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A vida dos militares portugueses na República Centro Africana. Os combates, os ataques e os medos

Nas ruas da capital, sofrem emboscadas e são o alvo de apedrejamentos. A norte, já "limparam" zonas ocupadas por grupos armados. São a força portuguesa, o braço-direito do comandante da ONU.

Em segundos, o som das hélices tornou-se nítido. O tenente-coronel Alexandre Varino, o sargento Rodrigo Silva e o cabo Sérgio Freitas sabiam que estava na hora do ataque. “Há um momento de adrenalina, quando vemos o helicóptero fazer fogo com armas de 20 milímetros”, recorda o sargento. “Aí, percebemos que está a acontecer alguma coisa.” Estavam 500 quilómetros a norte da capital da República Centro Africana (RCA) para ajudar a executar uma missão: uma centena de militares portugueses, a maioria comandos, tinha de recuperar o controlo de Bocaranga, uma vila ocupada por um grupo fortemente armado — um dos que o comandante da missão da ONU quer erradicar do país e cuja missão entregou aos militares portugueses, a sua força de confiança na RCA.

Os portugueses estão desde o início do ano passado no país. Como Força de Reação Rápida da missão das Nações Unidas deviam ser um último recurso, a resposta eficaz para as situações que fugissem ao controlo das outras unidades militares integradas na missão de paz, num momento em que a ONU tem mais de 12 elementos no terreno (sobretudo militares). Mas a instabilidade na República Centro Africana é demasiada e permanente e a força portuguesa acaba por estar diariamente envolvida em patrulhamentos nas ruas da capital, Bangui, além de ser convocada para missões de “limpeza” de pontos estratégicos, como aconteceu em Bocaranga, na região norte, no final do ano passado.

O grupo precisou de três dias para chegar a Bouar, onde estava instalado o comando de operações oeste da missão das Nações Unidas no país, a MINUSCA. Saíram de Bangui, fizeram todo o caminho para norte pelas estradas de terra que ligam as principais cidades e vilas do país e, finalmente, ao final da tarde de quinta-feira, 5 de outubro de 2017, chegaram ao ponto de concentração de forças que iam participar no assalto. O tenente-coronel Varino sabia qual era o objetivo da missão, mas precisava de planeá-la. Estava em causa uma das operações mais sensíveis da força nacional, num país em clima de pré-guerra civil e em que os capacetes azuis acabaram por tornar-se um alvo a abater para os vários grupos armados espalhados pelo território, que se dedicam à ameaça e à extorsão da população centro africana.

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O comandante português tinha uma certeza: “A operação Bocaranga tinha de ser lançada de madrugada para que se cumprisse a missão” de “limpeza” da cidade. Era importante apanhar o grupo armado com as defesas em baixo e garantir que havia tempo de luz suficiente para concluir o trabalho. Alexandre Varino não podia arriscar-se a que os seus homens ficassem presos, às escuras, em terreno inimigo. Por isso, o tenente-coronel precisava de definir o local de entrada no terreno na cidade, o posicionamento dos seus homens, e até o momento em que cada uma das equipas entrava em ação depois de os helicópteros fazerem a sua parte. Estudou o local, ouviu os outros comandantes ao serviço da ONU e apresentou a proposta ao comandante. Tinha poucas horas para definir o plano de ação e a última palavra ainda cabia ao comandante senegalês da MINUSCA. Chegou a luz verde. Iam avançar.

Diamantes, sangue e militares portugueses sob fogo

Depois de Bouar, o último ponto de reunião da força foi o aeródromo de Bocaranga, a sete quilómetros da cidade. Os militares portugueses chegaram na noite de sexta-feira, já conscientes de que voltariam a sair dali poucas horas mais tarde, ainda antes de a primeira luz do dia.

Depois de o helicóptero fazer um raide, os militares portugueses começaram a varrer a cidade, casa a casa. “Naquele momento, passam-nos muitas coisas pela cabeça, porque temos o intuito de caçar, mas, ao mesmo tempo, eles também são caçadores”, admite um dos militares envolvidos na operação. “Qualquer passo em falso pode ser a eliminar para nós.”

O primeiro helicóptero avançou. A carga desceu sobre os telhados de zinco e atingiu também as frágeis paredes de barro das casas, com menos de dois metros de altura, alinhadas ao longo da avenida principal da cidade. Dos homens que sobrevoavam a cidade, o comandante português ia recebendo indicações sobre onde tinham sido detetados elementos do grupo armado 3R (Retorno, Reclamação e Reabilitação) e ajustava a estratégia no terreno a essas informações recebidas.

