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A mulher que se reinventa

Hillary Rodham Clinton reinventou-se em quase tudo, exceto no objetivo que agora assume: a Presidência dos Estados Unidos da América.

Por esta altura serão poucos os que não sabem a resposta, mas para efeitos burocráticos despache-se já a questão: Quem é Hillary Clinton? Na mini-biografia autorizada pelo Twitter está o resumo modernaço de uma vida: “Mulher, mãe, advogada, defensora dos direitos das mulheres e das crianças, primeira dama do Arkansas, primeira dama dos Estados Unidos, Senadora, secretária de Estado, autora, dona de cães, fã de calça-casaco, quebra-barreiras.”

Mas a resposta tem de ser maior do que essa. A resposta pública, de escala internacional, cruza mais de duas décadas e começa a contar-se em 1991, quando um jovem governador do Arkansas anunciou a candidatura à Presidência dos Estados Unidos. O pretendente era Bill Clinton, casado com Hillary Rodham Clinton, ambos formados na elitista escola de direito de Yale e orgulhosos representantes da geração baby boom. Este pormenor é suficientemente importante para merecer destaque, tendo em conta que os nascidos durante o pós-guerra eram a face da América moderna: tinham lutado contra a guerra do Vietname, tinham vencido a crise de Watergate e tinham crescido numa época de amplos apoios governamentais, gozando do maior período de expansão económica alguma vez vivida pelos americanos.

Talvez pudesse ter ficado em casa, a cozinhar biscoitos e a bebericar chá. Mas não.
Hillary Rodham Clinton, sobre a sua carreira

O casal era também a face renovada dos democratas, o lado esquerdo da política americana que queria vencer a herança do reaganismo usando as mesmas armas da concorrência. E foi assim que Bill Clinton, sulista, elitista e liberal se lançou à conquista da nação, contra um George Bush Senior desgastado por uma promessa não cumprida que ficou marcada pela frase “Read my lips: no more taxes.”. A isto, Bill Clinton contrapôs o slogan: “It’s the Economy, stupid”, para representar a exigência do regresso ao crescimento que se tinha reduzido graças à primeira guerra do Iraque. A estratégia foi acompanhada de uma campanha moderna que projetou o ambicioso casal para a ribalta. Já nas campanhas do Arkansas a independente Hillary Rodham tinha aceite colocar o nome do marido, passando a Hillary Clinton para satisfazer os críticos conservadores.

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A primeira vez que se apresentou ao país foi logo à defesa, no ‘60 Minutes’: Genniffer Flowers anunciou ter sido amante do candidato e Hillary apareceu ao lado do marido para combater a acusação, vestida de verde água, com uma bandolete e uns óculos ao pescoço que amoleciam o discurso assertivo: “estou aqui sentada porque o respeito e o amo”. Logo no início da campanha um inocente Bill Clinton respondeu de forma ligeira a uma pergunta sobre o peso que a mulher teria na presidência, dizendo que Hillary tinha tanto peso político que na prática votar nele era o mesmo que “comprar um [presidente] e ter outro de graça”. Depois foi forçado a esclarecer que seria ele a mandar, mas o tom estava dado. Já nessa altura Hillary dividia opiniões entre os que ansiavam uma primeira-dama que fosse mais que uma peça decorativa da Casa Branca e os que temiam uma radical feminista livre para influenciar o principal político da nação. A esse nível, pouco mudou.

O público americano está farto de mentirosos e de pessoas que se querem fazer passar por aquilo que não são.
Hillary Rodham Clinton, sobre a honestidade na política

Mas mudou tudo o resto. Hillary entendeu a política como poucos e os oito anos na Casa Branca revelaram uma mulher feroz e capaz de reinventar o papel de mulher do Presidente. É importante recordar aqui que a última ocupante do posto de mulher do “Commander-in-Chief” era Barbara Bush, a avozinha que fazia tartes para os netos e que nunca tinha trabalhado na vida – e foi a este estereótipo que Hillary contrapôs uma lutadora sem medo de dar a cara por causas. Nem um ano depois da eleição que pôs os Clinton na Casa Branca, já Hillary liderava a equipa nomeada pelo presidente Clinton para reformar a saúde norte-americana.

A batalha foi perdida no congresso, não sem criar grande azedume entre democratas e republicanos, enfurecidos por uma primeira-dama tecnicamente muito sólida mas incapaz de criar compromissos – e com um jeitinho especial para jogar nos corredores de forma a torcer as regras instituídas. Começou aí o desporto preferido dos conservadores americanos nos últimos vinte anos: o “Hillary bashing”, que se pode traduzir por qualquer coisa como “pancada na Hillary”, usando-a como causa de todos os males da nação americana. A estratégia teve logo efeitos, pois os democratas perderam o controlo da câmara baixa nas eleições intermédias pela primeira vez em quarenta anos.

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Afastada da política interna pelo próprio partido, rapidamente Hillary buscou um papel interventivo nas relações internacionais e logo em 1995 levantou bem alto a bandeira da defesa dos direitos da mulher. Em plena assembleia da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, num discurso pensado para irritar a metade do mundo que vê a mulher como não-igual, a primeira-dama americana afirmou “Se há uma mensagem que tem de ecoar desta conferência, que seja esta: de uma vez por todas que se perceba os direitos das mulheres são direitos humanos e os direitos humanos são direitos das mulheres.” A partir de 1996 foi obrigada a manter um perfil mais baixo por causa das exigências da reeleição do marido, que acabou por ser um passeio: contra um Bob Dole incapaz de dar luta a uma economia pujante e um Ross Perot que dividiu eleitores, o casal Clinton foi reeleito com tranquilidade.

