24 de fevereiro de 2022
3h40
Na pequena vila de Milove, uma pequena povoação ucraniana com cerca de cinco mil habitantes situada na região de Lugansk e encostada à fronteira com a Rússia, já ninguém dorme. Há movimentos militares ruidosos por todo o lado e já não restam dúvidas: após meses de antecipação da guerra e de ameaças por parte de Moscovo, a invasão russa tinha verdadeiramente começado e os moradores de Milove, uma vila que durante anos foi um símbolo da união entre russos e ucranianos, eram os primeiros a senti-la.
Os relatos da invasão consumada demoram poucos minutos a chegar a Kiev. Em poucas horas, a ofensiva russa chegaria a toda a região oriental da Ucrânia, com colunas militares — aquelas que durante meses se acumularam junto às fronteiras com a Ucrânia — a entrar no país pelo norte, leste e sul.
Durante meses, o governo ucraniano preparara-se para a possibilidade de uma invasão russa e a comunidade internacional olhava para a Ucrânia com expectativa. Nos últimos dias, líderes europeus incluindo o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, tinham viajado até Moscovo para as últimas tentativas desesperadas de dissuadir Vladimir Putin de avançar para uma ofensiva militar de grande escala contra a Ucrânia.
Sem sucesso. Três dias antes daquela madrugada de horror, Vladimir Putin reconheceu formalmente em nome da Rússia a independência das autoproclamadas repúblicas populares de Lugansk e Donetsk, as duas regiões separatistas pró-russas situadas no leste da Ucrânia que durante oito anos Moscovo apoiou numa sangrenta guerra contra as forças de Kiev. A independência não foi reconhecida pela comunidade internacional, o que não impediu Moscovo de assinar tratados de amizade e cooperação militar com os recém-formados “países”. Os primeiros militares russos dirigiram-se para território ucraniano nesse mesmo dia, ainda sob a designação de “forças de paz”, para ajudar os tais países amigos cuja independência Moscovo acabara de reconhecer. Mas estava aberta a porta a uma verdadeira invasão e já se antecipavam os argumentos que Putin usaria para a justificar: ajudar os “países” amigos, agora que eles eram independentes, a defender-se contra os “nazis” ucranianos.
Às 5h da manhã, uma hora e vinte minutos depois de os militares russos terem entrado em território ucraniano através de Milove, precipitam-se para o palácio presidencial de Kiev os principais conselheiros do Presidente Volodymyr Zelensky. O primeiro a chegar é o ministro da Administração Interna, Denys Monastyrsky. O segundo é Oleksiy Danilov, secretário do Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia e principal conselheiro do governo de Kiev para as questões da defesa. Zelensky não dormiu, está de camisa branca e dirige-se aos conselheiros com poucas palavras:
— Bom, então? Vamos lutar!
A primeira decisão é a de convocar uma reunião de emergência do Conselho de Segurança Nacional, para implementar a lei marcial sem demoras — ideia que no dia anterior chegara a ser ponderada, mas depois abandonada, com medo de que a Rússia a usasse como argumento público para afirmar que havia sido a Ucrânia a provocar a invasão ao declarar a lei marcial. A Ucrânia entrava oficialmente em guerra.
Tudo isto seria mais tarde revelado pelo próprio Oleksiy Danilov numa entrevista ao jornal ucraniano Pravda, na qual descreveria o ambiente que se vivia no parlamento ucraniano no dia em que a guerra começou: “Quando entrei na sala para apresentar o decreto presidencial, a decisão do Conselho de Defesa e Segurança Nacional sobre a lei marcial, todos estavam tensos e eletrificados.”
Completam-se este sábado 150 dias desde a invasão russa da Ucrânia. Nestes cinco meses, a Rússia já lançou ataques sangrentos sobre praticamente todo o território ucraniano, mantendo atualmente o controlo sobre uma grande parte da região oriental da Ucrânia (incluindo as regiões de Donetsk e Lugansk), bem como uma parte considerável da região sul do país, contígua à península da Crimeia, anexada por Moscovo em 2014.
