Ricardo Valente é psicólogo, faz consultas de diagnóstico de saúde mental, atendimentos psicossociais individuais, sessões de grupo de estimulação cognitiva e de promoção de competências socioemocionais e de autocuidado do projeto Saúde Mental 360º Algarve. Uma iniciativa que arrancou há um ano, em setembro de 2023, nos concelhos de Faro, Loulé e Olhão, focada na saúde mental da população idosa algarvia vulnerável, com baixa escolaridade, baixos rendimentos e elevado risco de isolamento. Um programa de prevenção e intervenção precoce, com incidência na depressão, declínio cognitivo e suicídio. E com várias atividades na agenda, como aulas de yoga e sessões de nutrição, para melhorar a qualidade de vida e o bem-estar mental dos mais velhos. São 273 neste momento: a maioria mulheres, 244 ao todo, quase 90%; e 29 homens.
“Desenhámos uma intervenção direcionada para a saúde mental, não só com atendimentos psicossociais, mas também com um conjunto de outras atividades que têm um impacto muito significativo, e consultas de diagnóstico de saúde mental para despistar quadros demenciais e transtornos de humor e de ansiedade”, explica o psicólogo que coordena o projeto promovido pela Plataforma Saúde em Diálogo, Instituição Particular de Solidariedade Social constituída em 1998, que junta 72 associações de doentes, com sede em Lisboa. No Algarve, a Plataforma está num espaço cedido pela Unidade Local de Saúde de Faro.
“Há sessões em que trabalhamos a memória, a atenção, a concentração, não só para a funcionalidade, mas também para melhorar a qualidade de vida. Avaliamos o estado da pessoa no decorrer do projeto, avaliamos o impacto quer no bem-estar mental, quer na qualidade de vida.” Ricardo Valente faz uma primeira avaliação dos participantes que chegam de diversas formas, referenciados pelos conselhos locais de ação social dos três municípios, ou por outras instituições do setor social, ou ainda por terem conhecimento do projeto no habitual passa a palavra. Se houver sinal ou sintomas de problema mental ou de demência, o psicólogo faz o relatório para que chegue às mãos do médico de família, seja através do idoso ou de um familiar. Mais de 30% têm perturbações de humor, depressão, ansiedade, stress. Entre 10 e 15% têm demências numa fase inicial.
Todas as consultas e atividades do projeto são gratuitas para os participantes que têm de cumprir três critérios: ter 65 ou mais anos, reforma igual ou inferior ao salário mínimo nacional, escolaridade igual ou inferior ao 9.º ano. É feita uma avaliação das necessidades, consulta de diagnóstico de saúde mental, elabora-se um plano de ação pessoal consoante o que cada um precisa. O Saúde Mental 360º Algarve decorre até fevereiro de 2025 e é financiado pela Fundação Belmiro de Azevedo e pelas câmaras de Faro, Loulé e Olhão.
Débora Silva é outro elemento da equipa técnica do projeto. Com conhecimentos em psicologia e psicogerontologia, gere o programa, trata da monitorização através de contactos regulares aos utentes, está nas sessões de estimulação cognitiva que acontecem com regularidade, quatro a cinco vezes por semana, uma hora cada, com grupos pequenos, não mais de 15 pessoas, em vários locais dos três concelhos algarvios. “É um apoio que os mais debilitados precisam”, garante.
Os exercícios de estimulação cognitiva são variados, fazem-se jogos de tabuleiro, jogos com cartas para descobrir e juntar pares, jogos com cores, puzzles, usam-se bolas e elásticos para estimular a atenção e a motricidade fina, constroem-se pirâmides com copos ora virados para cima, ora virados para baixo. E contam-se histórias do passado para perceber como está a memória. Débora Silva anda sempre à procura de materiais e texturas para essas atividades. Neste momento, estuda maneiras de usar massas alimentares nos exercícios. Há pessoas que não sabem ler e escrever, há alguns invisuais. “Adaptamos peça a peça.”