Quando o primeiro raide aéreo terminou, Alexandre Varino já tinha dado ordens aos seus homens. De G3 na mão, o sargento Silva e o cabo Freitas estavam em alerta total quando saltaram dos Humvees brancos com as letras NU inscritas a negro. “Há grupos armados na vila que não querem sair e vai acontecer”. Era inevitável o confronto frente-a-frente, recorda o sargento. “É um momento difícil, porque não sabemos o que o grupo armado vai fazer”, explica. O inimigo vai fugir? Vai fazer fogo? Vai fazer fogo e fugir? Vai colocar armadilhas? Rodrigo Silva geria todos os cenários possíveis à medida que avançava na revista casa a casa.

Alguns dos elementos do grupo armado resistiram à investida dos comandos portugueses  e somaram baixas ao grupo que nenhum elemento se dispôs contabilizar, como que num código de silêncio em sinal de respeito. Muitos fugiram pelas traseiras da principal igreja da cidade, na zona oeste, deixada propositadamente livre pela força da ONU para permitir que escapassem. “A nossa missão não era aniquilar o grupo” mas garantir a recuperação daquele ponto, explica o tenente-coronel Varino.

Sérgio Freitas seguia ao lado do sargento Silva à medida que revistavam as dezenas de habitações. “Naquele momento, passam-nos muitas coisas pela cabeça, porque temos o intuito de caçar, mas, ao mesmo tempo, eles também são caçadores”, admite. “Qualquer passo em falso pode ser a eliminar para nós” e, por isso, “ao entrar numa casa ou ao fazer uma travessia, temos de manter a atenção redobrada para não haver fatalidades”. Pelo rádio, a equipa ia recebendo as orientações do comandante Alexandre Varino. Em sete horas, a cidade estava nas mãos dos portugueses. Algumas baixas do lado do grupo armado; um cenário diferente do lado da força portuguesa.

“Um militar ferido ou morto é um insucesso”

Foi a primeira vez que os três militares  se cruzaram numa missão. Nenhum se estreava num teatro de operações mas, para o tenente-coronel, aquela era primeira experiência como comandante de uma força. “A diferença é significativa, há muito mais peso” sobre os ombros, porque, “quando se comanda, não cuidamos só de nós, cuidamos de nós e de todos os outros que estão sob o nosso comando, temos o dever de zelar por eles, pela sua segurança, para que as regras sejam cumpridas e para que tudo corra como deve ser”, explica o comandante. “É um peso diferente.”

Alexandre Varino integrou o 100º curso de Comandos. “Esse curso teve um peso um simbólico maior, porque era o reativar de uma unidade importante da história militar, os Comandos, que têm 56 anos e são a unidade mais condecorada das Forças Armadas”, diz ao Observador.

São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, Afeganistão — o currículo de missões já ia longo quando Alexandre Varino foi apontado comandante da segunda Força Nacional Destacada na República Centro Africana. A influência de um tio, antigo militar do Exército, e o fascínio pela “atividade física, pela disciplina, pelo rigor e pela ordem” empurraram-no para uma carreira nas Forças Armadas.

Foi na Academia Militar que teve o primeiro contacto com as tropas especiais e foi aí que decidiu desafiar-se num dos cursos mais exigentes — o de Comando. Mas em 1996, quando terminou a formação, o Regimento tinha sido extinto por decisão política (em 1993), na sequência da morte por exaustão de dois recrutas do curso e uma terceira morte sem explicação clara, nos anos anteriores.

O militar chegou a apresentar-se como candidato ao curso de Operações Especiais, mas não prestou provas porque os superiores se recusaram a dispensá-lo das suas funções na Escola Prática de Infantaria. Estava na região autónoma, já como comandante de companhia, quando a unidade de Comandos foi reativada, em 2002. Entretanto promovido a capitão, Alexandre Varino inscreveu-se. Integrou o curso 100 daquela força. “Esse curso teve um peso simbólico maior, porque era o reativar de uma unidade importante da história militar, os Comandos, que têm 56 anos e são a unidade mais condecorada das Forças Armadas”, diz ao Observador.

Na República Centro Africana, já como tenente-coronel e com meia dúzia de missões na ficha militar, Alexandre Varino teve mais de 100 homens sob o seu comando.

