“Desculpe, é verdade aquilo que disseram na televisão?” A pergunta é endereçada a Luís Dias por uma jovem que passa no jardim Afonso de Albuquerque, em frente ao Palácio de Belém. Sentado na relva, à sombra, resguardado com um blusão que contradiz o calor que se começa a sentir, Luís anui. “A sério? É mesmo? Olhe, muita sorte”, deseja a jovem. A rapariga haveria de voltar, minutos depois, com mais três amigos para pedir uma fotografia. “Podemos tirar uma foto consigo? É para o ajudar“, dizem.
Desde que foi tornada pública a sua greve de fome — vai no 27.º dia —, e que os jornais e as televisões lhe têm dado voz, os dias de Luís contêm episódios semelhantes a este. Com a exposição mediática, vai “ficando mais conhecido” e “têm vindo muitas pessoas” ter com ele, diz ao Observador, antes de perguntar se nos importamos que vá “dois ou três minutos” à casa de banho pública, a 100 metros de distância. O percurso demora-lhe mais do que isso, num passo vagaroso e frágil, como se pudesse desequilibrar-se a qualquer momento.
Há quase um mês que é naquele jardim que está das 8h às 19h, hora a que, até à terça-feira passada, seguia para o carro onde dormia. Desde esse dia, passou a pernoitar num hostel perto. São 25 euros a noite, um grande peso para o seu curto orçamento. O único rendimento que tem atualmente são os 400 euros de uma pensão de invalidez (é surdo desde os 12 anos), uma realidade muito diferente daquela que imaginou quando decidiu, em 2013, regressar a Portugal depois de um período de emigração em Inglaterra — país para onde foi fazer o doutoramento e por onde ficou como investigador na área da informática.
“A minha avó tinha-me deixado algumas terras em Idanha-a-Nova, mais concretamente em Salvaterra do Extremo, e eu tinha vários amigos em investir em quintas. Pensámos [ele e a companheira, Maria José] que era uma boa ideia investir, ali teríamos um vida mais sossegada e ajudávamos a desenvolver o país e a região, porque aquela zona é muito remota e pobre“, conta.
O objetivo era avançar com uma exploração na Quinta da Zebreira, que tem 17,5 hectares, dos quais dois teriam como destino a plantação de bagas de goji e quatro o cultivo de amoras. “Queríamos estender o trabalho ao longo do ano, para as pessoas [chegaram a ter oito funcionários] não trabalharem apenas dois ou três meses por ano, como acontece em Odemira. Assim, quando se acabasse, por exemplo, a apanha das amoras, passava-se para as bagas de goji e depois voltava-se outra vez para as amoras. Manteríamos sempre tudo ocupado ao longo do ano”, explica. Só que desde então que o caminho tem sido sinuoso, com sucessivas quedas nas amarras da burocracia, dos processos administrativos e dos relatórios sem fim, dos emails sem resposta e das respostas contraditórias.
Depois de dois temporais lhe terem destruído as colheitas, que nunca chegaram ao destino traçado (a exportação para Inglaterra), e de uma longa batalha contra o que diz serem os erros de entidades estatais, como a Direção-Geral da Agricultura e Pescas do Centro (DGAPC), Luís pede agora à Ministra da Agricultura: “Por favor ceda e peça à Provedora de Justiça que arbitre a questão. Nós desistimos do processo que movemos contra o Estado e o Governo concorda que seja a Provedoria a decidir [o valor de uma eventual indemnização]”. Só com essa indemnização, garante, será capaz de salvar a Quinta.
O Ministério considera, porém, que “não pode solicitar à Provedoria de Justiça para calcular uma indemnização de que não reconhece ser devedor”. Ao Observador, sublinha que já foi pedido um inquérito, mas mantém que as compensações relativas à tempestade só não foram pagas porque o pedido de Maria José [a titular] ainda não foi bem formalizado.
O caso de Luís Dias já foi falado várias vezes no parlamento, por intermédio do PAN, mas também do PSD, que esta semana recordou, em comunicado, que desde 2018 tem feito “perguntas regimentais” e questionado os governantes em audições na Assembleia precisamente sobre a Quinta das Amoras. “O PSD lamenta a incapacidade do Governo na resolução dos trâmites que originou a indesejável greve de fome”, escreveram os sociais-democratas. E a ex-candidata presidencial Ana Gomes também tem tentado pressionar o Governo e o primeiro-ministro, António Costa, nesta matéria, acusando-o mesmo de “dar cobertura à corrupção” na Direção-Regional de Agricultura do Centro.
