Durante o primeiro confinamento, em 2020, o fotógrafo Daniel Blaufuks começou a obrigar-se a escrever todos os dias. “Para tentar chegar a algum lado”, diz. Uma foto, um post. Uma Lisboa que já não existe. Dos cinemas nos Restauradores às noites do Frágil. Um sem fim de instantâneos digitalizados “dois ou três anos antes”, num inverno de muita chuva. Histórias resgatadas às memórias daqueles tempos durante a pandemia e agora negociadas sob a forma de livro. Se fosse escritor, diz, Lisboa Clichê (Tinta da China) seria um “romance”: a história de um jovem na cidade do final dos anos 1980, início dos 1990, as tropelias e aventuras, os amigos e o trabalho ao serviço do semanário O Independente, com muitos protagonistas da época e da narrativa do país.
Entre duas bicas cheias na esplanada do Galeto, um dos clássicos das Avenidas Novas, e de frente para uma Lisboa cinzenta e tapada por máscaras cirúrgicas, Blaufuks, de 58 anos, explica como as cerca de 400 páginas em formato de bolso são intencionalmente anárquicas (porque antes nos perdíamos muito mais), totalmente subjetivas (tivesse olhado para estas fotos na altura, a escolha seria outra), e muito menos nostálgicas do que parece (embora não haja nada de mal com a nostalgia). O seu tempo, avança o autor de Não Pai e Terezin, é hoje mais o da memória do que a descoberta, mas sobre a cidade, não tem dúvidas, é agora “mais livre”, “mais segura”, “ótima para se viver”.
Mudámos o sítio da entrevista (marcada para a pastelaria Versailles, do outro lado da Avenida da República) e perdi o arranque que tinha preparado para a entrevista. Ia começar por perguntar pelo telefone público vermelho, que aparece logo no início do livro, com o qual diz que tentavam convidar alguém para ir lanchar. Ainda existe?
Não, porque depois passou a ser um azul e hoje provavelmente já não existe nada.
Esta Lisboa que vemos no livro ainda é a sua?
Sim, mas não no sentido nostálgico. Não moro longe daqui e são espaços que me agradam. Sou muito sensível à luz dos estabelecimentos. E muitos dos sítios novos… O problema não é serem novos, é terem uma luz clínica, de hospital. Prefiro ir a um sítio onde se come um bocadinho pior mas com uma luz melhor. O [W.G.] Sebald, um escritor alemão sobre o qual trabalhei, fala daqueles sítios que têm “um flash eterno”. O Galeto, por exemplo, tem uma ótima luz. O [arquitecto] Victor Palla sabia o que estava a fazer.
Falando deste livro…
Cheio de luz!
O que quis fazer com este objeto?
Todas as fotografias, mais tarde ou mais cedo, tornam-se documentos. Nós mudamos, os sítios mudam, as roupas mudam. Estamos num tempo de transição da cidade de Lisboa. Houve — e ainda há — uma vaga de destruição, de novo-riquismo, em que o velho era considerado mau. Perdemos muita coisa em termos de património. Basta olhar para o outro lado da rua. Aquilo que agora é uma geladaria da Versailles era uma livraria muito bonita da Câmara Municipal de Lisboa. Mas também há uma Lisboa que mudou – não digo que seja para melhor ou para pior – e há pessoas a viver agora o que está neste livro.
Frágil: “A noite já vai longa e isto continua impossivelmente cheio. O senhor Carlos está lá ao fundo, será que dá para o apanharmos e lhe pedirmos uma bebida? Olha, aquele é o arquitecto Manuel Graça Dias (1953-2019), que desenhou o Casanostra, o restaurante italiano, tão bonito. E estão ali o Álvaro, e a Isabel Peres, o Miguelinho Ribeiro Soares, e o Luís Matos, que irá fazer documentários no futuro, e aquele rapaz de quem nunca me lembro do nome.”
“A Joana Bagulho na Pastelaria Versailles, num fim de tarde de inverno, falando ao telefone público vermelho, que funcionava com moedas de 2$50 (vinte e cinco tostões) e com o qual tentávamos convidar alguém, que não vivesse muito longe e que, por acaso, estivesse em casa para atender, a vir lanchar connosco.”
Cavaco Silva, à saída da reunião semanal de quinta-feira com o Presidente da República. Símbolo, lê-se, de “um Portugal tacanho, conservador e preconceituoso, de muitas ambições e poucos escrúpulos”.
E o que está neste livro?