Aulas de yoga adaptadas, nutrição simplificada
Além do espaço da Plataforma Saúde em Diálogo, em Faro, as atividades acontecem em vários edifícios dos três municípios, sítios diversos, como centros de dia, lares de idosos, misericórdias, juntas de freguesia, associações, delegações da Cruz Vermelha — fruto de 11 parcerias estabelecidas. A equipa interna tem três pessoas, Ricardo Valente, Débora Silva e Catarina Lourenço que trata da comunicação. E mais seis prestadoras de serviços: duas nutricionistas, duas professoras de yoga, uma professora de ginástica e pilates, e mais uma professora de ginástica, yoga e pilates.
Sílvia Calero é uma das nutricionistas, faz workshops com os mais velhos, junta grupos de 12 a 22 pessoas, nos três concelhos. Transmite o que sabe, preocupa-se em falar de nutrição de forma acessível, tira dúvidas, desfaz mitos, dá dicas e recomenda estratégias adequadas à população que tem à frente. Explica o que faz bem e o que faz mal à saúde. O que é uma alimentação adequada às faixas etárias mais velhas, a importância do apetite e da saciedade, o papel do açúcar, por exemplo. “Como podem alterar os seus comportamentos e o impacto na sua vida. É transmitir conhecimento, mas também compreender o que se passa”, adianta.
A nutricionista proporciona momentos de partilha, quer perceber o que se passa do lado de lá. Tem abordado temas que interessam àquela população, como o que se ingere interfere na medicação que se toma, como o sistema gastrointestinal se vai alterando ao longo do tempo, como um desarranjo nos intestinos e um mal-estar no estômago influenciam a parte mental, como alimentação dá uma ajuda no processo de envelhecimento. “A saúde mental não depende apenas da psicologia, das consultas que são extremamente importantes, mas também da parte da educação física e da alimentação. Faz todo o sentido trabalhar várias valências que interferem na saúde mental”, afirma.
Rita Cavaco é uma das professoras de yoga do projeto, habitualmente compõe grupos de oito pessoas, mulheres na maioria, organiza sessões de 15 em 15 dias no espaço da Plataforma em Faro e faz os ajustes que se impõem. “As aulas são um bocadinho diferentes do habitual. Nesta faixa etária, não fazem todos os movimentos.” “Se adaptamos, sentem-se mais confortáveis”, repara. Em vez de estenderem um tapete no chão, as participantes fazem yoga sentadas em bancos ou cadeiras. O objetivo é que os exercícios possam ser feitos por todas as que ali estão, quase sempre senhoras, é muito raro haver um homem nas aulas que se centram em exercícios de mobilidade, alongamentos, flexibilidade dos músculos, postura física.
É tudo pensado à medida de uma população com características específicas, mais velha, menos ágil, mais só, menos acompanhada. Na maior parte das vezes, não há música de fundo nas aulas de yoga, há quem tenha dificuldades na audição. E também não se pede para fechar os olhos nos momentos de meditação ou relaxamento, pode ser confuso, e até aflitivo, para gente idosa deixar de ver o que se passa à volta. “A alternativa é fixar os olhos num ponto fixo.”
No início das aulas, conversa-se um pouco, uma ida ao hospital, um acontecimento na família, o medicamento assim ou assado. “É um momento de encontro, é um momento de partilha. Não é só meditação, não são só exercícios físicos, é este ato de partilha, de reflexão, que é tão importante.” “Algumas pessoas vivem sozinhas, é importante terem esse momento, criar esta empatia e falar dos seus desconfortos”, acrescenta Rita Cavaco que vê impacto no bem-estar das participantes. “Só ser um local de encontro já vale muito. Noto que isto é importante para elas, comprometem-se, têm um local onde estão com outras pessoas, cuidam-se mais.”
Os laços, as relações, os afetos, no processo de envelhecimento
Nos atendimentos e consultas, Ricardo Valente percebe que não há um denominador comum, as situações são múltiplas. Em todo o caso, vai ouvindo histórias e desabafos que, por vezes, se encontram. “Há a culpa por não terem aproveitado mais a vida, por não terem estado mais com os amigos, com a família, por não terem viajado mais. E agora ou não têm dinheiro, capacidade funcional, ou vontade.” Também há mães e pais idosos com uma filha ou um filho com deficiência profunda preocupados e ansiosos sobre como será a vida quando já não estiverem cá. “Tentamos ajudar as pessoas nas questões logísticas e práticas, na inscrição numa instituição, e que percebam que não estão a abandonar um filho ou uma filha, que é uma salvaguarda. Esta é uma questão que aflige muito as pessoas.”
