo.”

Na cidade o homem fez o mundo à sua imagem e à sua medida. No campo de nada lhe valem as suas “faculdades superiores.” Para Jacinto, ao contrário de Henrique de Souselas, o espectáculo deslumbrante da paisagem não vale o esforço de saltar uma sebe, “um acto degradante que o retrogradava ao macaco inicial.” Mas Jacinto também acaba por sucumbir ao tédio. O grande amigo Zé Fernandes encontra-o “estirado no divã, de olhos miserrimamente cerrados, […] num bocejo imenso e mudo.” Zé Fernandes é a antítese vital da languidez urbana de Jacinto. A certa altura, perora sobre os malefícios da cidade. Afinal, a cidade não é o pináculo da evolução das sociedades humanas, mas o princípio da sua degeneração:

“O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. […] Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do seu corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão!”

A retórica de Zé Fernandes condu-lo, inevitavelmente, ao Éden inicial e à queda do homem. Bombardeado pela oratória do amigo e a braços com a sua depressão, Jacinto acaba por concluir que a cidade “é talvez uma ilusão perversa.” É em Tormes, entre castanheiros e pratadas de ovos com chouriço, que Jacinto se reconcilia com a vida e recupera a harmonia com o mundo.

Importa dizer que a ideia da cidade como foco de corrupção moral e de violência não se confinava às páginas literárias. Pelo contrário, era uma ideia arraigada no que poderemos chamar consciência colectiva da nação. No livro O Crime em Lisboa 1850-1910, a autora Maria João Vaz cita alguns textos do final século XIX e inícios do século XX que provam como a ideia da “cidade do vício” (título de um livro de Fialho de Almeida) estava generalizada:

“Em princípio, todo o ajuntamento é uma escola de maldade, e é por isso que nas cidades se aguçam e refinam as instintivas torpezas humanas. É por isso que as províncias nos oferecem muito maior simplicidade e pureza de costumes […] A causa desse, por assim dizer, desequilíbrio de contribuição criminal é a diferença que há entre a vida das aldeias e das cidades. Naquelas o viver é simples. Passam os dias e os anos serenamente, sem ambições, sem egoísmos; o amanho das terras, que são a garantia do conforto do lar, é a única preocupação do camponês. Este após uma noite sossegada devido à sua consciência pura, parte de manhã para o cultivo dos campos, desde o nascer ao pôr-do-sol. A mulher fica em casa, a tratar dos filhos, e todos os dias são iguais.” (Galeria de Criminosos Célebres em Portugal, 1908, citado por Maria João Vaz)

Nas apologias campestres nunca são referidas as duríssimas condições de vida dos camponeses: é tudo puro, sereno, confortável e previsível. Menospreza-se a violência da natureza, a luta que é preciso empreender com ela para se obter algum ganho. Tudo aparece simples e sem arestas.

Como escreve a autora, “[a] cidade emerge como um espaço desorganizado, caótico e de difícil controlo e, por isso, propício à prática de ilegalidades e do crime, enquanto os espaços rurais são percepcionados como locais onde se desenvolvem modos de vida mais harmoniosos, simples, equilibrados e salutares, permitindo assim o afastamento de problemas sociais, como a criminalidade.”

Repare-se como nas apologias campestres nunca são referidas as duríssimas condições de vida dos camponeses: é tudo puro, sereno, confortável e previsível. Menospreza-se a violência da natureza, a luta que é preciso empreender com ela para se obter algum ganho. Tudo aparece simples e sem arestas. Essa ideia até hoje está viva, seja em panfletos turísticos – destinados a um consumidor final a quem só a experiência temporária interessa – seja na ideologia ecológica. A natureza é reduzida a uma fantasia de fartura e de generosidade e desvaloriza-se o conhecimento que é preciso ter dos próprios ritmos da natureza para se viver com ela com um mínimo de conforto. Sempre prontos a citar o Éden, esquecem-se da condenação no Génesis 3:17-19:

“Maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela, todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás.”