Chamar-lhe-ia liberdade. Mas que é próprio da idade. É a minha cidade entre 1987 e 1994, numa altura em que trabalhava no [semanário] O Independente, vista a partir de hoje. Daí a fotografia a cores na capa, do sítio em minha casa onde digitalizei as imagens e trabalhei o livro. Só me lembro que a foto foi feita no dia em que o Julião Sarmento morreu [4 maio 2021]. Se tivesse olhado para estas fotografias naquela altura, não as teria escolhido nem teria esta leitura. Também não era a pessoa que sou hoje.
É uma experiência quase intimista.
Se eu fosse um escritor, isto seria um romance: mais simples, mais atraente. O que faço nos outros livros são ensaios.
E que história conta esse romance?
A história da Lisboa naqueles anos, e de um jovem que vive essas tropelias e aventuras.
Bares, restaurantes, noite, cinemas…
Era a vida que eu levava e que ainda levo, menos os bares.
Porquê esta ordem pouco convencional, em que nem sequer há números de páginas?
Antes de termos o GPS, antes de termos os iPhones, perdíamo-nos nas cidades. E eu quero que o leitor se perca neste livro e que volte várias vezes a ele.
Mas há uma ordem.
Não é um livro de fotografia tradicional; é a construção de um livro como um fluxo quase cinematográfico. Daí ter autorretratos e fotografias que me tiraram, porque eu queria que houvesse um personagem. Na apresentação do livro chamei a isto, com alguma ironia, uma auto-fotobiografia.
A mim pareceu-me um diário de viagem através dos tempos e, a dada altura, um relato quase arqueológico. Por exemplo, logo no início, quando comenta a pasta e a camisa de um homem que vai a passar na rua. Surpreendeu-o a cidade que encontrou neste processo?
A fotografia desse senhor ganhou interesse com a passagem do tempo: ganhou informação, ganhou movimento. Dentro do cânone da fotografia, não é uma fotografia boa. Também há outra coisa que mudou: hoje, todos temos máquinas fotográficas no bolso; todos temos uma espécie de olhar fotográfico, seja ele qual for. O que é hoje uma boa fotografia?
Também fotografa com o telemóvel?
O que importa não é aquilo com que se fotografa; é o como. Hoje fotografo pouco com filme. Nunca quis ficar agarrado a tecnologias que elas próprias já são memória. O material não se pode sobrepor ao trabalho. O que aqui se vê é apenas uma extensão daquilo que eu vejo no cérebro.
O que é o que surpreendeu mais nas imagens que encontrou?
Entre o livro do Palla e do Costa Martins e este não se fez praticamente nada do género. Quando olho para o Lisboa, Cidade Triste e Alegre, apesar de eles serem os dois arquitetos super modernos, aquilo que está ali retratado é uma Lisboa em desaparecimento: Mouraria, Alfama… O ambiente é o de uma cidade dos anos 20, 30. Quando comecei a ver as fotografias deste meu livro senti um ambiente de anos 50. Há uma décalage de décadas nos dois livros que é muito estranha.
Sentia-se mais moderno do que aquilo que vê aqui?
De certeza. Isto também corresponde aos meus anos de descoberta de Lisboa, porque vivi na Alemanha entre 1976 e 1984.
Chegou numa época incrível para a cidade de Lisboa, em que há muita gente com vontade de fazer coisas fora da política partidária, que já sentiam como sufocante.
Quando as pessoas minimizam o [bar] Frágil e o Manuel Reis, eu penso: “o Frágil libertou imensas cabeças”, quer tenhamos entrado que não.
Ainda assim, e muito por ser tão reservado, o Manuel Reis, um homem que teve uma importância tão extraordinária na evolução da cidade, não só pela criação do Frágil, arrisca-se a ser esquecido.
O Frágil era o sítio onde podíamos ser o que quiséssemos, não sendo menos pessoa por isso. Gay, hetero, aparecer com um vestido da avó. Foi o primeiro sítio assim em Portugal.
Aquilo a que hoje se chama um “safe space”.
Complemente “safe”. E onde sentíamos que tínhamos uma família. Isto era um país e uma cidade muito conservadores. As pessoas esquecem-se muito rapidamente. Só no Bairro Alto é que isso não acontecia. Lembro-me de receber amigos de fora, que ficavam muito espantados: “mas conheces toda a gente”. E de facto conhecia. Éramos uma tribo.
Também eram sempre os mesmos.
Também era isso que nos aborrecia. Era um circuito fechado.
Diz no livro que trabalhava no Frágil. A fazer o quê?