De acordo com números oficiais das Nações Unidas, a guerra na Ucrânia já provocou a morte a pelo menos 5.110 civis, incluindo 346 crianças, e deixou pelo menos 6.752 civis feridos, incluindo 547 crianças. Mas, como admite a própria ONU, os números reais serão “consideravelmente mais elevados”, uma vez que ainda é impossível saber exatamente quantas pessoas morreram no massacre de Mariupol, que atualmente ainda se encontra sob controlo russo (terão sido milhares os mortos, segundo estimativas ucranianas), e em vários outros pontos do país onde há relatos de massacres cujos números são impossíveis de contabilizar.
Ao longo dos últimos meses, a comunidade internacional tem tentado dar resposta a uma pergunta central: o que quer Putin com esta guerra? O Presidente russo tem recorrido a múltiplos argumentos, incluindo a ideia de que a Rússia tem o dever de proteger os separatistas pró-Moscovo que habitam a região oriental da Ucrânia, mas também o argumento de que a Rússia tem o direito legal de se proteger contra os avanços territoriais da NATO. Putin tem ainda invocado a necessidade de “desnazificar” a Ucrânia e colocado a responsabilidade do lado ocidental, afirmando que foi a Ucrânia que violou os acordos de paz, que o Ocidente também invadiu países e que a Rússia e a Ucrânia sempre foram um só povo unido pela história, pelo que urge corrigir o erro cometido com a independência.
Na última semana, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, avisou que os objetivos territoriais da Rússia na invasão da Ucrânia mudaram e estendem-se, agora, além da região de Donbass.
Independentemente dos objetivos e motivações de Moscovo para invadir a Ucrânia, há um aspeto inegável: a guerra de grande escala voltou ao continente europeu após várias décadas e o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia já mudou decisivamente a organização geopolítica mundial, lançando fortes dúvidas sobre a possibilidade de uma relação pacífica entre Moscovo e o continente europeu (por exemplo, no que toca à dependência europeia das fontes de energia russas), sobre os alinhamentos das grandes potências globais e até sobre a utilidade e eficácia das Nações Unidas, que se tem visto de mãos atadas na procura da paz na região — o encontro entre António Guterres e Vladimir Putin em Moscovo, em abril, quando o secretário-geral da ONU classificou taxativamente de “invasão” a ação da Rússia sobre a Ucrânia, e o acordo firmado já esta sexta-feira entre os dois países para a exportação de cereais retidos em território ucraniano é o que de mais palpável a organização tem para apresentar como mediadora do conflito.
Da fronteira invisível à vedação de três metros
“A invasão começou às 3h40 na região de Lugansk, em Milove, mas pensámos que eles iriam entrar no território das regiões de Donetsk e Lugansk”, revelou Oleksiy Danilov na entrevista que deu em abril ao jornal Pravda. “Acreditávamos que o objetivo deles depois do reconhecimento das ‘repúblicas’ era controlá-las dentro dos limites das regiões. Mas, após uma hora e vinte minutos, a ofensiva começou em todo o lado.”
À partida, o facto de os primeiros combates desta guerra terem tido lugar na pequena vila fronteiriça de Milove pode parecer uma trivialidade sem importância. Todavia, a história de Milove mostra que não: aquela povoação foi, historicamente, um laboratório para compreender as relações entre a Rússia e a Ucrânia e, nos últimos anos, ilustrou particularmente bem as divisões provocadas pelo conflito entre os dois países. Agora, recebeu ainda mais uma carga simbólica: a de epicentro da guerra que assola a Europa.
Olhando para o mapa, percebe-se rapidamente que Milove não é uma vila isolada no meio da ruralidade ucraniana. Pelo contrário, a pequena povoação fica mesmo encostada à cidade russa de Chertkovo, do outro lado da fronteira. Aliás, vendo uma imagem de satélite da região sem marcações cartográficas sobrepostas, dir-se-ia até que se trata de uma única cidade, sem qualquer separação. Só observando a linha da fronteira se percebe que, na verdade, existe uma divisão a meio do povoado: a oeste, fica a ucraniana Milove; a leste, a russa Chertkovo.
“A vila de Milove situa-se na região de Lugansk, numa zona fronteiriça com a Rússia. É descrita em todos os manuais escolares de geografia como o assentamento mais oriental da Ucrânia”, segundo escrevem os académicos Roman Slyvka e Iryna Zakutynska, num capítulo dedicado ao fenómeno urbanístico Milove/Chertkovo incluído no livro Spatial Conflicts and Divisions in Post-socialist Cities, editado em 2020 pela Springer.