O país real

Nas suas acções de propaganda e de desenvolvimento de uma política do espírito, o Estado Novo também nunca mostrou as miseráveis condições da vida no campo. A estratégia, gizada em conjunto por Salazar e António Ferro, teve um tal impacto que a imagem que ainda hoje se tem do campo, mesmo as novas gerações que dele pouco conhecem, está mais ligada a essa ficção do Estado Novo do que à experiência real, por exemplo, dos nossos avós que se viram obrigados a fugir desse campo idílico. Isto aconteceu por causa do talento de propagandista de Ferro, dos meios de que dispunha para executar os seus planos e de um terreno receptivo a uma imagem de ordem e bucolismo num país que tinha passado anos em convulsões políticas. Salazar e Ferro reactivaram uma mentalidade que se começou a impor como resposta à desordem dos tempos da I República e que se manifestou não apenas em termos políticos, mas também culturais, como aponta Pedro Caldeira Rodrigues na revista Visão História:

“A nova elite política, católica, conservadora, militarista e nacionalista, almejava expurgar a ‘desordem republicana’ através de um novo figurino de emoções e referências provenientes da pureza campestre, em oposição à cidade impura, cosmopolita, anárquica. […] Em Cabaz de Morangos [1926], o quadro de abertura ‘Onde Está a Felicidade’ indicava o caminho da «paz dos campos e no culto da tradição, a ‘vida boa’ em contraste com a desordem materialista da cidade e a febre do modernismo, a ‘boa vida’. As revistas passam a revestir-se de noções nacionalistas, saudosistas, ‘onde a ordem reinava sem que a luta de classes perturbasse as manhãs claras das aldeias ingénuas’, como assinala Pavão dos Santos. O campo, bucólico, hierárquico, conservador, opunha-se à cidade, proletária, caótica, maçónica, impura. O meio rural passava a ser sinónimo de autenticidade, o espaço urbano um lugar degenerado e transgressor.”

António Ferro com Salazar

Tratava-se de uma simples tradução para português do mito do pays réel, tão acarinhado pela direita francesa nacionalista. Essa ideia de que há um país profundo ignorado ou activamente desprezado pela elite urbana – no nosso caso coincidente com a elite lisboeta – é extraordinariamente resistente e continua a ter o seu lugar no discurso de políticos e cronistas, qualquer que seja a sua orientação política, como se constata numa crónica escrita em 2005 pelo falecido Paulo Varela Gomes: “O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos mais feios e mais destruídos do país: os do litoral centro e norte. […] É o território que os citadinos, leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas auto-estradas […]” A diferença é que Varela Gomes não falava de um paraíso esquecido, mas de um inferno de lixo acumulado e, por isso, acrescentava esta nota: “é verdade – embora poucos o saibam: o campo em Portugal, é muito mais sujo que as cidades.”

Na sua juventude, o próprio Ferro, modernista e anti-tradicionalista, era um desses citadinos insensíveis ao Portugal profundo e capaz de escrever coisas que, anos mais tarde, teria considerado sacrilégios e que fazem lembrar o Jacinto da primeira parte de A Cidade e as Serras:

“Lisboeta do Chiado, da Serra do Chiado, custou-me a habituar à serra do Gerês, custou-me a receber a intimação dos montes… Ontem, porém, lá fui, lá investi com a montanha, contrafeito, esquivo, como quem vai fazer a reportagem dum crime, como quem vai para uma repartição pública, a repartição pública da Natureza…”

Veja-se como o discurso de Salazar é semelhante a este do nacionalista francês Charles Maurras, datado de 1900: “O país oficial e legal, que se identifica com o governo porque é dele que se alimenta, este pequeno país constitucional começa, apesar de tudo, a ver e a compreender a emoção que conquista o país verdadeiro, o país que trabalha e que não faz política.”