A servir bebidas. Já era cliente e precisava de dinheiro. Queria financiar o curso de fotografia no Ar.Co. Estudei Gestão na Alemanha. Quando vim para cá, trabalhei com o meu avô numa empresa de importação de fita de aço de mola, usada, por exemplo, em soutiens, guarda-chuvas, kicks de motas. Depois zanguei-me com o meu avô, fui para o Porto trabalhar na Gustavo Tudel, de novo em importação. (A coisa correu mal quando o senhor Tudel me disse o salário, que era incrível. Eu não queria aceitar, não queria sair de Lisboa, mas era impossível dizer que não.) Felizmente, depois houve um senhor que quis abrir em Lisboa uma empresa concorrente e contratou-me em part-time. Foi nessa altura que trabalhei no Frágil, enquanto fazia o curso do Ar.Co e pantomima na Rua Augusta. A dada altura, começa O Independente, onde fui parar porque conhecia o Jorge Colombo, que era o gráfico [diretor de arte].
“As janelas d’ O Independente, na Rua Actor Taborda. A redação do jornal ficava por cima do cinema Cinebolso, onde, ainda há pouco tempo, um cinéfilo faleceu, com um ataque de coração, enquanto assistia a uma projeção de um dos habituais filmes pornográficos, que sempre foram a programação deste cinema. Aqui, alguns de nós, decidiram fazer uma surpresa à nossa Inês Gonçalves, minha colega e amiga, com quem construí a imagem fotográfica do celebrado caderno 3 do jornal, nos primeiros dois ou três anos da sua existência.”
“Duas crianças brincam no Jardim da Estrela. Quando esta fotografia foi publicada, num jornal das Festas da Cidade, que fiz com o Luís Miguel Castro, teve direito a uma celeuma e a discussão entre deputados na Assembleia Municipal, por causa da alegada violência nela fotografada. Eu, pela parte que me toca, só vi, e ainda só vejo, dois amigos a brincarem.”
“A estação de serviço e oficina da Citroën, na Avenida Defensores de Chaves, onde hoje é uma entrada do supermercado Continente.”
Muitas das pessoas que aqui aparecem já morreram. Como é que se lida com a transitoriedade, como todas estas perdas?
Mas a nossa vida é uma vida de perdas.
“A vida é sempre a perder”, como diziam os Xutos?
Não há hipótese. Posso estar a dizer um disparate, mas sempre tive a sensação de que em Portugal “nostalgia” e “melancolia” são vistas como más palavras. Eu já venho da perda, por causa da história da minha família – refugiados judeus que vieram para Portugal antes da II Guerra Mundial. Depois, o “Não Pai” ainda fala de outra perda [do pai]. E depois os amigos que desaparecem, as cidades que desaparecem. Maiores ou menores, todos sofremos perdas e sentimos alguma nostalgia da nossa infância. Não é grave. Não podemos é ficar por lá. O passado não era melhor. Talvez fosse melhor para nós, que éramos mais novos.
A dada altura cita o George Bernard Shaw e diz que a juventude é desperdiçada nos jovens.
Se tenho alguma saudade? Claro que sim. Gostava de ter 20 anos. Mas não tenho saudades da cidade como ela era. Posso ter saudades de alguns sítios. São partes de nós. Fiz há uns anos uma exposição que se chamava “Houve um tempo em que estávamos todos vivos”. Também isto é verdade. Se eu soubesse escrever este livro em palavras, seria um grande escritor.
E porquê este interesse pela memória, um tema a que se dedica há tantos anos?
Sem memória, estamos destinados a cometer os erros do passado. Na Alemanha, Hitler chegou ao poder com uma minoria, porque a esquerda não se soube unir e muito ajudado por uma nova tecnologia, que é a rádio. Não querendo traçar paralelos, em relação ao Trump e ao Bolsonaro, do que é que se falou? Do Whatsapp e das redes sociais.
O Hitler também era muito ridicularizado pela imagem e pela maneira de falar.
E isto também vale para a nossa vida. Há pessoas quem cometem sempre os mesmos erros. Por um lado, é humano. Por outro, em sociedade, há coisas que podemos aprender em conjunto. Portanto, para mim, a memória é sempre política.
Ainda assim, grande parte do seu trabalho é muito pessoal. Podia optar por um registo mais distante.
O meu trabalho é, com exceções, aquela esquina onde a memória pública encontra a memória privada. Precisamos de histórias pessoais, mas que abranjam a história do mundo, para nos reconhecermos nela. Se lermos que morreram 300 pessoas no Iraque, isso não nos diz nada. Mas se lermos a história de uma destas 300 pessoas e da sua família, isso toca-nos. Com os meus avós, penso que estou a contar a história de todos os refugiados, mesmo dos sírios ou dos afegãos. Também é importante os artistas trazerem o arquivo para os museus, de forma a alcançarem novos públicos e pô-los a pensar sobre isso.