Porq ministra @agricultura_pt não acaba com isto pedindo à Provedoria q calcule indemnização a pagar ao @LuisFDias72 ? Porq expõe Luís, País e Gov @antoniocostapm a este sofrimento? Há 26 dias?!! Porq dá cobertura a núcleo de #corrupção na DRAP-C q retalia contra quem o expôs? https://t.co/fcSdd3bJ2e
— Ana Gomes (@AnaMartinsGomes) June 4, 2021
Só que o impasse mantém-se. Ao seu lado, naquele jardim em Belém, Luís não tem mais do que uma pequena mochila e uma garrafa de água. Tem sobrevivido com suplementos — um de cálcio e magnésio (“100% a dose diária”) e outro de fósforo e multivitaminas. Já foi hospitalizado três vezes: uma delas, a segunda, quando perdeu “a sensibilidade nas pernas”. “Estava a dormir no carro, fiquei bastante assustado”. No hospital, a médica “mandou passar a pôr quatro pacotes de açúcar na água”. A terceira hospitalização, na terça-feira, porque “estava a ficar preocupado. “Isto está ficar perigoso, posso ter sequelas para a vida“. Mas como chegámos até aqui?
A catadupa de obstáculos: “Devemos ter incomodado alguém, para os problemas que tivemos…”
A longa batalha de obstáculos e burocracia começou logo no nascimento da quinta, em 2013, quando Luís e Maria José se candidataram aos fundos comunitários do Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), então PRODER. Enquanto o projeto das bagas de goji arrancou, Luís conta que não teve problemas. Os imbróglios começaram com o pedido de aprovação do projeto para o cultivo de amoras. “Aí… bem, parece que foi o inferno na terra“. Porquê? Luís não quer concretizar, mas acredita que o projeto possa ter “incomodado alguém”.
“A nossa quinta tem condições muito boas. Temos uma barragem inteira só para nós, são 17 hectares de regadio com pressão, nem sequer precisamos de bombas. Com água podemos fazer tudo o que queremos. As amoras são muito valiosas e, ao passo que o mirtilo e a framboesa são produzidas em milhares de toneladas todos os anos, em Portugal, as amoras não se produzem quase nada e têm muita saída. Eu penso que deve ter incomodado alguém, para os problemas que tivemos“, diz.
Que problemas? Ora, o projeto das amoras — que implicaria um apoio de 250 mil euros — só é aprovado mais de um ano depois, no final de 2014. E, argumenta Luís, “em condições completamente ilegais”. É que o casal foi informado, no início de 2015, pela DRAPC que seria obrigatória uma garantia bancária para que fosse firmado o contrato de financiamento. Essa garantia, “que não estava prevista no concurso”, “triplicava o nosso investimento e duplicava o valor do projeto“. Por outras palavras, além dos 250 mil euros do projeto, tinham de pagar a garantia bancária (de valor superior) e “mobilizar bens para assegurá-la”. “Ou seja, tínhamos de mobilizar, ao todo, 750 mil euros, em vez de 500 mil“.
Outro problema surgiu em março de 2015, quando Maria José e Luís ficaram a saber que a entidade que gere o PRODER passou a exigir que o contrato de financiamento só pudesse ser firmado depois de apresentada a garantia. Por outras palavras: a despesa que tivessem na exploração só poderia ser paga com fundos europeus depois de entregue a tal garantia bancária, o que obrigaria o casal a usar verbas próprias ou a pedir empréstimos bancários.
É uma “pescadinha de rabo na boca“, resume Luís. “Nós não podíamos fazer a garantia bancária. Fomos ao banco e explicaram-nos que, para haver uma garantia bancária, é preciso haver um contrato, só que nós ainda não tínhamos contrato porque não tínhamos garantia“. Ainda pediram à DRAPC um papel que pudessem entregar, como segurança, ao banco, mas o pedido foi recusado. Luís acredita que aquela entidade tutelada pelo Ministério da Agricultura “queria que o projeto fosse anulado”. Os advogados do casal apresentaram reclamações ao PRODER, só que a resposta ainda os deixou mais confusos, ao mencionar “projetos de cogumelos que nada tinham a ver connosco“.