Para conhecer a origem da pequena vila de Milove é preciso recuar até ao século XIX, ao tempo do Império Russo. Segundo aqueles académicos, a primeira referência a Chertkovo data de 1869, quando foi construída o caminho de ferro do norte do Cáucaso, uma importante linha de comboios que permitia o acesso aos portos russos no Mar Negro. Chertkovo era, na realidade, uma estação de comboios daquele caminho de ferro — uma estação que ainda hoje existe — em torno da qual surgiu uma primeira povoação. Ao lado da estação ferroviária, surgiu posteriormente o assentamento agrícola de Milove, que é mencionado pela primeira vez em 1872.
Na altura do Império Russo, Chertkovo e Milove, apesar de serem, na essência, um único povoado, já pertenciam a províncias imperiais diferentes, já que a fronteira regional era ali marcada pela linha férrea. Essa tensão paradoxal entre a divisão e a união, presente na localidade desde a fundação, viria a marcar decisivamente a história de Milove até aos dias de hoje.
A queda do Império Russo, com a revolução de 1917 e as guerras que se seguiram, abriu a porta a um período conturbado na região. A manutenção das fronteiras administrativas anteriores levou a que Chertkovo ficasse sob jurisdição da província do Cáucaso Norte, na República Socialista Federativa Soviética da Rússia, enquanto Milove ficou na República Socialista Soviética da Ucrânia, com a fronteira administrativa entre as duas repúblicas soviéticas a ser colocada a meio daquela povoação que vivia unida. A guerra da independência da Ucrânia, entre 1917 e 1921, traduziu-se em conflitos fronteiriços em Milove/Chertkovo, um povoado onde mais de dois terços da população se assumia de etnia ucraniana, mas que ficava, agora, maioritariamente do lado russo.
Depois da conquista do território ucraniano pelo Exército Vermelho e da inclusão definitiva da Ucrânia na União Soviética, a população das vilas gémeas Milove/Chertkovo acabou por voltar à união, apesar da fronteira formal. “A população de ambas as vilas sofreu os efeitos da política soviética de coletivização forçada, da grande fome, da sovietização e da russificação. As disputas fronteiriças ficaram no passado; de facto, as duas vilas uniram-se num único assentamento”, afirmam Roman Slyvka e Iryna Zakutynska. “Apenas uma linha de fronteira administrativa, invisível e formal, passava entre as duas vilas.”
Um século depois, como notam os mesmos académicos, a população das vilas gémeas inverteu-se por completo. Atualmente, mais de 80% dos habitantes são de etnias russas e apenas um décimo de etnia ucraniana — algo que Slyvka e Zakutynska atribuem à eficácia das violentas políticas de russificação implementadas no período soviético. O efeito destas políticas reflete-se hoje profundamente na região de Donbass, onde uma grande parte dos ucranianos se identifica com a Rússia, apoia politicamente Moscovo e se posiciona contra a europeização da Ucrânia — uma herança clara da mentalidade soviética, que afirmava uma união de todos aqueles territórios em torno da centralidade de Moscovo.
O colapso da União Soviética e a independência da Ucrânia, em 1991, teve grande impacto nas vilas gémeas de Milove/Chertkovo. Pela primeira vez, surgiu ali um posto fronteiriço e a antiga fronteira regional transformou-se numa verdadeira fronteira entre dois países independentes. Ainda assim, durante a década de 1990, a relativa paz entre Moscovo e Kiev (o desejo ucraniano de ocidentalização ainda não preocupava excessivamente a Rússia, que continuava a manter a Ucrânia sob uma grande influência devido ao fornecimento de gás natural) não motivou grandes problemas: apesar da independência, os habitantes de ambas as vilas continuaram a frequentar habitualmente os dois lados da fronteira.
Tudo mudou já no século XXI, à medida que as relações entre a Rússia e a Ucrânia se foram deteriorando. Ao longo das três décadas de independência, a Ucrânia foi palco de um complexo conflito identitário interno, oscilando entre o desejo de ocidentalização e integração europeia e a relação histórica com a Rússia — sobretudo na região oriental do país, onde a presença de etnias russas e da língua russa é significativa, bem como a identificação com a Igreja Ortodoxa Russa, e onde existe uma maior resistência à europeização da Ucrânia, registando-se uma preferência pela proximidade a Moscovo.