A preparação da missão começou cerca de seis meses antes da partida para África, assim que a primeira força portuguesa embarcou rumo a Bangui, no início de 2017. “O comandante tem de conhecer tudo: o teatro, as ameaças, a história do conflito e a sua própria força, à medida que é constituída”, explica ao Observador. Há ainda todo um processo burocrático, que envolve passaportes, preparação sanitária, exames médicos e a preparação tática e física dos militares.

1 milhão

A República Centro Africana é o sexto país mais pobre do mundo (em função do PIB per capita), o país com mais baixo nível de desenvolvimento humano (segundo as Nações Unidas), com uma esperança média de vida de 51 anos. Metade da população, que rondará os 4,5 milhões de pessoas, precisa de ajuda humanitária. O conflito atual já obrigou um milhão de centro africanos a abandonar as suas casas e mais de 400 mil fugiram do país.

Nalguns casos, ainda há questões menos óbvias que também têm de ser acauteladas — como tirar a carta. “As equipas de comandos são constituídas por cinco militares, um tem a função de condutor e, esses, a força já os terá quase todos” quando recebe a indicação de destacamento, diz o tenente-coronel. “Mas é sempre vantajoso na equipa ter mais de um militar com capacidade para conduzir, porque os deslocamentos são demorados, cansativos”, como aconteceu na viagem até Bocaranga e, logo a seguir, na subida até Bang, junto à fronteira com o Chade e os Camarões, o segundo ponto a ser recuperado das mãos de um grupo armado (naquele caso, o MPC), dias mais tarde.

O que significa falhar uma missão? “Poder ter um militar ferido ou morto é um insucesso, porque não quero que algum dos meus homens fique ferido ou que morra", diz o comandante da missão portuguesa na República Centro Africana. O risco esteve sempre presente. "Do lado de lá estão militares como nós", diz.

África não era novidade para o tenente-coronel. A República Centro Africana, sim. Numa missão de alto risco como aquela que os militares portugueses desempenham no país — neste momento, são os militares paraquedistas a assegurar a representação portuguesa —, o perigo é constante. “Para nós, não correr bem é termos uma baixa, e isso pensa-se sempre”, admite o comandante. “Poder ter um militar ferido ou morto é um insucesso, porque não quero que algum dos meus homens fique ferido ou que morra.” Nunca acreditou que pudesse perder um combate. Mas o risco de uma operação correr mal esteve presente. “Muitas vezes, porque do lado de lá estão militares como nós, com a mesma capacidade e que também disparam”, reconhece o tenente-coronel de 45 anos.

A missão Damakongo (que culminou com a libertação de Bocaranga e Bang) valeu à força portuguesa um louvor do general Simbuliani, comandante do setor. A nota — a primeira de três distinções ao trabalho dos militares portugueses na RCA — destaca a “iniciativa”, a “disciplina”, o “profissionalismo” e o “compromisso” que a Força de Reação Rápida (Quick Reaction Force) mostrou naqueles cenários. O nome de Alexandre Varino também é referido nesse louvor, para assinalar o “profissionalismo” e a “capacidade de liderança” do comandante português — mas o tenente-coronel relativiza. “O importante é a força” portuguesa que esteve no terreno. A operação no norte da RCA foi um caso limite, um ataque organizado pela força portuguesa para anular (ou repelir) um inimigo. A maior parte dos dias da missão foi dedicada a patrulhas na capital. Outro cenário, o mesmo risco iminente.

Combates em silêncio a 6 mil quilómetros de casa

Os militares que participam na missão na RCA sabem os riscos a que estão sujeitos. Passou mais de um ano desde a chegada dos capacetes azuis portugueses ao país e a tensão está a níveis explosivos. No início de abril, uma patrulha de paraquedistas “foi flagelada com tiros de armas ligeiras por elementos de um grupo armado” num bairro residencial de “influência muçulmana”, referiu então ao Observador uma fonte militar que acompanha a missão portuguesa no país. Nesse ataque, nenhum elemento daquela força especial ficou ferido, mas, exatamente uma semana mais tarde, um militar português sairia ferido, atingido por estilhaços de granada, de uma outra operação na capital. “Desde finais de 2017, quando a violência no país voltou a ganhar expressão, foi primeira vez que houve um ataque” a militares das Nações Unidas, disse então outra fonte militar ao Observador. A exceção está a tornar-se regra para a missão das Nações Unidas.

