“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.”
O dos Castelos de Fernando Pessoa, Mensagem
A Europa, reconhecida por ser um espaço plural como os versos de Pessoa, vai às urnas entre os dias 22 e 25 de Maio. A Europa, um espaço onde existem oito milhões de migrantes que moram fora dos países de origem – o equivalente à população da Áustria. Contudo, só 10% desses cidadãos votaram nas últimas eleições, de acordo com um relatório da Comissão Europeia de 2012. A Europa do século XXI.
Schengen tornou-se sinónimo de mobilidade. Mas, mesmo assim, os jovens europeus que estão longe dos seus países na data da votação para o Parlamento Europeu ficam sem oportunidade de exercer o seu direito antes sequer de pensarem nisso. Prazos, burocracias e a própria memória passam rasteiras àqueles que, entre os 18 e 25 anos, tiveram uma taxa de abstenção de 70% nas últimas Europeias, a maior de todas entre as faixas etárias.
Em Lisboa, perto da estação de comboios de Santa Apolónia, existe um espaço igualmente heterodoxo, como a Europa: a Residência Universitária Professor José Pinto Peixoto, um espaço gerido pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). A larga maioria dos residentes não fala português.
Mas descrever só como residência esse espaço pode não ser totalmente correcto: a residência, que só existe naquele espaço há sete anos, é na realidade o Mosteiro de Santos-o-Novo, edificado nos inícios do século XVI. Um espaço monumental, com claustros luminosos e de arquitectura monástica. O jardim no centro do edifício transmite uma serenidade religiosa que já habitou o espaço. Nos mesmos quartos onde no século XVIII moravam dezenas de freiras, agora moram jovens de diversas nacionalidades europeias.
Jacopo Bottacchi é uma excepção quando comparado com os restantes moradores da residência. É o único, de todos aqueles com quem o Observador falou, que se preocupa com as Europeias. O jovem italiano de 22 anos veio para Lisboa ao abrigo do Serviço de Voluntariado Europeu, num projecto de sensibilização sobre as eleições para o parlamento europeu.
“O objectivo é dizer às pessoas: tu tens de decidir o que vais fazer, participar ou não. Se é importante ou não”, diz Jacopo, sentado na secretária, ao mesmo tempo que mostra no computador portátil informações do projecto que integra. Jacopo visita escolas secundárias e universidades no distrito de Lisboa onde dinamiza actividades informais em que o centro de debate são as políticas e instituições europeias, procurando assim aproximar a “ideia de Europa e os seus processos de decisão” dos portugueses.
Para já, o projecto está a ser muito bem acolhido e consegue cativar a atenção dos jovens, diz o italiano, mas na residência onde mora os efeitos não se fazem sentir: a não ser ele, ninguém está a par dos procedimentos necessários para poder votar nas eleições europeias. Como seria de esperar, Jacopo já se tinha registado para votar nas eleições que em Portugal serão no dia 25 de Maio – o prazo de registo varia de país para país. Mas não foi um processo simples: teve de enviar uma declaração a explicar porque é que está no país, uma cópia do bilhete de identidade e uma declaração de morada.
O centro da Europa é na cozinha
O refeitório começa a encher-se ainda não são sete da tarde, todos os dias. Primeiro vêm os jovens dos países do norte da Europa. Fazem pouco barulho e não preparam nada de muito elaborado. Muitas vezes comem sandes. Perto das oito, chegam os portugueses. Mas é quando os italianos se sentam à mesa que o refeitório se transforma.
Jacopo e os restantes italianos da residência têm uma certa fama: juntam-se todos, cada um traz petiscos e ficam “horas e horas” à mesa a conversar e comer. Quando confrontado com o misticismo gastronómico dos italianos na residência, o jovem italiano tem um ataque de riso tão grande que nem chega a responder à pergunta. Mas a estante que tem no quarto denuncia-o: pacotes de macarrão e frascos de tomate, com um logótipo italiano no canto, junto a uma miniatura de garrafa de vinho do Porto.
“É muito interessante irmos jantar e ficar horas na mesa à conversa. É muito educacional”, diz o estónio Mart Treial, de 22 anos. “Na Estónia, é comer calado. É um acto singular”, acrescenta o estudante de jornalismo.
Mart abre despreocupadamente a porta do quarto. Algumas sapatilhas e equipamento de desporto estão espalhadas no chão. Em cima da secretária vêem-se restos de comida, folhetos sobre o programa Erasmus em Lisboa, filtros para tabaco de enrolar e bilhetes de concertos. No candeeiro, está pendurada uma pequena bandeira preta, azul e branca, as cores da Estónia. Num cabide, numa estante, está uma t-shirt branca toda escrita e assinada pelos amigos de Erasmus.