A crise eclodiu em 2013, quando a Ucrânia se preparava para assinar um acordo de associação com a União Europeia, que daria ao país um estatuto formal de aproximação ao bloco europeu e abriria caminho a uma futura adesão completa à UE — um desígnio apoiado pela maioria dos ucranianos. Na altura, por pressão da Rússia, o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych, um antigo governador da região de Donetsk que presidia ao país desde 2010, cedeu à pressão de Putin e rasgou o acordo a poucos dias da assinatura, o que abriu as portas a uma grave crise política, com enormes manifestações em Kiev — um movimento que ficaria conhecido como “Euromaidan”, uma vez que os protestos pró-Europa tiveram palco na Maidan Nezalejnosti, ou Praça da Independência, na capital ucraniana. Os protestos intensificaram-se em fevereiro de 2014 e a violenta resposta policial resultou na morte de dezenas de manifestantes — e a escalada da violência levou à destituição de Yanukovych e ao seu exílio na Rússia.
A intensificação da violência dentro da Ucrânia entre os pró-Moscovo e os pró-Ocidente levou a uma escalada dos protestos pró-Rússia na região oriental do país e na península da Crimeia — as zonas de maior influência russa. Em março de 2014, a Rússia anexou a Crimeia ao seu território, na sequência de um referendo favorável à independência que a comunidade internacional nunca reconheceu como válido. Atualmente, a Crimeia é de facto uma região administrada pela Rússia, embora continue formalmente a pertencer à Ucrânia no entender de praticamente toda a comunidade internacional.
A anexação da Crimeia em 2014 foi a gota de água nas relações crescentemente tensas entre Kiev e Moscovo e aprofundou as fraturas que perduram até hoje e que conduziram à guerra.
Esta transformação nas relações entre a Rússia e a Ucrânia também se repercutiu em Milove, a pequena vila onde russos e ucranianos sempre tinham vivido em harmonia e alheios a diferenças de nacionalidade. Em 2019, numa altura em que a guerra em Donbass entre as forças ucranianas e os separatistas pró-Moscovo (e apoiados pela Rússia) já tinha causado mais de 13 mil mortes, a estação televisiva Al Jazeera fez uma reportagem em Milove, uma “vila única” que era descrita como “uma boa visualização da atual situação da Ucrânia, partida ao meio pelo peso do seu passado”.
Poucos meses antes da reportagem, o fosso entre Kiev e Moscovo tinha ganhado forma entre Milove e Chertkovo: em agosto de 2018, as autoridades russas construíram uma enorme vedação na linha fronteiriça, até então relativamente imaginária, que separa as duas povoações e, por isso, os dois países. A vedação inédita, que dividiu ao meio aquilo que na prática sempre foi uma só povoação, não escapou à ironia de ter sido construída justamente ao longo da rua onde se situava a fronteira e que dava pelo nome de “Rua da Amizade entre os Povos”.
A vedação de três metros erguida em 2018 lançou o caos sobre uma vila que, de repente, se viu dividida ao meio.
“Antes da vedação, as lojas da nossa vila tinham tudo. A população era maior. Depois da vedação, as pessoas começaram a fechar as lojas e a ir embora”, comentava em 2019 à Al Jazeera o jovem ucraniano Maxym Brus, um estudante de 20 anos que frequentava o curso de engenharia mecânica num instituto politécnico do lado russo, mas que vivia do lado ucraniano. “Costumávamos ir às lojas daquele lado e eles costumavam vir cá. Tudo tinha vida. Agora, até mesmo em dia de mercado não há aqui nada de especial.”
O mesmo dizia àquela estação televisiva a comerciante ucraniana Lyudmyla Oleksiivna, de 64 anos — idade mais que suficiente para se lembrar dos muitos anos de paz que antecederam a construção da vedação: “Tudo estava bem antes. Vivíamos em amizade. Havia concertos, vinham músicos de todo o lado. Tínhamos festas em conjunto em outubro e ninguém se importava se éramos russos ou não.”
Uma reportagem da Radio Free Europe publicada em janeiro de 2019 captava os mesmos sentimentos. “Os russos compravam frutas e vegetais aqui, porque eram mais baratos e de melhor qualidade”, dizia Olena, uma ucraniana residente em Milove. “Agora, o pequeno comércio está a passar por um período difícil.”
