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Quem esteve na Chechénia não se esquece. “À medida que me aproximava do centro da cidade, mais as ruínas dos bairros residenciais pareciam um monumento de uma civilização perdida. Tinha uma memória vívida recente desta cidade estar viva e a florescer. Agora, contudo, parecia que de forma absurda estava num filme antigo sobre as batalhas de Estalinegrado ou Berlim.” Vladimir Voronov era um dos jornalistas russos que estava na cidade de Grozny e assistiu de perto à aniquilação brutal da capital chechena pelas tropas russas, aquando da segunda invasão, iniciada em 1999. À altura, Grozny foi classificada pelas Nações Unidas como “a cidade mais destruída em toda a terra”.
Um dos comandantes dessa invasão foi Alexander Dvornikov, o homem que lidera agora a invasão russa na Ucrânia, desde que em inícios de abril a Rússia decidiu unificar o comando de todos os ataques sob este homem. Uma decisão que, para o Royal United Services Institute for Defence and Security Studies (RUSI), mostra que o Kremlin decidiu que o conflito está para durar: “O exército russo parece ter concluído que necessita de tempo e que a conquista do sul iria necessitar de mais tropas no verão, portanto começou a reuni-las. O 9 de maio deixou de ser um prazo-limite e tornou-se um ponto de mudança para galvanizar uma mobilização em maior escala.”
Na altura em que se assinalam os três meses desde o início da guerra de larga escala da Rússia contra a Ucrânia, o Observador ouviu vários especialistas militares para perceber em que ponto está a ofensiva e o que devemos esperar nos próximos tempos. As conclusões são unânimes e coincidem com as do RUSI: agora que a Rússia se reposicionou a leste, na zona de Donbass, desenha-se uma nova fase da guerra, que está para durar. “Pelo menos até ao final do verão, a não ser que surja alguma surpresa como uma frente nova ou um colapso de um dos lados no leste”, prevê William Alberque, diretor de Estratégia, Tecnologia e Controlo de Armas do International Institute for Strategic Studies (IISS).
Ouça aqui o episódio sobre os 3 meses de guerra do podcast “A História do Dia”.
Frank Ledwidge, antigo militar britânico com experiência nas guerras dos Balcãs, Iraque e Afeganistão, vai ainda mais longe: “Vai arrastar-se até ao inverno, possivelmente até ao próximo ano”, garante ao Observador.
Ambos também não têm dúvidas de que um cenário semelhante ao de Grozny em 1999 é possível de ser replicado em algumas das cidades do Donbass. “Já vimos algumas dessas táticas em Mariupol”, aponta Ledwidge. “Aquilo que ainda não vimos é uma destruição em larga escala, a partir do ar ou através de mísseis, das estruturas nacionais: vias rodoviárias, ferroviárias, sistemas elétricos e por aí fora.” Algo que não aconteceu porque, na opinião de Alberque, os russos acharam que a rendição ucraniana seria rápida “e por isso queriam proteger as infraestruturas para um regime-fantoche [que se seguiria]”.
Agora que tal objetivo parece estar fora das opções, Moscovo vai subir o tom da violência, garantem. “A Rússia já está a brutalizar de forma mais sistemática as cidades ucranianas e as infraestruturas civis e militares. As táticas provavelmente vão continuar e até intensificar-se”, ilustra o investigador do IISS.
Kiev e Odessa devem manter-se ucranianas. A não ser que haja “surpresas” como as de Kharkiv e Mariupol
Em qualquer guerra há, porém, surpresas. Duas delas já ocorreram: chamam-se Kharkiv, reconquistada pelos ucranianos a nordeste, e Mariupol, já dominada pelos russos, a sudeste. O posicionamento das forças russas no terreno neste momento, contudo, indiciam que Moscovo concentra agora esforços mais a leste e sudeste, o que significa que não deverá tentar retomar Kharkiv, pelo menos para já, e que deverá continuar a conseguir assegurar Mariupol.
Ambas têm particular significado moral para os dois exércitos. “”Kharkiv é a segunda maior cidade da Ucrânia e foi fulcral na resistência aos ataques apoiados pela Rússia em 2014. É chave para a identidade ucraniana na zona leste e eles detestariam perdê-la”, resume William Alberque.