Como o Público já tinha noticiado em 2016, a carta da gestora do PRODER dizia que o projeto do casal era considerado “de elevado risco” e tinha uma “forte probabilidade de incumprimento do plano empresarial”. A garantia bancária, explicava, estava a ser pedida a todos os projetos de produção de cogumelos Shiitake, que tinham recebido financiamento sob a promessa de uma elevada rentabilidade. Mas essa rentabilidade não chegou.
“Para tentar impedi-los [aos produtores de cogumelos] de aceder ao financiamento, porque sabiam que os projetos não eram rentáveis, informaram que tinham colocado a exigência das garantias bancárias de propósito para obrigar as pessoas a desistir”, acusa Luís, que não sabe porque recebeu aquela justificação (quando a sua produção nada tem a ver com cogumelos).
Em novembro de 2015, fez uma queixa ao Tribunal de Contas Europeu por suspeitas de corrupção. No parecer a que o Observador teve acesso, aquela entidade reconheceu que as informações enviadas “indiciam a possibilidade de ocorrência de irregularidades nas despesas da UE ou má gestão financeira”. Por isso, “foram transmitidas ao nosso serviço de auditoria competente nessa matéria”. A resposta informava ainda que “os nossos auditores irão analisar as informações e, sempre que adequado, utilizá-las-ão na programação de futuras atividades de auditorias”.
Esta semana, Luís Dias enviou nova questão, a perguntar pelas conclusões do serviço de auditoria. “Neste caso, tanto quanto é do nosso conhecimento, a equipa de auditoria que trabalha no domínio de intervenção não realizou uma auditoria ao projeto que mencionou“, lê-se na resposta. O TCE lembra que “não tem poderes de investigação nem pode instaurar ações penais” e que, por isso, o caso foi transmitido ao Organismo Europeu de luta antifraude (OLAF), que tem o poder de realizar inquéritos relacionados com abusos ou irregularidades relativos a fundos da UE”.
Luís refere que só quando o jornal Público noticiou o caso, em abril de 2016, é que foi revogada a exigência de garantias bancárias. “Só que entretanto estivemos meses à espera. Só recebemos a primeira tranche — e única, de 90 mil euros — em outubro” desse ano. “Já não fui a tempo de fazer as estufas. Já tínhamos a campanha preparada, estávamos a torcer para que a fruta aguentasse, mas veio a primeira geada e queimou a fruta toda”. A colheita de 2016 ficou perdida por essa via, mas Luís e Maria José mantiveram o pouco otimismo que restava: com os fundos, construíram as estufas para que o ano seguinte corresse melhor. E não deixaram cair o caso: fizeram queixa ao Ministério Público. Por essa altura, já tinham desistido do projeto das bagas de goji [de que Luís era titular] e apostaram as fichas todas no de amoras [em nome de Maria José]. Só que o inferno estava longe de terminar.
“Pensava que a minha vida tinha acabado”
Em dezembro de 2017, a uma semana da apanha da fruta, a tempestade Ana — a primeira a ser batizada em Portugal — arrasou metade das estufas da quinta da Zebreira. “Tínhamos feito aquele esforço todo durante os anos para manter a quinta a funcionar, tínhamos acabado de fazer as estufas um mês antes e não tínhamos capacidade para estar a reconstruir“, diz Luís. O casal perguntou à DRAPC se existia algum apoio a que pudessem aceder, mas a resposta foi negativa. “Tentámos por tudo arranjar dinheiro, pôr coisas à venda.”
A 1 de março, nova tempestade destrói a parte da quinta que tinha escapado. “Pensava que a minha vida tinha acabado“, desabafa Luís. Depois de duas tempestades seguidas, sem apoios à vista, foi preciso uma reportagem na televisão para lhes reavivar a esperança. “Estava a ver o noticiário e tinha havido um tornado no Algarve. O secretário de Estado estava lá e disse que iam acionar uma medida 6.2.2. Afinal, havia apoios!” A tal medida 6.2.2 garante apoios de reconstituição ou reposição das “condições de produção das explorações agrícolas afetadas por calamidades naturais, acidentes climáticos adversos ou eventos catastróficos” desde que “previamente reconhecidos por despacho do membro do Governo responsável pela área da agricultura“.
Luís e Maria José escreveram à DRAPC a pedir que desencadeasse os procedimentos para serem abrangidos. Os técnicos da DRAPC deslocaram-se à quinta, a 13 de março, e confirmaram uma destruição de 92%. Mas adivinhava-se nova batalha.