Um militar português ferido com estilhaços de granada na República Centro Africana

O trânsito em Bangui é caótico. Há motas que se cruzam por todo o lado, as buzinas apitam de forma ininterrupta. E, apesar de na capital haver edifícios em tijolo e cimento, a construção é maioritariamente precária, não há eletricidade, o saneamento básico é inexistente — os detritos são lançados de um balde pela janela das casas. As escolas estão destruídas, os hospitais não funcionam.

Na linguagem militar, o território está organizado por faixas de 360 graus, distinguidas entre si por um valor, a seguir à sigla PK, atribuído em função da distância desse ponto face ao centro. Por exemplo, a zona PK3, em que o “PK” significa, literalmente, pour kilometre, na expressão francesa, é a terceira mais distante do ponto zero, e fica a três quilómetros dessa referência central.

A população da capital do 6º. país mais pobre do mundo reúne-se com base na sua identidade religiosa, católicos com católicos, muçulmanos com muçulmanos — a religião foi, aliás, um dos principais motivos de um tumulto político com consequências sociais e militares fatais que, em 2013, levou à deposição do então presidente, o general François Bozizé, que já tinha assumido o poder com recurso à violência; a par da religião, o conflito é motivado por uma forte disputa pelo controlo dos recursos naturais do país.

Bangui continua a ser a única zona controlada pelo Governo centro africano e a força portuguesa esteve quase sempre destacada no terceiro distrito da cidade, um reduto muçulmano enclausurado entre outros bairros de maioria católica. Durante a presença dos comandos na República Centro Africana, o general Balla Keïta confiou aos portugueses a missão de erradicar os grupos armados que continuam a controlar partes significativas do território, inclusive em Bangui. Essa missão não foi concluída por aquela força, rendida no início deste ano depois de dois destacamentos consecutivos, e a tarefa passou para as mãos dos paraquedistas. Esse objetivo do comandante-geral da MINUSCA ajuda a explicar a crescente tensão com os capacetes azuis.

“Hoje em dia, esses grupos, inicialmente denominados de auto-defesa, dedicam-se à extorsão da população, funcionam como um grupo com armas, organizado, com líder e que controla determinada região dentro desse bairro” onde a força nacional esteve instalada, diz o tenente-coronel Alexandre Varino para explicar por que razão a própria ONU decidiu alterar a denominação destas unidades, de grupos de auto-defesa para grupos armados. Apesar de haver uma maior presença do Governo na capital, mesmo ali a tensão está presente a todo o momento.

Nas patrulhas que fizeram em Bangui, os militares portugueses foram-se apercebendo de que a missão da ONU não era recebida com o mesmo entusiasmo por toda a população centro africana. “A opinião não era toda igual, havia pessoal que nos apoiava e outros que não, que insultavam, não tanto com insultos verbais mas através de gestos”, diz o cabo Freitas. Por vezes havia lançamentos de pedras contra os militares. Noutros casos, eram feitas emboscadas como a que visou os paraquedistas, já este mês.

Os comandos optaram sempre por desvalorizar esses sinais. “Não era essa a nossa missão e, além disso, qualquer atitude negativa da nossa parte seria pior”, porque potenciava o conflito, explica o cabo.

O cabo Freitas queria mesmo tentar concluir o curso de comandos. “Para me desafiar a mim próprio”, diz. “Ouvi falar de uma tropa rija, dizia-se que era complicada.” Não imaginou que fosse tão rija. Foi o frio, a ele que veio da Covilhã, o que mais o marcou nas provas da formação.

A namorada ficou à espera em Lisboa, a mais de seis mil quilómetros de distância, quando o militar partiu para a missão. Instalados no acampamento de Bangui, perto do aeroporto, onde a força passou a maior parte dos cerca de sete meses de missão, a comunicação com a família estava facilitada. Uma ligação através do WhatsApp e ficavam tranquilos. “Sempre que conseguíamos ter comunicações” — e a própria missão disponibilizava sinal WiFi aos militares destacados —, “comunicava para casa, dizia que estava tudo bem, para não se preocupar”, recorda das conversas com a namorada.

Os pormenores, guardava-os para si. “Por vezes, apareciam notícias das ações que fazíamos, mas não lhe explicava detalhadamente, porque há coisas que ficam para nós e que não devemos partilhar”, resume o cabo. Fora da capital — precisamente quando se realizavam as missões de ataque as grupos armados —, essa tarefa tornava-se impossível. Sem ligação à Internet, em alguns casos o silêncio chegou a prolongar-se por mais de um mês.