Quando em 1933 foi publicado o livro Salazar. O homem e a sua obra, conjunto de seis entrevistas dadas pelo ditador a António Ferro, já este estava em perfeita sintonia com o que Salazar escrevia no longo prefácio:

“Eu não digo, como muitos, que é falsa a vida da cidade; é como é, viva e real nos seus artifícios e defeitos; digo que é incompleta, sobretudo se se quer por ela ajuizar da vida nacional, e se se supõe ser vida da cidade a vida, na cidade, duma classe. Quando se desce da capital à província, da cidade à aldeia, do club, da redacção do jornal, do salão de festas ao campo, à fábrica, à oficina, o horizonte das realidades sociais alarga-se a nossos olhos e tem-se uma impressão diferente do que seja uma nação. A distância que nos separa a nós, homens de café, familiares das repartições públicas, chegados aos ministérios, participando da omnipotência do Poder, talhando idealmente as reformas, lançando as linhas dos grandes planos, decidindo quasi da sorte do mundo, — a distância que nos separa da verdadeira nação, é enorme.” (citado em A Bem da Nação, Cândida Cadavez, Edições 70)

O livro “Salazar. O homem e a sua obra”, de 1933

Verdadeira nação equivale a “pays réel”. Veja-se como o discurso de Salazar é semelhante a este do nacionalista francês Charles Maurras, datado de 1900: “O país oficial e legal, que se identifica com o governo porque é dele que se alimenta, este pequeno país constitucional começa, apesar de tudo, a ver e a compreender a emoção que conquista o país verdadeiro, o país que trabalha e que não faz política.” O mito do “país real” continua vivo, talvez mais do que nunca, e tem sido usado para explicar os recentes resultados nas eleições norte-americanas e o Brexit. Entrevistado pela jornalista Isabel Lucas, o escritor Salman Rushdie resumiu o estado das coisas:

“Há uma grande discussão entre a América metropolitana e urbana e as pessoas que vivem fora das grandes cidades. E uma grande, grande divisão, exactamente a mesma que se defrontou em Inglatera  com o Brexit. É o campo contra a cidade; o campo, de alguma maneira, a castigar a cidade.”

Propaganda à portuguesa

A criação, em Outubro de 1933, do Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, marca um ponto fundamental no plano do Estado Novo para formatar uma identidade nacional recuperando, promovendo e inventando tradições, criando uma ficção ligada a uma história mais mítica do que factual e em que o turismo desempenhava um papel de extraordinário relevo, não só em termos económicos e materiais, mas em termos ideológicos, enquadrado na “política do espírito” pensada por Ferro. Como sublinha Cândida Cadavez em A Bem da Nação, é curioso que, em 1944, o Secretariado Nacional de Propaganda tenha alterado a sua designação para Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo. Desapareceu a propaganda e entrou o turismo.

Se, ainda hoje, a ausência de conflitualidade social ou de fenómenos como o terrorismo servem para atrair turistas que assim se afastam de zonas problemáticas (o risco de atentados terroristas em certos países do Norte de África e mesmo noutros países europeus é um dos factores, entre outros, que explica o crescimento do turismo em Portugal nos últimos anos), esse era um trunfo importantíssimo no contexto de uma II Guerra Mundial que devastava a Europa.

Oásis, refúgio, paz. No fundo, Europe’s best kept secret. Se hoje, na ficção do turismo rural, campo é o refúgio do homem atormentado pelo ritmo da vida nas cidades, Salazar e Ferro queriam fazer de Portugal essa grande e abençoada aldeia a salvo dos males do mundo e da corrupção da mentalidade urbana.

