A ironia desta hecatombe era difícil de prever: o mesmo Bloco de Esquerda que começou a campanha a eleger a maioria absoluta do PS como a sua grande inimiga acabou derrotado por um PS absoluto que já não acreditava ser possível. Com esse PS absoluto veio uma noite de derrota histórica para o Bloco: a pior votação em vinte anos, com o número mais baixo de votos desde 2002, e um rombo maior do que o que sofreu após a queda de José Sócrates.
Sem fatores de redenção que compensem as perdas, a análise da derrota do Bloco tornou-se fácil de fazer, como o próprio partido reconheceu. Não havia qualquer ambição de crescer, nem as sondagens ofereciam qualquer esperança de aumentar a bancada. As fasquias assumidas (e de forma insistente) em campanha eram outras três – e mesmo assim falharam todas. Primeira: manter o terceiro lugar, ficando à frente do Chega; segunda: assegurar uma maioria de esquerda em que ganhasse relevância; terceira, decorrente dessa segunda: voltar à mesa de negociações com o PS e forçar um “contrato de ferro” com medidas à esquerda, uma espécie de geringonça 2.0.
Ora, logo com as primeiras projeções mostradas nas televisões do Capitólio, em Lisboa, ficava claro que o primeiro objetivo era impossível: em cenário algum o Bloco surgia à frente do Chega – ficou em quinto lugar em percentagem e sexto em número de deputados, com apenas cinco mandatos – e se isto constituía uma derrota moral e ideológica, também indiciava o resto da hecatombe bloquista, uma vez que era a pista que faltava para perceber as perdas do Bloco nos círculos em que costumava ser o único partido além de PS e PSD a eleger.
Os gritos de “não passarão!” que foi repetindo nas ações de campanha, a visita ao bairro do Jamaica ao lado da família Coxi, o discurso do fundador e historiador Fernando Rosas a colar André Ventura a Salazar em Almada, “terra de resistência e liberdade”, de pouco ou nada acabaram por servir nas urnas.
As perdas foram-se confirmando até só restarem cinco eleitos do Bloco, cinco dos 19 que tinha conseguido eleger em 2015 e 2019. Ao mesmo tempo, nas mesmas televisões que simpatizantes e militantes olhavam com apreensão, crescia a maioria do PS até se tornar absoluta. Com ela, e sem uma votação que forçasse o PS a olhar para os partidos à esquerda e a negociar, falhavam os outros dois objetivos: nem a maioria de esquerda era útil, nem o serão as reuniões no “dia seguinte” às eleições para as quais Catarina Martins convidou Costa durante toda a campanha.
Numa noite que teria sido mais longa tivesse o Bloco conseguido lutar com mais afinco pela eleição dos últimos deputados, Catarina subiu ao púlpito pelas dez e meia da noite (no fuso horário das noites eleitorais, bastante cedo) e, aplaudida de forma efusiva pelos militantes e simpatizantes, admitiu as derrotas todas. Uma: “Cada racista no Parlamento é um deputado racista a mais”. Duas: “O PS terá maioria absoluta, ao que tudo indica”. E três: ler o segundo ponto outra vez, sem mais.
As razões, que o Bloco dissecará numa reunião da Comissão Política marcada para segunda-feira, também foram resumidas a partir do púlpito: o apelo ao voto útil do PS – ou, nas palavras de Catarina, “a chantagem ao país” – tramou a esquerda. E como é que o PS conseguiu ser tão eficaz? A resposta, sugeriu, está nas sondagens, as mesmas por que o PS mas também o Bloco se guiaram na campanha, adaptando o discurso, anunciando que a maioria absoluta era um fantasma que se tinha “esfumado” e “finado” (palavras de Catarina Martins) e acreditando que Rui Rio estaria perto de derrotar António Costa – e essa é uma reflexão que, disparou, “BE e comunicação social terão de fazer”.