Em março do próximo do ano, esses problemas ficam para trás. O contrato que o militar assinou  com o Exército expira — representando o fim de seis anos da ligação com as Forças Armadas. Já tinha concorrido uma primeira vez àquela que viria a ser a sua força especial, em 2007, mas, como “demoraram muito a responder”, desistiu. Trabalhou como técnico de aparelhos de ar condicionado até que, em 2012, com os clientes a escassear, voltou a tentar a tropa. O cunhado, um boina verde dos paraquedistas, já tinha partilhado com ele algumas histórias sobre a vida militar. Mas Freitas queria mesmo tentar os comandos. “Para me desafiar a mim próprio”, diz. “Ouvi falar de uma tropa rija, dizia-se que era complicada.” Quando assistiu a uma reportagem sobre três irmãos gémeos que partilhavam uma vida militar, sentiu a motivação que faltava.

Procurou informação sobre aquela força especial, queria estar preparado para o percurso até conquistar as insígnias. “Já estava mentalizado de que ia ser duro, mas não imaginava que fosse tanto. Pude comprovar que não é fácil conseguir a boina e o crachá de comando”, admite. Apesar de ter crescido na Covilhã e de estar habituado ao frio seco da serra da Estrela, aquilo que deixou a marca mais profunda das semanas de curso foi o frio que sentiu. “Cheguei a ver camaradas a pedir para desistir, porque já não conseguiam aguentar as provas, e quando me senti um pouco mais débil foi quando me expus mais ao frio”, recorda. O curso decorreu durante o inverno. Num momento, o corpo ferve com a exigência dos exercícios físicos a que são sujeitos. No outro, os recrutas estão gelados. “A camaradagem e a entreajuda que se cria é o que nos fica mais presente”, garante.

Sérgio Freitas não tem um modelo de militar a apontar. “Cada um é comando à sua maneira e eu sou-o à minha, tento cumprir a minha missão da melhor maneira possível”, diz ao Observador. Mas o prazo está a expirar. Traído pela idade — tinha 23 anos quando entrou para as Forças Armadas —, falhou o objetivo inicial de integrar os quadros do Exército. Por isso, o cabo já tem em marcha o seu plano B: “Enquanto aqui estive, tive oportunidade de estudar”, conta. Está no segundo ano da faculdade, curso de gestão. “Cada um tira o melhor proveito do seu tempo livre, cada um tem uma visão diferente” daquilo que vai fazer quando despir a farda.

Diferenças dentro de muros

Rodrigo Silva está há 14 anos no Exército. Esteve três vezes no Afeganistão antes de embarcar para a sua quarta missão, na República Centro Africana, e quando partiu já tinha uma “noção” do que o esperava. “Agora, uma coisa é essa noção prévia, outra é estar no teatro e viver a situação em si.”

O sargento estudou a lição. Quando fala sobre os seus sete meses em África, descreve a topografia, deixa pequenos apontamentos sobre a geografia e mesmo as matizes culturais estão bem presentes. “Eles [os elementos dos grupos armados] sabem que somos de um país católico, e como as nossas missões preponderantes foram contra grupos armados na zona de Bocaranga, em tudo o que era bairros muçulmanos havia uma resistência passiva à nossa passagem”, conta o militar de 34 anos.

Esse contacto com gentes de outras paragens também se fazia sentir quando regressavam ao quartel em que estiveram instalados, num acampamento francês das Nações Unidas próximo do principal aeroporto do país. Ali, partilhavam o espaço do com forças de França, Nepal, Marrocos, Sri Lanka, Burundi, entre outros.

“A NATO obriga a normalizar procedimentos, a ONU não”, nota o sargento. “Tínhamos países com hábitos completamente diferentes e isso é muito mais difícil de conciliar” porque, explica, “enquanto um militar de qualquer país NATO sabe falar inglês, naqueles países isso não acontece”.

Dentro dos muros do aquartelamento, as diferenças entre as forças, ainda que notórias, eram fáceis de conciliar e ultrapassar. No terreno, essa gestão era mais complicada. Em teoria, a força portuguesa só seria chamada a intervir em Bangui quando a situação no terreno se tornasse complicada. A prática revelou outra realidade. “Muitas vezes, a Joint Task Force Bangui — que agrega todas as forças militares e policiais de Bangui — necessitava de pessoal e pedia a nossa intervenção para fazer patrulhas conjuntas com outros países”, recorda o comandante da força portuguesa.

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