A relação calorosa entre Milove e Chertkovo congelou no verão de 2018. Não só pela vedação, encimada por arame farpado, que desenha visivelmente uma linha de fronteira que os habitantes sempre consideraram uma formalidade invisível, mas também pelos guardas fortemente armados que passaram a patrulhar os poucos checkpoints através dos quais era possível cruzar a fronteira. A ponte pedonal sobre a linha férrea paralela à Rua da Amizade entre os Povos, que marca a fronteira entre Rússia e Ucrânia, foi transformada no principal posto fronteiriço da região.
Com a fronteira fechada, ambos os países implementaram regimes diferentes relativamente a quem podia cruzar a fronteira e em que condições o podia fazer. Enquanto as autoridades russas permitiam que qualquer ucraniano residente em Milove cruzasse livremente a fronteira para frequentar o lado de Chertkovo, as autoridades ucranianas passaram a exigir o passaporte, acompanhado de um convite por parte de um residente de Milove, a qualquer russo que pretendesse visitar o lado ucraniano.
Isto causou graves problemas a famílias, trabalhadores, estudantes e amigos em ambos os lados da fronteira. “Até agora, nós temos permissão para passar”, dizia em 2019 à Al Jazeera a ucraniana Lyudmyla Oleksiivna. “Mas os nossos amigos e familiares do lado russo precisam de um passaporte de viagem e de um convite para nos visitar”, acrescentava, lamentando que a exigência de passaporte constituía uma barreira para os russos: “Cada visita tem de ser marcada no passaporte. Quantas páginas tem um passaporte? Rapidamente se esgotam e é preciso um novo. E quanto custa? É normal precisar de um convite para visitar uma irmã?”
À Radio Free Europe, Olena contava o mesmo: “Visitávamo-nos uns aos outros, éramos amigos, muitos de nós trabalhavam do outro lado. Agora, tudo isso ficou no passado.”
A imposição de uma fronteira fechada a meio da povoação de Milove/Chertkovo levou, em alguns momentos, a uma grande estagnação na vida da localidade, com muitos residentes a abandonarem o lugar onde nasceram.
Esta estagnação foi particularmente sentida em novembro de 2018, num dos picos de tensão entre a Ucrânia e a Rússia antes da guerra, quando o então Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, impôs a lei marcial depois de as forças russas terem atacado três navios ucranianos no Mar Negro. Na altura, ao abrigo da lei marcial, a Ucrânia proibiu todos os homens russos entre os 16 e os 60 anos de idade de entrar no país, com o objetivo de “impedir a Federação Russa de criar destacamentos ou exércitos privados” em território ucraniano. Nessa altura de grande tensão, a vida em Milove praticamente parou, com os cidadãos de ambos os lados retidos nos seus países.
Como explicava na época a Radio Free Europe, “a burocracia adicional para atravessar a fronteira fez diminuir o comércio, provocando escassez de alguns bens e oportunidades para os mais empreendedores”. Com efeito, as dificuldades na fronteira levaram a um crescimento das atividades de contrabando na região — especialmente de salsichas, vodca e gasolina. “Escondem salsichas e garrafas de vodca nas mangas e nos bolsos, levam-nas para Chertkovo e vendem-nas lá. Consegue-se fazer 20 a 25 hryvnias [50 a 70 cêntimos] de lucro por cada uma”, dizia àquela reportagem um habitante de Milove que optou por não se identificar. No sentido contrário, contrabandeava-se gasolina, uma vez que o combustível russo era mais barato do que o ucraniano.
A porta de entrada da invasão russa e os “traidores” de Milove
Apesar de dividida a meio entre Rússia e Ucrânia, a povoação de Milove/Chertkovo não tem dúvidas sobre a sua união — e sobre o apoio que dá a Moscovo, como, aliás, sucede com uma parte considerável da população ucraniana que reside na região oriental do país, no Donbass. “Se os russos tivessem podido votar sobre a vedação, teriam rejeitado o projeto”, dizia convictamente à Al Jazeera o jovem ucraniano Maxym Brus. “Os meus amigos não me conseguem dizer porque é que isto acontecem”, afirmava, referindo-se ao seu círculo de amigos no politécnico russo.