Salazar e Ferro viram aí uma oportunidade de transformar Portugal num destino turístico preferencial e, mais importante, de vender para o exterior – e para o interior – a imagem de um país-refúgio, país-santuário, pacificado internamente e a salvo da guerra que assolava a Europa. Escreveu António Ferro em Turismo, Fonte de Riqueza e de Poesia:

“O sorriso! Eis qual deveria ser a palavra de ordem para as fronteiras dos países amáveis, calmos, dos países que são refúgios. […] Se Portugal, nobremente, não tenta sequer fazer negócios com esta nova grande guerra, não deve porém repelir algumas vantagens que a sua neutralidade lhe oferece. Entre estas avulta, como primeira, a de estarmos sendo olhados, por toda a parte, como uma zona de refúgio, de paz, como o verdadeiro oásis da Europa atormentada, devastada.” (citado em A Bem da Nação).

Oásis, refúgio, paz. No fundo, Europe’s best kept secret. Se hoje, na ficção do turismo rural, campo é o refúgio do homem atormentado pelo ritmo da vida nas cidades, Salazar e Ferro queriam fazer de Portugal essa grande e abençoada aldeia a salvo dos males do mundo e da corrupção da mentalidade urbana. A linguagem do turismo e da propaganda não se distinguiam. Promover o turismo era promover o país, promover o país era promover o regime: “O turismo, é portanto, além dum indiscutível factor de riqueza e de civilização, um meio seguríssimo não só de lata propaganda nacional como de simples propaganda política.”

Portugal era um país diferente, singular, excepcional, com “todas as condições para ser um grande País de Turismo”, como escrevia em 1935 Roque da Fonseca, membro da direcção do Automóvel Club de Portugal e da Comissão de Turismo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Havia um “clima ideal cujas temperaturas são superiores às das mais afamadas estações do estrangeiro, paisagens deslumbrantes e variadas, das mais lindas e pitorescas da Europa”, mas era preciso fazer mais, não só ao nível das infraestruturas, como da política do espírito que valorizava as qualidades “genuínas” da nação.

Ao cultivar-se na cidade, o homem falsifica-se ou, para usar as palavras de Salazar, torna-se incompleto, amputado da sua parte mais fundamental. É como se ao educar-se, ao refinar-se, ao adoptar certos comportamentos de urbanidade, o homem estivesse, na verdade, a corromper o seu eu puro e imutável, a trair-se e, dessa forma, a trair uma tradição. Regressemos por momentos à literatura e lembremo-nos de Calisto Elói, protagonista de A Queda dum Anjo, a sátira de Camilo Castelo Branco sobre um deputado às cortes que vem do Norte com os seus modos provincianos e acaba por se tornar um janota, a seguir as novas modas e, pecado capital, a arranjar uma amante.

Camilo Castelo Branco

É verdade que Camilo não faz nenhuma apologia da província, nem exalta as suas virtudes. O seu sarcasmo não poupa ninguém, sejam camponeses ou citadinos, provincianos ou membros da elite da capital. No entanto, prevalece a ideia de que ao assumir comportamentos típicos da cidade o homem torna-se artificial, falso. Não se eleva, cai, como um anjo, como Adão expulso do paraíso. A simpatia do leitor vai para o Calisto mais castiço do início, com as suas locuções gongóricas, os seus volumes de intelectual da província, os seus hábitos simples, a sua mulher feia e humilde. É a ideia de que ao sair da aldeia o homem perde a inocência, a pureza e a sinceridade, o que tem de mais genuíno. Como o homem deve preservar essas qualidades pessoais, as nações deviam preservar essas qualidades colectivas. E, de acordo com a propaganda, era nas aldeias que elas podiam ser encontradas.

A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal

A eleição da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal em 1938 foi talvez o momento mais marcante e duradouro dos esforços da propaganda de António Ferro em impor ao país uma visão arcaica e estática da sua essência. O objectivo era escolher a aldeia “menos penetrada da civilização dos outros”, como dizia António Ferro. “A pobreza, o primitivismo e o arcaico, por um lado, e a calma, a virtuosidade e a pureza, por outro, eram termos usados para apresentar e justificar as candidaturas”, escreve Cândida Cadavez. É interessante observar como o impacto do concurso ainda hoje se faz sentir.