E olhando do passado para o hoje, o que mudou?
Lisboa era uma cidade horrível, mas maravilhosa. Da mesma forma que vou sempre achar a Havana toda destruída muito mais bonita do que a atual, que está a ser reconstruída. Se calhar quem lá vive não tem a mesma opinião. Hoje, Lisboa é um sítio ótimo para se viver.
Ainda fotografa Lisboa?
Menos. Sinto que já não é o tempo da descoberta; é o tempo da memória. Cada um de nós cria a sua própria cartografia. Passamos por um sítio e lembramo-nos das coisas que aí vivemos, mesmo que de forma involuntária. Não sei se é bom ou mau vivermos a vida toda numa cidade, porque de facto criámos um campo minado: ali foi a última vez que vimos determinada pessoa; ali foi o sítio onde demos o primeiro beijo. Mesmo que não seja consciente, estamos sempre a ver o passado. Neste momento, aqui, estão presentes todas as vezes que viemos ao Galeto. Os meus problemas com Lisboa não têm a ver com a cidade em si mas com a mentalidade.
Como assim?
Ainda vivemos num país com imensos restos de uma mentalidade de classe. Querer ser aquilo que não é. O que mais me irrita em restaurantes, por exemplo, é quando se paga muito e o serviço é mau e a comida é a armar. Prefiro muito mais uma tasca honesta. Mas hoje o que se faz é destruir a tasca para construir uma coisa parecida e chamar-lhe, “tasca gourmet”.
No livro, a propósito de uma foto do incêndio do Chiado em que se vê os bordos do negativo, também refere a ideia do digital como um suporte em que não há erro. Este livro chama-se “Cliché”, que significa “instantâneo”. Essa ideia do que é um instantâneo também mudou.
E todas as redes sociais são muito isso. Aquela frase que existe em português e que é muito bonita: “É para inglês ver.” Eu gosto de coisas genuínas.
Então e hoje não há nada que o entusiasme em Lisboa?
Há. Uma vida incrível. A mistura de pessoas vindas de várias partes do mundo é o melhor que aconteceu em Lisboa. Trouxe uma efervescência, programações culturais diferentes, “sub-sub-culturas”. Não temos a alegria espanhola, nem o savoir vivre italiano, nem o amor pelo corpo dos gregos, embora sejamos civilizações aparentemente parecidas. Talvez por isso nunca tenhamos tido uma guerra civil, como Espanha teve, não tenhamos os problemas nacionalistas de Itália…
Temos menos paixão.
Temos menos paixão em tudo. O que também tem coisas boas. Mas não tenho dúvidas de que começámos a ficar mais alegres desde que começaram a chegar os brasileiros e estamos mais interessantes desde que temos a [Avenida] Almirante Reis cheia de outras culturas.
O livro acaba com o poema do Cesariny, “Pastelaria”. Porquê?
Porque adoro. E o que é bonito para mim é que ele diz: “nem a crítica de arte nem a câmara escura” [“Afinal o que importa não é a literatura/ nem a crítica de arte nem a câmara escura”] Isto está escrito, salvo seja, para mim. Teria usado o poema na mesma sem esse verso. Há 15 anos ninguém dizia nada em Portugal; bebia o leite azedo e não reclamava. [“Que afinal o que importa é não ter medo/ de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo!”]
Acha que isso mudou?
Acho que sim. Hoje há mais coragem, uma consciência de direitos. Quando cheguei da Alemanha, o que mais senti em Lisboa foi que quando se olhava para as pessoas elas baixavam os olhos, sobretudo as mulheres. Na Alemanha as pessoas olhavam de igual para igual. Em Itália a mesma coisa. Senti que isso traduzia um lado de servilismo, de cautela católica e recato. Talvez também representasse medo das raparigas, que os rapazes depois fossem importuná-las.
E a Lisboa pandémica?
Durante os confinamentos, Lisboa parecia a dos anos 80: triste, vazia, muitos sítios fechados. Nos anos 80 o fascínio da cidade também era que havia muitos sítios fechados e podres e a cair.
Há pouco descreveu a cidade como “horrível mas maravilhosa”. Já o Victor Palla e o Costa Martins diziam “triste e alegre”.
Não me tinha lembrado disso. Mas tenho de dizer que dentro deste contexto sempre me senti um privilegiado. Pude mais ou menos fazer o que quis. As cidades também são vistas do nosso ângulo: de onde vimos, do dinheiro que temos, do que podemos e do que não podemos.
Sob a forma de exposição, “Lisboa Clichê” estará patente no Pavilhão Preto do Museu de Lisboa entre 21 de Janeiro e 27 de Fevereiro de 2022