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“É uma peça que tem dança, teatro, circo e que funciona muito em torno dos limites de risco físicos e do desconforto e da tensão”, diz Diana Niepce
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“É uma peça que tem dança, teatro, circo e que funciona muito em torno dos limites de risco físicos e do desconforto e da tensão”, diz Diana Niepce

ALIPIO PADILHA

“É uma peça que tem dança, teatro, circo e que funciona muito em torno dos limites de risco físicos e do desconforto e da tensão”, diz Diana Niepce

ALIPIO PADILHA

A “Utopia” de Diana Niepce é uma dança de transgressão

A bailarina, coreógrafa e ativista leva ao Festival Dias da Dança, no Porto, a mais recente criação: uma performance de três horas e meia que gira em torno dos limites físicos e se revela hipnótica.

Em palco está uma plataforma circular que gira sobre si própria, com gente a bordo, qual carrossel da infância. Mas aqui só há adultos. Aliás, a peça é para maiores de 18 anos. Falamos de Utopia, a mais recente criação de Diana Niepce, bailarina, coreógrafa, escritora, investigadora e ativista. Trata-se de uma performance duracional com três horas e meia (e uma pausa de 15 minutos pelo meio), que se estreou, neste mês, no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, e agora chega ao Porto no âmbito do DDD — Festival Dias da Dança, em curso até 5 de maio. Utopia pode ser vista já no próximo fim de semana, sábado e domingo, às 15 horas, no Palácio do Bolhão.

Regressemos, então, ao cenário, assinado por Franko B, escultor e performer da live art do Reino Unido, e àquele objeto giratório negro que Diana Niepce confirma ser um divertimento com ecos de meninice, mas para crescidos — em rigor, trata-se de um merry-go-round. “O ferro mostra a crueza e dureza no corpo, e tem uma história que me interessa particularmente. Uso ferro muitas vezes nas minhas peças. Uso coisas que, por norma, são um bocado violentas. Este objeto cria também um lugar de contemplação. Permite trabalhar lógicas do movimento da física. Muito do meu trabalho está relacionado com as componentes da física. E, claro, vem deste lugar um bocado sádico de um parque infantil para adultos, de jogos de dominação”. Palavras da criadora e intérprete, numa conversa por videochamada, a propósito de Utopia.

“É uma peça que tem dança, teatro, circo e que funciona muito em torno dos limites de risco físicos e do desconforto e da tensão”, prossegue Niepce, acrescentando que, à semelhança de outros trabalhos seus, este opera mais numa lógica de sensação do que de espetáculo; e parte de reflexões suas em torno dos condicionamentos e imposições da sociedade. Utopia nasce de um texto que escreveu para o jornal de artes performativas Coreia, intitulado Experimentar o Corpo, que suscitou interesse em várias pessoas, recorda. A seguir, decidiu “questionar a hierarquia das lógicas do corpo performático e do corpo utópico”.

“É uma peça absolutamente violenta, em termos performativos, mas que para o espectador gera a dilatação do tempo, gera um estado de contemplação interna”

ALIPIO PADILHA

“Estamos constantemente a ser bombardeados por estas noções de utopia do corpo”, observa Diana, que pensou muito acerca de formas de manipulação das massas para benefício de alguns, por exemplo. O resultado foi uma obra de traços mais distópicos, reflexo de “uma sociedade doente, que nos obriga a resistir num estado de eficiência, que não permite que as nossas identidades sejam expostas”, conclui. “É num lugar de máscaras que estamos constantemente a ter de existir. Então, é uma peça que trabalha muito no lugar da transgressão.”

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Apesar da longa duração, têm chegado à criadora relatos de espetadores que poderiam ficar mais horas a ver Utopia. “As pessoas diziam-me que era como O Senhor dos Anéis, que poderiam ver os vários filmes d’O Senhor dos Anéis, e eu: Nossa! Mas iríamos morrer ali, provavelmente; é uma peça muito física, com muitos detalhes. Funciona com velocidade e com muito tempo a girar”, comenta, com um toque de humor.

Depois, mais a sério: “É uma peça absolutamente violenta, em termos performativos, mas que para o espectador gera a dilatação do tempo, gera um estado de contemplação interna”. O que não impediu uma pessoa da frente de sala de se sentir mal diante daquela performance, combinando jogos de dominação e submissão, desconforto, tensão, nudez e vulnerabilidade dos corpos, que são diversos. Facilmente se cria uma relação empática com quem está a assistir.

"Em 2014, a artista caiu de um trapézio e ficou tetraplégica. Não mudei os meus interesses. A minha perceção do mundo mudou. E a perceção do mundo para comigo. Ou seja, o mundo começou a ver-me de forma diferente. E isso, inevitavelmente, mudou a minha forma de olhar para a dança.”

“A peça tem um lugar que pode ser violento, dependendo de onde estamos no mundo. Mas todas as minhas peças têm esse lugar, porque trabalho sobre os limites físicos e, muitas vezes, psicológicos. E não estamos todos no mesmo lugar. E o nosso nível de atenção para com o mundo também não é igual. Interessa-me mudar políticas e interessa-me que as pessoas pensem e repensem aquilo que estão a fazer em sociedade”, esclarece a responsável pela criação e pela direção artística, além de intérprete. Em palco, com Diana Niepce, estão Ana de Oliveira e Silva, Inês Cóias, Tiago Barbosa e Tiago Mateus.