O quarto de Mart é um amontoado de sinais de vida de estudante, mas o seu discurso não é apático a temas políticos. Todavia, a União Europeia é lhe distante. “A Estónia só tem seis assentos lá [no parlamento europeu], por isso não acho que eles possam fazer grande coisa pelo país”, diz. Somado a isto, Mart reconhece que o tema das Europeias não está ter grande relevância no país desde que o governo estónio caiu em Fevereiro. “Se der para votar online talvez vote, mas ainda não me foquei nisso”, explica. O que Mart não sabe é que para votar nas Europeias tinha de se ter registado na embaixada da Estónia em Portugal antes do início do mês de Abril. Tarefa difícil quando se vive numa “pequena Europa” onde a palavra monotonia parece fora de contexto.
Alguém pode bater à porta e convidar para um passeio a qualquer momento. Se estiverem muito preguiçosos, podem fazer reuniões através do chat do Facebook, de quarto para quarto. Para Mart uma das principais vantagens da residência é a ambivalência de privacidades que oferece. “Quando queremos ser sociais podemos ir até à sala comum, quando queremos privacidade basta ficarmos nos nossos quartos.”
Poderia dizer-se o mesmo da Europa?
“Acho que nós estamos muito mais concentrados no nosso país que na UE. Parece que as pessoas preferem ter um bom presidente e que tudo esteja bem no próprio país a preocuparem-se com a UE ”, diz Emile, um francês que está em Portugal ao abrigo do programa Erasmus e que frequenta o mestrado em Tourism and Business no ISCTE. Emile também não sabia que para votar nas eleições para o parlamento europeu tinha de se ter inscrito até ao dia 31 de Dezembro de 2013.
Segundo dados mais recentes disponibilizados pela Comissão Europeia, Portugal recebeu 9197 estudantes estrangeiros ao abrigo do programa Erasmus no ano lectivo 2011/2012. Ao todo, nesse período, circularam pela Europa 205 000 jovens.
O cabelo esguedelhado de Emile Haton não é só uma questão de estilo: duas pranchas de surf repousam no chão do quarto número 17. O desporto favorito foi uma das razões principais que o trouxe a Portugal. Ao entrar no quarto esconde alguma roupa que estava espalhada para dentro do guarda-fatos e senta-se na cama. “A culpa não é só minha, o meu colega de quarto também ajuda”, desculpa-se. Não existem problemas próprios quando se partilha o quarto. É costume à noite, os residentes juntarem-se para “falar de tudo, o que fazem, o que andam a viver”. Mas temas políticos é algo muito ocasional.
Fala-se das saídas no bairro alto, os sítios que foram visitar, as lojas que descobriram, mas também da situações pessoais que cada um enfrenta: as dificuldades em comunicar com os pais, aquela rapariga que conheceram e não sabem como agir a seguir, as saudades de casa e dos amigos. A identidade dos residentes muda. Hoje Emile continua a sentir-se francês, mas também fala algumas palavras em português, tem um gosto especial pela gastronomia italiana…Emile é europeu, só não se preocupa é com política.
Longe do país, futebol no coração
São seis da tarde e dá para perceber que Jeroen Metselaar está nervoso. O jovem holandês de 20 anos está com medo de chegar atrasado ao jogo de futebol a que vai assistir no estádio da Luz: S.L.Benfica – AZ Alkmar , a segunda mão dos quartos de final da Liga Europa. “Gosto muito do Benfica também, por isso fico contente ganhe quem ganhar”, diz. (O Benfica ganhou o jogo por duas bolas a zero.)
Jeroen optou por Portugal por causa do “clima e por nunca ter visitado o país antes.” Depois de ter escolhido esta “ponta da Europa”, começou a pesquisar na internet um sítio onde podia ficar alojado. E os cliques levaram-no até à Residência Universitária Professor José Pinto Peixoto.
O holandês passou do seu quarto-privado, da casa onde viveu toda a vida com os pais, para uma residência com 170 camas, onde moram pessoas de mais de dez nacionalidades.
O país de Jeroen, a Holanda, foi um dos membros fundadores da União Europeia, em 1952. Em fevereiro deste ano, o Partido da Liberdade (PVV), do eurocéptico Geert Wilders, tornou público um estudo encomendado à Capital Economics, uma destacada consultora económica, que recomenda de forma aberta a saída do euro e da União Europeia.
Mas este nome (Gert Wilders) não diz nada a Jeroen. Nem este tema. Com 20 anos, é a primeira vez que pode votar para as eleições do Parlamento Europeu, mas confessa que “é difícil e que não conhece sequer os candidatos.” Com as eleições marcadas para o dia 22 de Maio na Holanda, Jeroen ainda não se preocupou com isso. “Quero votar, mas ainda tenho de tratar disso”, explica. Mas não se registou presencialmente na embaixada, seis meses antes, ou por email, até ao dia oito de Abril como impunham as regras.
Política é mesmo a última preocupação à hora da conversa com o Observador. Escorrem-lhe gotas de suor pela testa. Transpira dos nervos: está mesmo preocupado em não chegar a tempo ao jogo de futebol. Não pára de olhar para as horas no telemóvel. Despede-se à pressa, vai buscar o cachecol ao quarto e sai da residência a correr. Não é a Europa que chama por ele, é a Liga Europa.