Segundo o relatório, “foi possível registar que dos 50 túneis, que ocupavam uma área de 4 hectares, apenas 4 não registavam danos estruturais significativos. Nos restantes 46 verificou-se que a cobertura de plástico se encontra totalmente destruída e que a estrutura metálica está significativamente comprometida“. Os danos levaram a que a plantação de amoras ficasse “desprotegida”, “tendo sido afetada por geadas, comprometendo a produção e, consequentemente, os objetivos da candidatura supracitada“.
Os técnicos referiam mesmo que “os danos verificados nas estufas aparentam ter sido originados por ventos muito fortes, sendo que a recuperação das estruturas não é viável face aos custos e dimensão dos prejuízos“. Mais: “Analisada a certidão do IPMA, verifica-se que ocorreram ventos fortes a muito fortes no local da exploração na noite de 10 de dezembro, associados a rajadas máximas superiores a 100km/h nos dias 10 e 11 de dezembro, e de 80 a 90km/h nos dias 01, 10 e 14 de março”, lê-se ainda.
Numa situação normal, após uma intempérie, o agricultor é responsável por comunicar a ocorrência de danos ao DRAP, que se desloca ao local para os confirmar, como sucedeu. Sempre que estes danos ultrapassem 30% do capital produtivo (por exemplo, das estufas), o DRAP deve informar o Ministério, propondo a abertura da medida 6.2.2. Se o ministro reconhecer a ocorrência de um fenómeno climático adverso é então aberto o respetivo concurso.
O problema é que a DRAPC não chegou a propor ao Ministério a abertura da medida. Os meses seguintes são de desespero para Luís e Maria José, que continuaram a trabalhar, e a investir, para salvar o que podiam. A tutela vai pedindo relatórios atrás de relatórios ao IPMA, que confirma a existência de ventos fortes danosos para a produção, e à DRAPC, que recusa a reconhecê-los como justificação para a atribuição do apoio, sem que nada tenha sido decidido a favor do casal de agricultores.
Os ventos destruíram a colheita, mas era preciso ter sido um tornado para que a DRAPC concedesse o apoio
Apesar do primeiro relatório dos seus próprios técnicos reconhecer os prejuízos na Quinta da Zebreira, nos relatórios seguintes, a DRAPC insiste que os estragos não são elegíveis ao apoio. Porquê? Porque argumenta que o IPMA nunca reconheceu a existência de um tornado, como aconteceu no Algarve, apesar de a entidade atestar que os ventos registados pudessem ter a mesma “eficácia de destruição”. Mas sem a palavra “tornado” no documento, as situações da quinta e do Algarve não eram, na ótica da DRAPC, equiparáveis.
Num relatório datado de julho de 2018, a DRAPC refere que com base nos documentos do IPMA a que teve acesso, “é nosso entender que a ocorrência identificada na Zebreira, de acordo com as informações até hoje disponíveis, não se enquadra no preconizado na portaria n.º 199/2015 de 6 de julho [a medida 6.2.2], dado que não tem características similares às dos fenómenos ocorridos no passado mês de Março na Região do Litoral Algarvio e na região da Zona Costeira do Município de Esposende, ambos caracterizados como tornados de classe F1 na escala de Fujita clássica e também pela sua escala relativa, dado que ocorreu numa única exploração“.
A questão, argumentam, é que o IPMA “não identifica o fenómeno climático da Zebreira como tornado de classe F1 na escala Fujita clássica”. Além disso, “o fenómeno climatérico adverso apenas foi reportado à DRAPC por 1 agricultora [Maria José], tendo assim uma escala reduzida“.
Só que o IPMA, numa carta dirigida à Provedoria da Justiça, em novembro de 2018, admite que, embora não tivesse dados que permitissem concluir pela existência de um tornado, os ventos registados de “100 km/h ou um pouco acima” podem ter “uma “eficácia de destruição” sobre estufas idêntica à de tornados de classe 1 na escala Fujita clássica, considerada no seu limite inferior (cerca de 118 km/h)”. Ainda assim, nada feito para o casal Luís e Maria José. Foi precisa a intervenção da Provedoria da Justiça para lhes mudar (um bocadinho) a sorte.