“Portugal está a anos-luz de ser considerado acessível”

Diana Niepce, que desde miúda se revoltou contra as injustiças, embarcou em lutas internas e externas e hoje abraça causas como a dos direitos dos animais. O apelido artístico, aliás, vem de um gato que adotou e batizou com o nome do inventor da fotografia, Joseph Niepce — o universo da imagem é-lhe querido, rodeou-a sempre, ou não fosse o pai pintor surrealista. Mas a sua luta mais visível será pelos direitos das pessoas com deficiência, na arte e não só.

Em 2014, a artista caiu de um trapézio e ficou tetraplégica. De que modo aquele acidente alterou a sua maneira de ver a dança? Resposta pronta: “Na verdade, continuo a trabalhar aquilo que já me interessava anteriormente, os hibridismos do corpo. Muitas das minhas práticas estavam relacionadas com o butoh [dança que surgiu no Japão depois da Segunda Guerra Mundial], que também foi criado em função de corpos não normativos. Muitas das minhas práticas estavam ligadas à suspensão dos corpos. Não mudei os meus interesses. A minha perceção do mundo mudou. E a perceção do mundo para comigo. Ou seja, o mundo começou a ver-me de forma diferente. E isso, inevitavelmente, mudou a minha forma de olhar para a dança.”

“Todas as minhas peças têm este lugar de: vamos discutir política”, afirma, com clareza a criadora e intérprete

ALIPIO PADILHA

Em consequência, o trabalho de Niepce tornou-se mais politizado. “Todas as minhas peças têm este lugar de: vamos discutir política”, afirma, com clareza. Ainda em março foi curadora do ciclo Corpos Políticos, na Culturgest, sobre os corpos não normativos nas artes performativas. No programa couberam espetáculos, performances, palestras e mais. Ainda há um microsite ativo, com partilha de testemunhos de artistas.

Diana Niepce rejeita paternalismos, condescendência, visões capacitistas, não pretende ser exemplo de superação, nem caso inspirador. Interessa-lhe, sobretudo, ter “condições para trabalhar de uma forma menos precária”, mais justa, “uma coisa que na arte é muito complexa”. Para criadores com deficiência, são múltiplas as dificuldades que se levantam, como encontrar espaços acessíveis onde ensaiar, mesmo em Lisboa, ou coisas tão básicas como rampas e casas de banho adaptadas (algumas classificadas como acessíveis nem têm barras, aponta).

“Continuamos a discutir rampas… Não posso ter um artista surdo num workshop meu se não tiver um intérprete de língua gestual portuguesa. E uma coisa é dar um workshop em Lisboa, outra coisa é dar um workshop em Évora, numa instituição, que vem logo uma senhora da limpeza atrás de mim como se eu tivesse fugido da instituição. A forma como as pessoas olham para mim varia consoante o lugar onde estou”, lamenta a artista. “Portugal é um país que ainda está a anos-luz de ser considerado acessível. Ganhámos imensas batalhas e que cada vez [as pessoas] estão mais sensíveis. Mas as micro violências são diárias, e isso faz com que muita gente fique fechada em casa.”

"Trabalho sobre os limites físicos e, muitas vezes, psicológicos. E não estamos todos no mesmo lugar. E o nosso nível de atenção para com o mundo também não é igual. Interessa-me mudar políticas e interessa-me que as pessoas pensem e repensem aquilo que estão a fazer em sociedade.”

Para Niepce, a solução é fazer desta uma luta de todos. “Não é com uma ajudinha que as coisas mudam. Esse discurso do “eu ajudo” é péssimo. Existe uma lei [das acessibilidades], e a lei deve ser cumprida”, enfatiza. Não duvida: “A partir do momento em que tenho conhecimento de que isto é uma barreira, isto é um ato de discriminação. E há coisas tão simples: às vezes, basta uma rampa de madeira, ou assim, e facilita logo a vida de imensa gente. O discurso ainda está muito em torno de um lugar condescendente e paternalista”.

A “Norma” que fala da eugenia portuguesa

Utopia ainda está a fazer o seu caminho, mas Diana Niepce já tem em vista outra peça, Norma, com o Teatro Nacional de Dona Maria II. Vai ser apresentada de 11 a 14 de julho, no exterior do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, e está ligada à história da eugenia portuguesa. Para perceber do que se trata, é preciso recuar a uma velha instituição, a Mitra, que “se tornou o depósito de todos os indesejados da sociedade”.

"O discurso ainda está muito em torno de um lugar condescendente e paternalista", afirma Diana Niepce

VERA MARMELO

Quando a capacidade de acolhimento daquele asilo se esgotou, pessoas institucionalizadas por diversas razões, incluindo doença mental, foram levadas para outros espaços, entre eles o Hospital Miguel Bombarda. Em campo entram, pois, reflexões sobre estados de aprisionamento. É uma obra site specific, que combina lógicas de circo, performance e dança, e também se baseia no Teatro de Marionetas, de Kleist. E já é produzida pela sua estrutura em nome próprio, As Niepce’s.

Mas, por agora, há que mergulhar na Utopia, ao abrigo do DDD — Festival Dias da Dança, que percorre três cidades: Porto, Gaia e Matosinhos. Ao todo, são 27 espetáculos (nove em estreia absoluta e 13 em estreia nacional), envolvendo 29 artistas e companhias. Nomes como Jan Martens, Alice Ripoll, Catarina Miranda, Jeremy Nedd, Diana Niepce, La Chachi, Radouan Mrizig e Kate McIntosh destacam-se no programa desta oitava edição, que decorre sob o tema da liberdade, pelos 50 anos do 25 de Abril.

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