Monsanto, a vencedora, continua a ser designada como a aldeia mais portuguesa de Portugal, e, no ano passado, o espírito que presidiu a essa eleição foi de certa forma recuperado no concurso televisivo “As Sete Maravilhas de Portugal – Aldeias”. Numa crítica ao formato, Eduardo Cintra Torres estabeleceu a comparação entre ambos e também sublinhou o papel do turismo na narrativa democrática da “salvação da pátria”:

“De 1938 para 2017, o concurso alargou-se de 22 a 49 aldeias; inclui agora as ilhas; criou secções (rurais, autênticas, remotas, ribeirinhas, de mar, monumento, em áreas protegidas). Só três coincidem nos dois concursos: Monsanto, vencedora em 1938, Manhouce e Alte. A recuperação de 1938 é assumida e as secções revelam a continuidade ideológica: o conceito de aldeia “autêntica”, por exemplo, tem o mesmo significado de “mais portuguesa”. Oito décadas depois, a propaganda do SPN materializando a idealização do campo, que já vinha das elites desde o século XIX, renasce num formato audiovisual, estatal e comercial. O concurso vem duma empresa mundial, com representação portuguesa, que fez da antiquíssima lista das “sete maravilhas do mundo” o seu negócio cultural. Por cá, associam-se-lhe estruturas do Estado, que vêem no concurso potencial de turismo e propaganda. Ao tradicional, belo e pitoresco, ao fundo ideológico persistente, o concurso de 2017 junta a ideologia estatal e nacional do nosso tempo: o turismo como salvação da pátria.”

Esquecida na Beira Baixa e vigiada pelo Galo de Prata no cimo da torre, Monsanto continuará a ser por muito tempo a aldeia mais portuguesa de Portugal e o campo, como disse alguém mais sábio do que eu, continuará a ser um mito urbano.

Esta continuidade da mesma retórica turística em regimes políticos tão diferentes também é sublinhada por Cândida Cadavez: “As representações rurais e bucólicas valorizadas e premiadas no concurso de 1938 são também as representações usadas pela indústria turística para convidar visitantes e os convencer da autenticidade do destino, na década de trinta e ainda em muitas das ofertas turísticas disponíveis no século XXI”. Não se trata de um acaso, como explica a investigadora na conclusão do seu livro: “A preferência do Estado Novo em usar a indústria turística como instrumento de divulgação das suas lições ideológicas é fácil de entender, pois, […] as representações das nações e os quadros turísticos sobrevivem à custa de argumentos semelhantes, que evocam tradições, histórias, autenticidades e memórias de comunidades.”

É verdade que o turismo do século XXI se destina a consumidores e não a cidadãos, que é marketing e não ideologia, mas também é verdade que o turismo, além de uma indústria e fonte de riqueza, é um veículo de promoção (ou propaganda) do país. Que as representações do “país real” de 1938 sejam muito semelhantes às actuais não significa que partilhem os mesmos objectivos: com a romantização e mitificação do campo, o turismo do século XXI quer oferecer aos seus clientes uma experiência invulgar, enquanto o Estado Novo procurava a regeneração espiritual e a formação cívica dos cidadãos, a criação de um português novo, “genuinamente nacional”, curado do vírus do estrangeirismo. Num caso, o que é proposto é uma forma de escapismo, no outro, uma profunda transformação cívica. Apesar disso, recorrem a um ideário comum e muito antigo: o do campo como reservatório da essência pura e imutável da nação e da humanidade. Recorrem, no fundo, a uma ficção reforçada pelos seus próprios instrumentos de marketing e propaganda. Essa ficção é tão forte que, esquecida na Beira Baixa e vigiada pelo Galo de Prata no cimo da torre, Monsanto continuará a ser por muito tempo a aldeia mais portuguesa de Portugal e o campo, como disse alguém mais sábio do que eu, continuará a ser um mito urbano.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor de “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e de “Hoje estarás comigo no paraíso”

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