Ministro reconhece apoio — e novos entraves surgem
Perante a falta de resposta dos organismos públicos, o casal faz uma queixa à Provedoria de Justiça, que apela ao, então, ministro Luís Capoulas Santos para que reconheça o apoio. Segundo aquele organismo, “o cerne da questão” não se podia resumir à existência ou não de um tornado, mas à sua gravidade. E “não restavam dúvidas” de que a exploração tinha sido “atingida por um fenómeno meteorológico anormal, imprevisível e, sobretudo, de gravidade igual ou superior ao que atingira a região do Algarve e Esposende em março de 2018 e para a qual havia sido disponibilizado apoio financeiro”. Daí que o critério usado devesse ser o mesmo.
Capoulas Santos acede. Num despacho de maio de 2019, determina que a tempestade que atingiu a Quinta da Zebreira deveria ser reconhecida como “fenómeno climático adverso”, podendo candidatar-se à medida 6.2.2. O casal assim o faz, mas a candidatura demorou cinco meses a ser aprovada pela DRAPC. Tal só acontece em novembro, altura em que surgem dúvidas sobre como pedir o pagamento a título de adiantamento contra fatura. A dor de cabeça passa da DRAPC para o IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas). “O que estava estabelecido era que o IFAP pagava metade da reconstrução (120 mil euros), nós fazíamos metade do trabalho na quinta, depois davam-nos a outra metade e nós completávamos o resto. Mas perguntámos diversas vezes como era feito o pedido de adiantamento. Nunca nos responderam“.
Queixas, telefonemas, emails, mas a resposta não chegava. “As plantas não iam aguentar mais um ano. Tentei mantê-las vivas, mas sou só um. É complicado, são 4 hectares e 20 mil plantas. Nessa altura, submetemos a fatura para fazer o pedido de adiantamento das verbas, pelo sim pelo não, porque não podíamos aguentar mais tempo. Passado um mês, a fatura voltou para trás porque supostamente o pedido estava incorretamente preenchido. Tentámos perguntar como era. Nada. A nossa advogada foi ao IFAP, disseram que não estava ninguém para esclarecer“, explica Luís.
Quando a resposta veio, um mês depois, por email, continuou a não esclarecer o casal. Só no final de julho deram uma resposta mais concreta, mas as plantas “já estavam todas estragadas”. “Agora, não temos plantas, o sistema de rega está degradado e não temos dinheiro para pagar isto, porque não era suposto a quinta ter ficado parada quatro anos“. Ainda que o dinheiro do IFAP chegue, já virá tarde dado que não teriam o dinheiro que falta para a reconstrução ficar completa: “O que quer que receba vai ser penhorado pelo banco”, como já está a ser o salário de Maria José, professora.
Por isso, pedem uma indemnização arbitrada pela Provedora de Justiça — uma hipótese já levantada na carta que receberam daquele órgão. “Apenas nessa sede (judicial) poderá, eventualmente, vir a ser arbitrada uma indemnização capaz de ressarcir os danos decorrentes da recusa inicialmente assumida, e reiteradamente mantida, de concessão do apoio financeiro que seria imprescindível à recuperação da sua exploração”, admite a Provedoria.
Em comunicado, perante a greve de fome, o ministério da Agricultura “lamenta a situação” e diz que “continua empenhado, como sempre tem estado, em encontrar soluções, dentro do quadro legal e comunitário vigente”. Refere que, em outubro de 2019, foi aprovada “uma candidatura para restabelecimento do potencial produtivo da exploração agrícola, com um montante de apoio de 140.014,90€”. O problema, apontam, é que Maria José e Luís apresentaram “uma fatura sem que os trabalhos nela descritos tivessem, de facto, sido realizados, razão pela qual o organismo pagador não pôde proceder ao respetivo pagamento”. Uma explicação que Luís contesta.
Ministério não acha que deve uma indemnização
Contactado pelo Observador a este propósito, o Ministério da Agricultura diz que, para o pagamento dos apoios, Luís Dias escolheu uma modalidade que funciona da seguinte forma: é pago um adiantamento do valor dos “trabalhos/despesas elegíveis realizados”, “devidamente faturados, mas sem que o beneficiário tenha ainda pago ao fornecedor”. Ou seja, Luís poderia apenas pagar ao fornecedor depois de receber o apoio.
O problema que o Ministério identifica é que foi submetida “uma fatura que não tinha qualquer correspondência com trabalhos realizados, isto é, uma fatura falsa”, pelo que o pagamento não poderia ser feito. “Recorda-se que está em causa uma fatura no valor de 298.008,09€ relativa a artigos/serviços faturados e colocados à disposição do adquirente, significando isto que, à data da emissão da fatura (17.01.2020), deveriam estar repostas no terreno todas as estufas destruídas pelo alegado evento meteorológico”.
