O cubo forrado a vidro preto pouco deixa antever do que será a nova vida do Cine-Teatro Turim, em Benfica, que nos anos 80 e 90 era ponto de encontro para os cinéfilos e curiosos sobre a sétima arte. Prestes a completar 40 anos, reabre este sábado devolvendo uma sala de cinema à cidade de Lisboa.
“Lembro-me de chorar que nem uma madalena arrependida a ver o Top Gun com o meu pai agarrado”, recorda Ricardo Marques, presidente da Junta de Freguesia de Benfica. Nas redondezas, é o cinema que evoca mais memórias de quem passou pelo Turim — o espaço chegou a funcionar como cineteatro entre 2005 e 2015, mas foi sempre, na essência, um cinema.
A reabertura do espaço, que é propriedade de Afonso Moreira, empresário e pai das atrizes Anabela e Margarida Moreira, acontece pela mão da Junta de Freguesia de Benfica que em 2020 anunciou que havia arrendado o Turim (sala e centro comercial) por 10 anos, pelo valor de cinco mil euros mensais.
“Batemos à porta na altura certa. [O Afonso Moreira] contou-nos histórias da quantidade de negócios que foi recusando ao longo dos anos, porque sempre teve este sonho de não desvirtuar o princípio que o fez abrir esta sala como cinema.” Inaugurado em 1984, o Turim encerrou pela primeira vez em 2007. Reabriu em 2011, quando a atriz Anabela Moreira e o realizador João Canijo tentaram ali criar um polo cultural, sem sucesso, fechando as portas em 2015.
O investimento na reabilitação para esta terceira vida do Turim ronda os 450 mil euros — com 150 mil euros provenientes da Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito do programa Um Teatro em Cada Bairro. O custo estimado de produção, entre recursos humanos e programação está “na casa dos 350 mil euros” anuais, refere Ricardo Marques. A CML apoiará com 100 mil euros, e o restante valor será custeado pela Junta.
No piso térreo, com entrada pela Rua da República Peruana ou pela Estrada de Benfica, não há grande rasto do Turim de outros tempos. Ali está o Camada, restaurante de francesinhas que venceu o concurso público para exploração do espaço, cuja renda mensal deverá ajudar a garantir viabilidade financeira ao projeto. Ricardo Marques garante que está no caderno de encargos a “obrigação de produção cultural”, de pequenos showcases a momentos de stand-up.
Manteve-se apenas o quiosque da bilheteira, que continuará a servir para a venda de bilhetes e informações, e que dá acesso ao piso inferior, onde fica o Arcade Bar, uma nova zona de lazer com máquinas arcade, memorabilia, cartazes históricos e um snack-bar. Uns degraus abaixo, descobre-se por fim a saudosa sala de cinema.
Com as cadeiras originais restauradas (89 lugares, três deles de mobilidade reduzida) e um novo projetor, a sala foi batizada como auditório Afonso Moreira, “o homem que durante estes anos todos lutou para manter o Turim”, e que morreu este ano. O primeiro filme que ali passará é Diamantino (2018), de Gabriel Abrantes, que tem no elenco Anabela e Margarida Moreira. “É exatamente para marcar que a primeira coisa na sala tem esta ligação à família que tanto se bateu pela essência do espaço”, diz Ricardo Marques. A obra mostra-se esta sexta-feira, apenas para convidados. Para o público geral, o primeiro filme em cartaz é Caça-Fantasmas (1984) de Ivan Reitman, o primeiro filme a ser exibido no Cine-Teatro Turim, em 1984. Passa este sábado, às 14h30, com entrada livre — como toda a programação de 16 e 17 de setembro, o fim-de-semana inaugural.
A programação cinematográfica chegará por diversas vias — ultima-se um protocolo com a Escola Superior de Teatro e Cinema, do Instituto Politécnico de Lisboa, ali bem perto, e várias associações estão livres para ali programar. Sabe-se, para já, que espaço acolhe já em novembro o LEFFEST – Lisboa & Estoril Film Festival, que esta edição se concentra apenas na cidade de Lisboa. Ao Observador, o presidente da Junta de Freguesia de Benfica adianta que o Turim é uma das salas que recebe o festival fundado por Paulo Branco, que decorre de 10 a 19 de novembro. É de recordar que o último cinema de bairro em Benfica esteve precisamente nas mãos do produtor, o Fonte Nova, que foi explorado pela Medeia Filmes entre 1995 e 2015, até ter encerrado definitivamente.