Os doentes oncológicos que frequentam o projeto também têm apoio psicológico. Fala-se de doença, de processos de recuperação, de autoestima, desmontam-se estigmas associados à saúde mental e à idade, num projeto alinhado com os princípios da coesão social e territorial, que promove a inclusão social, combate o idadismo, fomenta o autocuidado de uma franja frágil da população. “Estamos, de certa forma, a promover o envelhecimento ativo e saudável. A tirar as pessoas de casa para que participem em atividades, se sintam mais úteis e ativas. Juntam-se, conversam, depois bebem um chá, um café, criam laços, relações, que são muito importantes quando se envelhece. A questão do afeto também importante”, sublinha Ricardo Valente. E há muros que vão caindo. “As pessoas tinham alguma dificuldade e muita reserva em pedir ajuda.”
Débora Silva passa muito tempo ao telefone. “A falar individualmente com eles, a saber como estão, contam que aconteceu isto, aconteceu aquilo, perguntam o que achamos. Nas questões de saúde, se não têm médico de família, perguntam o que fazer, onde devem ir.” Escuta histórias familiares complicadas, conflitos por resolver, idosos que vivem sozinhos, que não têm ninguém, sem gente por perto, que conversam com pouca gente. “A solidão é o principal problema”, conta.
Nas chamadas que faz, insiste que podem ligar quando se sentem sozinhos, elas e eles, que estará do outro lado da linha. “Por vezes, têm vergonha, não querem ser ajudados ou não querem sair do que estão habituados a viver. As pessoas precisam mesmo deste tipo de projetos.” Por várias razões. “Estamos a fazer um trabalho consistente no Algarve no apoio à saúde mental da população sénior, temos muitos casos de depressão e de demência. Ao intervir atempadamente, conseguem ter uma qualidade de vida digna e melhores condições de saúde”, comenta Débora Silva.
Joana Viveiro é diretora-executiva da Plataforma Saúde em Diálogo, coordena as equipas que andam no terreno. Lembra que o Saúde Mental 360º Algarve nasceu para dar continuidade a um outro projeto centrado na literacia em saúde da população mais velha, que envolveu 780 utentes, sete municípios, 51 parcerias, e que terminou no ano passado. Nessa altura, percebeu-se que a saúde mental merecia mais atenção, era uma lacuna, com falta de respostas no Algarve, tanto no público como no privado. “Casos de isolamento e de solidão, mesmo em meio urbano, pessoas que não procuram ajuda, que não detetam sintomas, e é necessário combater o estigma e preconceitos na saúde mental, alertar para as doenças”, refere a responsável.
As sessões Saúde Mental em Dia do projeto têm essa função mais abrangente, de esclarecer sobre temas relacionados com a área da saúde, prevenção e gestão da doença, através de uma comunicação simples e objetiva, que desmistifica conceitos. Acontecem uma vez por mês, alternando nos três municípios, e são abertas aos utentes e a toda a comunidade algarvia interessada em participar. “São sessões de literacia em saúde, abertas ao público, para desmistificar conceitos, com estratégias na área da saúde mental, para ajudar a população a perceber os sintomas”, adianta Joana Viveiro.
O impacto do projeto será avaliado pela Escola Nacional de Saúde Pública, que analisará os efeitos da intervenção na qualidade de vida e bem-estar mental de cada participante. Os resultados deverão ser conhecidos em fevereiro do próximo ano, no fim do programa. Joana Viveiro revela que há vontade de replicar e expandir a iniciativa em outras zonas do país, nomeadamente na região da Beira Interior. Com os objetivos de sempre: chegar à população mais velha, mais vulnerável, mais só, em risco de doença mental, bem como desconstruir estereótipos e preconceitos.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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