Ou seja, a fatura tinha um erro de preenchimento: referia-se a trabalhos realizados (que não existiram) quando deveria corresponder a trabalhos por realizar. Ao Observador, Luís mantém que esse erro só aconteceu porque, após vários pedidos de esclarecimento, não recebeu informação esclarecedora por parte do IFAP sobre como proceder.
Aquele organismo queria que Luís e Maria José submetessem uma nova fatura “com um descritivo que identifique que se trata de um adiantamento por conta de trabalhos a realizar”. Essa informação consta num email de fevereiro de 2020, mas Luís diz que continuou a levantar dúvidas sobre como, efetivamente e em termos operacionais, a fatura deveria ser submetida. “Falta esclarecer se devo dividir a fatura em 3 partes, devido à limitação de 30% do valor do adiantamento, ou se a mesma fatura pode ser reutilizada em sucessivos pedidos de adiantamento. Isto é importante, já que 95% da despesa refere-se à construção das estufas”, lê-se num email enviado por Maria José, a 6 de julho de 2020.
“É absurdo, nós começamos a tratar disto a 29 de novembro de 2019. E a 6 de julho de 2020 ainda não nos tinham dito como fazer“, desabafa Luís, ao Observador.
Além disso, há outra disputa: o ministro liderado por Maria do Céu Antunes diz que Luís Dias é titular de uma operação de investimento (a das bajas de goji, da qual acabou por desistir), “para instalação de Jovens Agricultores, contratualizada em novembro de 2013”. “No que diz respeito a esta operação, o Sr. Luís Dias não comprovou a execução financeira da mesma”, o que levou à revogação da aprovação e à instauração de um processo de “recuperação integral do montante do prémio à instalação de que beneficiou”. “Neste âmbito, não tendo o titular procedido à devolução voluntária do montante do prémio indevido, a decisão de recuperação encontra-se em contencioso.”
Já a propósito do pedido de indemnização, na resposta enviada ao Observador, o Ministério acrescenta que “não pode solicitar à Provedoria de Justiça para calcular uma indemnização de que não reconhece ser devedor”. “Sabemos da pretensão do Sr. Luis Dias e todos os elementos disponíveis no processo apontam nesse sentido, nomeadamente os sucessivos pretextos para a não submissão, em boa e devida forma, de um pedido de pagamento do projeto aprovado em outubro de 2019, no âmbito da medida 6.2.2, visando a reposição das estufas”, aponta o Ministério.
A tutela garante que “assumirá as responsabilidades indemnizatórias que (e se), em sede do processo principal interposto pela titular do processo, o tribunal apurar“. Ainda assim, “por uma questão de clareza e transparência”, pediu ao JurisApp (Centro de Competências Jurídicas do Estado), serviço da Presidência do Conselho de Ministros, “uma análise urgente de todo o processo para avaliar se deve ser outra a posição do Ministério da Agricultura“.
A tutela lembra que foi aberto um inquérito pela Inspeção-Geral da Agricultura à DRAPC e aos outros organismos do Ministério da Agricultura que estiveram envolvidos no processo, como o IFAP, para “o cabal esclarecimento dos factos”, não decorrendo, sublinha a tutela, de nenhum “facto concreto” identificado por Luís Dias. Foi solicitada “a máxima urgência” na realização desse inquérito. “Sabemos que as autoridades em causa desenvolveram diligências, das quais não temos conhecimento que tivessem resultado em qualquer procedimento criminal ou disciplinar”, acrescenta.
Para Luís isso não chega e diz que vai manter-se em greve de fome até ter uma resposta positiva do Ministério. Entretanto, já recebeu uma visita do Presidente da República, mas Marcelo Rebelo de Sousa “nem 20 segundos ficou”. “Eu estava deitado, abri os olhos e vi-o à minha beira. Ele disse qualquer coisa, mas tinha a máscara e não consegui perceber. Ainda tentei levantar-me e dizer-lhe que sou surdo, mas ele foi-se logo embora”, conta. Ali, em frente à residência oficial do Chefe de Estado, vai continuar durante o dia porque não sabe de outra forma para recuperar o que perdeu. Em tribunal, pede uma indemnização de 925 mil euros pela destruição das estufas e outra pelas perdas (que a DRAPC estima que sejam de 880 mil euros por ano). “O processo em tribunal pode demorar 10 anos. Mas nós não temos 10 anos“.