Já Mariupol é relevante pela dimensão (400 mil habitantes), pelo facto de ser uma cidade portuária e por servir de ponte terrestre do resto de Donbass até à península da Crimeia. Mas a sua conquista terá custado caro a Moscovo: “Putin desperdiçou forças e tempo precioso que a Ucrânia usou para adquirir mais armamento, aprender a usar novos sistemas, formar novas unidades militares e reforçar as defesas”, acrescenta o investigador. “Um erro enorme. A defesa de Mariupol vai provavelmente ficar para a História militar.”
Da mesma forma, os especialistas também creem que o mais certo é que, apesar dos ataques esporádicos à distância, Kiev e Odessa se mantenham firmemente sob controlo ucraniano nos próximos tempos. “Não creio que os russos vão tentar tomar Kiev outra vez”, prevê Frank Ledwidge. “Teriam de recolocar forças em massa na região e neste momento não conseguem fazê-lo, já para não falar que as defesas ucranianas agora estão todas preparadas”. Um relatório preparado para o Congresso norte-americano no final de abril destacava mesmo que o exército russo está atualmente a recorrer a unidades que até então estavam colocadas no estrangeiro, como na Geórgia, e que poderá não ter capacidade de cumprir os seus objetivos sem “uma mobilização nacional e a chamada de homens na reserva”.
Também Odessa pode continuar a ser alvo de ataques por mísseis, mas não parece haver capacidade militar para um ataque anfíbio russo — ou seja, de forças navais a desembarcarem em terra —, porque teriam de “assegurar a retaguarda para lá de Kherson, tomando Mykolaiv”, segundo o antigo militar.
Mas nunca é possível esquecer que na guerra, por vezes, há surpresas, como recorda ao Observador Scott Boston, analista do think tank militar RAND. “A Ucrânia já demonstrou que é capaz de correr alguns riscos para conseguir vitórias visíveis”, diz, dando como exemplo a destruição do Moskva, o navio que foi afundado por um míssil ucraniano no Mar Negro. “Por outro lado, as forças militares podem falhar de forma gradual e depois de forma repentina. Não temos muita noção das limitações ucranianas — eles, de forma inteligente, têm mantido isso em segredo. Os problemas russos são mais visíveis, mas com uma operação ofensiva mais concentrada podem ir fazendo uma rotação das suas forças e evitar o colapso.”
O moral baixo das tropas russas pode não ser um fator tão decisivo que provoque surpresas tamanhas como alguns sugerem. “Não consigo pensar em nenhum precedente do género”, aponta Frank Ledwidge. “Até quando estavam a ser chacinados pelos finlandeses na Guerra de Inverno, não houve um colapso total dos russos.” A guerra está para durar.
A nova fase da guerra: conflito de trincheiras, com avanço lento, no Donbass
A diferença ao início do terceiro mês de guerra é que, em vez de tentar atacar pontos espalhados por todo o território, a Rússia está agora concentrada a leste, avançando pelo Donbass. O Institute for the Study of War, que analisa todas as movimentações das tropas do Kremlin, estima que os russos estejam agora a tentar chegar chegar a Slovyansk e a cercar as forças ucranianas naquela região, com as forças a avançarem para norte, a partir de Donetsk, e para sul, a partir de Izyum.
O antigo militar Ledwidge crê que os ucranianos cercados perto de Severodonetsk podem, contudo, aguentar esse cerco. “Os ucranianos andam a preparar as defesas de Severodonetsk há quase oito anos, já há muito que esperavam que isto pudesse acontecer e eles já demonstraram que são bons a assegurar a defesa”, explica ao Observador. “O problema para as forças ucranianas ali é que podem ficar sem capacidade de se movimentarem e ficarem mais sujeitos à artilharia russa.”
William Alberque diz que é difícil fazer previsões “em pleno nevoeiro da guerra”, mas destaca também a situação em Severodonetsk, e diz que é preciso estar de olho no que acontecer perto de “Lyman, Bakhmut e, possivelmente, em Sloviansk e Kramatorsk [mais a ocidente]”. “Se a Rússia for contida nestes locais há uma hipótese real de um impasse ou até de contra-ataques bem sucedidos por parte dos ucranianos”, aponta.