Dois anos depois, viveu o momento mais duro da sua carreira pública, atacando os republicanos devido à suposta “conspiração de direita”. A causa: Monica Lewinsky, a estagiária que teve um caso com o Presidente e que abalou o casamento norte-americano. Bill mentiu a toda a gente, incluindo à mulher, antes de assumir a verdade – forçado pela mancha no vestido azul de Lewinsky que não deixava dúvidas biológicas quanto à origem. Clinton, o homem, saiu do caso com a popularidade arrasada; Clinton, a mulher, obrigada a contrariar a sua natureza independente e a ficar ao lado do marido em nome do futuro comum, ganhou o respeito das mulheres americanas. Num interessante sinal dos tempos, a imprensa liberal americana acusou a outrora feminista radical de trair os seus ideais por fidelidade ao presidente – mas os índices de popularidade bateram o recorde até hoje. E terá sido esse o definitivo momento de viragem, aquele em que Hillary voltou a ser Rodham e a mulher a quem muitos anteviam um futuro brilhante decidiu tomar em mãos o destino do próprio futuro.

Se amas alguém, não o abandonas. Ficas e ajudas.
Hillary Rodham Clinton, sobre o caso Lewinsky

Mudou-se discretamente para Nova Iorque e começou a construir aí, em definitivo, o seu caminho político independente do marido. Na corrida ao congresso do ano 2000, ganhou facilmente o lugar a partir do estado de Nova Iorque – e mereceu a credibilidade conquistada graças ao trabalho produzido nos dois mandatos no Senado. Trabalhou, fez pontes com os republicanos, ajudou a resolver problemas legislativos e começou a impressionar os lobbies que permitem que a política americana nade num imenso oceano de dinheiro onde quem não acede a uma fortuna não se pode candidatar a quase nada.

Acima de tudo, Hillary passou uma imagem de extrema competência aos seus 99 colegas senadores, a um tempo dominando os dossiers e os corredores do poder. Na resposta ao 11 de setembro, como quase toda a nação americana, começou por apoiar as ações militares no Afeganistão e no Iraque. Distanciou-se depressa da campanha de terror de Bush e aceitou publicamente que se enganou ao ter votado a favor das ações militares. A expiação da culpa não foi suficiente para um Partido Democrata que preferiu escolher um outro senador, igualmente trabalhador mas desde sempre contra a guerra no Iraque: Barack Obama.

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Hillary perdeu a nomeação democrata para Barack Obama, que lançou um discurso de esperança capaz de contagiar a nação. Os estudos eleitorais mostravam bem o problema da ex-primeira-dama: o discurso passava melhor nos mais velhos, deixando os sub-40 para o dinâmico Obama e a sua política ativa no Facebook e no Twitter, que mostrou-se mais capaz de sensibilizar os delegados partidários. A luta deixou marcas mas quem sabe lamber as feridas recupera depressa. Hillary voltou a mostrar o seu instinto político apurado ao aceitar ser secretária de Estado de Barack Obama – mais do que isso, ao ser uma secretária de Estado leal. Jogou todo o peso político que tinha dentro do Partido Democrata para por toda a gente a ajudar Obama, influenciou e sensibilizou líderes republicanos para as políticas-chave do presidente, deferiu ao chefe da nação sempre que necessário e deixou-o brilhar.

Puxou a grande finança para as relações internacionais em cenários como a feira de Shangai, não deixando de mostrar grande sensibilidade na distribuição das embaixadas às famílias certas. Visitou mais países que qualquer outro ocupante do seu cargo, cultivou relações de forma inteligente e deixou boas impressões nos aliados, que lhe granjearam o respeito internacional. Foi capaz de se mostrar adepta do smart power que troca o poder militar pela influência económica e cultural, abrindo caminho em dossiers sensíveis como o Afeganistão, as políticas ambientais, as relações com o Irão, o ataque a Bin Laden e a destruição de Gaddafi. E soube, depois de tudo, sair a tempo. Abandonou o cargo quando Obama foi reeleito – mostrando mais uma vez um pragmatismo político notável que lhe permitiu distanciar-se discretamente do presidente democrata e começar a construir o caminho para a nomeação democrata.

Se eu quiser tirar uma notícia da primeira página, só preciso de mudar o meu penteado.
Hillary Rodham Clinton, sobre o seu impacto mediático

Hillary conseguiu desmontar, um por um, todos os estereótipos que se lhe colaram ao longo da carreira. Passou de extremista incapaz de fazer compromissos a negociadora tranquila, de espalhafatosa a sólida, de carreirista a mulher de causas, de feminista empedernida a mulher de família respeitável, de combatente isolada a lobbista inteligente, de corredora solitária a jogadora de equipa. Mais do que isso: numa reviravolta tipicamente americana, passou de uncool a cool. E isso abre-lhe o caminho dos mais novos, sem ter nunca perdido os mais velhos. Como tem as mulheres do seu lado e consegue agora cruzar barreiras geracionais, tem tudo para ser uma candidata formidável.

No último ano andou a caçar talentos na Casa Branca de Obama, de onde os bons nomes já saíram para entrar no bilhete Clinton 2016. Andou também a fazer a corte ao grande capital de que vai precisar para lançar uma campanha de mais de dezoito meses. Quando se apresentar ao partido vai concorrer com a base aliada que lhe resta de 2008 a que se soma a base do presidente eleito, o que é mais do que suficiente para arrumar a questão da nomeação democrata. Daí até à Casa Branca, não como membro da orquestra mas como solista, vai um enorme passo – que não está de todo garantido.

Tenho um milhão de ideias. O país não aguenta com elas todas.
Hillary Rodham Clinton, sobre a sua motivação

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