A outra possível causa não foi puxada por Catarina Martins, mas por um jornalista, e tinha a ver com os efeitos do chumbo do Orçamento do Estado. “Sabíamos que tinha riscos eleitorais”, concedeu, “mas não mudamos de convicções como quem muda de camisa. Não passamos a achar, por haver maioria absoluta, que o Orçamento era bom”.
Seria a repetição do filme do pior trauma eleitoral do Bloco, se não fosse ainda pior. Não há quem no Bloco não saiba o que significa o fantasma do PEC IV – o programa do Governo de José Sócrates que o BE ajudou a chumbar, ajudando à queda do Executivo, ao que se seguiria o Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas.
Na altura, fizeram-se as eleições antecipadas de 2011 e a bancada do Bloco mirrou para metade. Desta vez, caiu o Governo de Costa às mãos da esquerda e o grupo parlamentar emagrece ainda mais dramaticamente: serão apenas cinco deputados – dois em Lisboa, Mariana Mortágua e Pedro Filipe Soares; dois no Porto, Catarina Martins, José Soeiro; e uma em Setúbal, Joana Mortágua.
São todos do núcleo duro do partido, todos com experiência – Pedro Filipe é líder parlamentar e tal como Catarina entrou em 2009, Mariana em 2013, Soeiro já é deputado desde 2005, Joana desde 2015, todos com o treino particular dos tempos de geringonça e todos exceto Soeiro fazem simultaneamente parte dos núcleos mais restritos (Comissão Política e Secretariado) do Bloco.
Mas há áreas que ficam destapadas e que precisarão necessariamente de uma reorganização: sai, por exemplo, Moisés Ferreira, por Aveiro, que se ocupava da pasta da Saúde, e não entra o médico Bruno Maia, que viria reforçar a área. Não entra José Gusmão em Faro, uma das caras mais conhecidas do partido, que sairia do Parlamento Europeu para o nacional. Sai José Manuel Pureza, um deputado experiente que era também vice-presidente da Assembleia da República. E o Bloco ainda deixa de eleger em Leiria, Braga e Santarém.
Com uma derrota em toda a linha, as próximas reuniões para analisar resultados antecipam-se agitadas: Catarina bem recordou que no Bloco a tradição não é de decidir lideranças consoante os resultados eleitorais e que houve uma convenção em maio passado – Francisco Louçã ainda ocupou a liderança um ano e dois meses após o tombo do PEC IV – e o seu lugar não está em causa, mas entre os críticos internos já se sentem as primeiras movimentações. Ao Observador, a cara mais visível da maior tendência crítica (a Convergência), o ex-deputado Pedro Soares, é taxativo: “Uma derrota que culmina um ciclo de derrotas sucessivas obriga a uma mudança de rumo”.
O rumo de rutura com o PS até era exatamente o que os críticos vinham pedindo desde que defenderam uma renovação dos acordos da própria geringonça (2015-2019), em termos mais duros, para forçar a mudança das leis laborais — uma mudança em que o Bloco acabou por embarcar votando contra os Orçamentos de 2021 e 2022 mas sem acreditar, na verdade, que fizessem cair o Governo, uma vez que sempre apostou nas fichas num entendimento PS-PCP. Por isso, depois da votação no OE2021 e com sondagens a manterem-se estáveis, os bloquistas estavam convencidos de que o voto contra não teria grandes efeitos eleitorais — na altura, sem contarem com o efeito que teria uma queda efetiva do Governo.
Mas os opositores poderão agora criticar o discurso de campanha, em que Catarina Martins pediu repetidamente uma nova negociação com o PS de Costa — segundo esta corrente, essa centralidade dada aos acordos com os socialistas coloca os bloquistas numa posição de subordinação pouco recomendável.
Essa agitação sentir-se-á a partir de segunda-feira, quando o Bloco se começar a reunir para dissecar a sério os resultados e o maior desaire eleitoral da sua história. Por hoje, à saída do Capitólio, contavam-se dezenas de militantes desgostosos mas não exatamente chocados com a derrota, a beber imperiais e a fumar cigarros por entre os desabafos de uma noite amarga.
[Como se desenhou um mapa cor-de-rosa absoluto. O filme da noite eleitoral:]