A reabilitação da régie da sala de cinema permitirá também a criação da Rádio Turim. “Não é uma rádio que vai estar a funcionar para já nesta fase em pleno, todos os dias, vai ser uma rádio produtora de conteúdos culturais, em parceria com a Rádio Amparo, em parceria com o Nuno Markl, vamos fazer magazines, vamos fazer cobertura de concertos, eventualmente de espetáculos aqui”, explica Ricardo Marques.
Com música, teatro, dança e stand-up, “vai ser uma casa peculiar”
“Há muita gente infelizmente a contactar-nos e a pedir palco, a pedir um espaço”, diz Carla Cruz, a técnica superior da Junta de Freguesia de Benfica que é responsável pela programação do Turim e do Auditório Carlos Paredes. “Felizmente temos conseguido gerir bem a situação e ter cada vez mais artistas que trazem convidados, acaba por ser aqui uma bola de neve que gera cultura”, comenta ao Observador.
Com várias entidades e associações parceiras se asseguram os vários eixo da programação daquela que “vai ser uma casa peculiar”. Ainda que o foco seja assumidamente o cinema, mais expressões artísticas vão ocupar diariamente os vários espaços do Turim.
A programação musical ficou a cargo da plataforma Lisboa Criola, do músico Dino D’Santiago, que tem feito a curadoria de eventos como o Jardim de Verão da Gulbenkian. O artista, que foi mentor na última edição do programa The Voice Portugal, quis levar a sua mentoria além dos limites do concurso. “Para onde é que vão estas vozes depois de terminar o programa? O mercado não oferece um circuito”, explica. No Turim faz uma curadoria pelo menos até janeiro, com concertos às sextas-feiras, em que mostra artistas emergentes que participaram no concurso televisivo.
“O único desafio que lancei foi que a cada participação quero uma canção original”, especifica. “No final desta season, no final destes 17 concertos, vou editar um álbum com eles, com as 17 canções originais”, antecipa sobre o que espera que seja uma forma de dar a estes jovens uma chance de “se lançarem ao mercado finalmente e terem uma canção para apresentar”.
Entre os vários artistas que passarão pelo espaço em Benfica estão “a Sasha [Silva], de origem moçambicana, o Vicente Augusto, de origem brasileira, a Joana Melo, portuguesa, a Soraia Morais, de origem angolana, o Rúben Torres, de etnia cigana”, antecipa. Dino quer, como tem sublinhado nos últimos anos, “abrir as portas que puder”. “Se para a comunidade de origem africana não há assim tantas oportunidades, mas já começa a haver porque há uma agenda muito assertiva da Unesco e da ONU de trabalhar as comunidades africanas até 2030, para as comunidades ciganas ainda há um preconceito muito grande e o preconceito é mais de não conhecer a história da etnia.” A estes juntam-se outros nomes como Coastel, Diogo Carapinha, Lourenço Ataíde ou Rebeca Reinaldo, todos participantes da edição de 2022 do concurso da RTP.
“Por termos vários artistas a programar, oferta também é para diferentes tipos de público”, explica Carla Cruz.
Há stand-up logo no fim-de-semana de abertura, com Rúben Branco, David Cristina e Dagu (a convite da comediante Liliana Marques), a tomar o palco do auditório Afonso Moreira no domingo à noite, seguidos de um segundo momento de stand-up pela mão da Associação Menino da Lágrima. A associação, que inclui a cantora Ana Bacalhau e o radialista Nuno Markl, ficará responsável pelas atividades no Arcade Bar (cinema, tertúlias, música ao vivo, podcasts) e terá também as quartas-feiras do auditório por sua conta.
Haverá também dança, pela mão da Arcade Dance Center, escola de dança de Cifrão, que ali realizará workshops e outras atividades, e teatro, através da Associação Cultural Meia Palavra Basta. Será este o grupo de teatro residente, do qual é fundadora Margarida Moreira. “Queria muito ser eu a estrear o auditório com o nome do meu pai. Quando comecei os ensaios… O luto está a ser difícil e o processo de ensaios ajudou-me a manter a cabeça à tona, os ensaios têm-me salvo”, conta ao Observador sobre o desafio de construir uma peça depois da morte do pai. Trata-se de Não Fui Eu, um texto de João Ascenso, com Ricardo Barbosa, Francisco Beatriz, Luciano Gomes e Margarida. A estreia está apontada para março.
“O Turim faz parte da minha vida e da vida da minha família”, resume a atriz. “Simbolicamente, estarei ligada para sempre. É onde está o meu coração também.”