A evolução do conflito também dependerá, em grande parte, do apoio militar que o Ocidente decidir continuar ou não a prestar à Ucrânia. Recentemente, os Estados Unidos anunciaram que vão começar a fornecer ao exército ucraniano armas de maior alcance, como morteiros, e até tanques, adaptando o material à nova fase da guerra — que deixa de ser combatida em terrenos sobretudo urbanos e assume o caráter mais tradicional de trincheiras e linhas que avançam devagar. “Vai ser uma guerra muito lenta e feia, na qual as linhas da frente não se irão mover durante semanas”, previu ao New York Times um responsável da Casa Branca. Uma guerra “de atrito” ou de “desgaste”, portanto.
Se até aqui a Ucrânia necessitava sobretudo de material mais portátil e equipamento básico, agora necessita de equipamento mais pesado: “Artilharia, tanques, transportadores blindados, munições”, resume Alberque. Tudo com apoio aéreo, área onde a Ucrânia está mais desfalcada, como destaca Scott Boston: “A Ucrânia não tem esses sistemas. A defesa aérea russa tem tido um desempenho inferior ao esperado, mas eles ainda têm muitos desses sistemas, que podem afetar uma batalha sem ter sequer de sair da Crimeia, da Bielorrússia ou da Rússia.”
Ucrânia não aceitará acordo em que perde mais território — e, também por isso, a guerra está “para durar”
Para a Ucrânia contrariar esse poderio militar russo necessita, segundo Ledwidge, de uma vantagem “de três para um” — objetivo do qual ainda está muito longe. A única forma de conseguir chegar a esse patamar é se o Ocidente decidir investir ainda mais em apoio militar aos ucranianos, não apenas em material (como tanques Abrams ou Leopard), mas também em treino. “Não sei se o Ocidente quer fazer isso, mas é isso que é necessário para a Ucrânia vencer a guerra”, diz. Como? Primeiro aguentando os ataques russos, forçando-os a passar à defensiva e, depois, levando a cabo contra-ataques.
Mas um cenário em que, subitamente, Estados Unidos e Europa decidem inundar a Ucrânia com todo o apoio militar que precisa é, para este especialista, improvável. “Não quero soar cínico, mas os EUA, por exemplo, podem ter interesse em manter esta guerra como uma guerra de desgaste, para ir sangrando as forças russas. Para isso, basta os países da NATO irem enviando ajuda a conta-gotas: o suficiente para que a Ucrânia aguente, mas não o suficiente para que consiga contra-atacar e retomar território”, resume Ledwidge.
Não seria a primeira vez que uma guerra de atrito se arrasta. Há quem compare a situação atual com o exemplo da Guerra de Desgaste (1968-1970) entre o Egipto e Israel, “que deixou ambos os países com economias, exércitos e sociedades arruinadas”. Outros lembram que várias resistências populares a invasões foram capazes de aguentar situações como o Blitz alemão ou a guerra no Vietname muito para lá do esperado.
Se do lado russo o Kremlin não mostra quaisquer sinais de querer abandonar os seus propósitos na Ucrânia (e a população continua a apoiar o Presidente), do lado ucraniano Volodymyr Zelensky tem mantido os ucranianos galvanizados numa lógica de resistência — o que contribui para a previsão de que esta guerra está para durar. Kiev tem sublinhado que não tenciona perder qualquer território — arriscando por vezes dizer que quer reconquistar todo o Donbass e a Crimeia —, colocando a fasquia para o que considera como vitória elevada e recusando ceder a negociações ditadas pelos termos russos.
Os analistas militares consideram, porém, que Zelensky não tem outra alternativa. “Enquanto tudo está em aberto, podem e devem manter esta posição”, declara Alberque. “Sinalizar que estão dispostos a ceder sequer um centímetro de território teria um impacto terrível nas tropas, no moral e no espírito combativo da nação.” Scott Boston destaca que, embora “em tempos de guerra não haja sondagens”, parece claro que é essa a vontade da maioria da população ucraniana: “Porquê aceitar russos no seu território quando ainda não esgotaram todas as opções militares?”
Ledwidge crê, porém, que os objetivos de todo o Donbass e a Crimeia não são propósitos realistas para o governo ucraniano. “Creio que o objetivo estratégico deles nesta fase é regressar às fronteiras que tinham a 23 de fevereiro”. Contudo, ceder mais do que isso neste momento parece impensável: “Os ucranianos vão dizer ‘Para que serviu todo este sangue derramado se acabarmos a ceder território que o nosso Presidente disse que nunca ia ceder?’ Eles não têm outra hipótese se não alcançar os seus objetivos. E é por isso que, até que o consigam, esta guerra está para durar.”