Após mais de um século de vida em comunidade, a população de Milove/Chertkovo é hoje composta maioritariamente por cidadãos russófonos que se identificam com a esfera de influência da Rússia e se opõem à europeização da Ucrânia — que, aliás, culpam pelo caos e pela divisão que se abateu sobre a sua terra-natal. “Antes, vivíamos em conjunto e era melhor”, dizia em fúria, à Al Jazeera, o comerciante ucraniano Andrii Petrovych, que trabalhava mesmo junto à vedação. “E, depois, eles quiseram ir para a Europa, raios!”
Ao longo dos últimos três anos, a tensão crescente entre a Rússia e a Ucrânia também se traduziu num aumento da agitação social em Milove e Chertkovo, uma povoação dilacerada e partida ao meio pela guerra do Donbass e marcada pela tensão entre a unidade e a dualidade há mais de um século — um caldeirão de simbolismo que só aumentou quando, às 3h40 do dia 24 de fevereiro de 2022, Milove se tornou o primeiro pedaço de território ucraniano a ser pisado pelos invasores russos.
Atualmente, ao fim de 150 dias de guerra, Milove e Chertkovo parecem ter voltado à unidade de outros tempos. Embora continuem a pertencer a países diferentes, a fronteira ter-se-á esbatido de novo: Chertkovo está em território russo e Milove dentro do território da autoproclamada República Popular de Lugansk, o Estado-marioneta totalmente controlado por Moscovo e ainda sob ocupação militar russa, numa altura em que o foco dos combates está justamente sobre a região de Donbass, onde a Rússia quer consolidar o seu controlo político e militar e criar uma região de tampão entre o seu território e o Ocidente.
As últimas estatísticas apontam para a existência de cerca de 15 mil habitantes na povoação de Milove/Chertkovo — cinco mil do lado ucraniano e 10 mil do lado russo. Devido à escassez de fontes de informação a partir da Rússia, é difícil saber exatamente qual a situação atual daquela vila, no epicentro de uma guerra que tem sido especialmente sangrenta e mortífera em Donbass. Do lado ucraniano, parece certo que se regista um alinhamento de Milove com as posições de Moscovo — e Kiev prepara-se para agir duramente contra as autoridades locais por deslealdade.
Ao longo dos últimos meses, o governo de Volodymyr Zelensky tem apertado o cerco aos traidores e colaboracionistas que têm passado informações confidenciais a Moscovo e permitido a infiltração dos russos na sociedade ucraniana. Na semana passada, as autoridades de Kiev já tinham aberto mais de 600 processos contra agentes e oficiais ucranianos por suspeitas de traição e colaboracionismo — incluindo algumas altas patentes militares.
Logo em abril, as autoridades militares ucranianas revelaram que quatro presidentes de câmara da região de Lugansk eram traidores e se tinham aliado às autoridades russas ocupantes. “Entre os líderes das cidades temos quatro traidores: em Rubizhne, em Milove, em Markivka e em Stanytsia Luhanska. Depois da vitória, veremos como a lei sobre o colaboracionismo se aplica a estas pessoas”, disse na televisão pública ucraniana o líder da administração militar regional de Lugansk, Serhii Haidai. Numa entrevista posterior, Haidai disse não ter ficado surpreendido pelo facto de o autarca Oleh Savchenko ter “vendido” a localidade ao “inimigo”, uma vez que se tratava de um membro do partido OPZZh (Plataforma de Oposição — Pela Vida), um partido pró-russo e eurocético que defendia a manutenção da Ucrânia sob a influência de Moscovo — e que em junho deste ano foi banido por decisão da justiça ucraniana.
Mais recentemente, em junho deste ano, os serviços de segurança da Ucrânia divulgaram uma nova lista de colaboradores, na qual se incluía uma mulher que ocupava a vice-presidência da câmara de Milove, que também pertencia ao OPZZh e que, de acordo com o jornal Pravda, se tinha voluntariado para ser a vice-presidente da administração distrital de Milove fiel à autoproclamada República Popular de Lugansk. Os colaboracionistas poderão ser condenados a penas de até 10 anos de prisão.
De acordo com Haidai, quando os russos invadiram a região de Lugansk logo em fevereiro, tentaram por diferentes meios que os líderes políticos da região se aliassem a Moscovo. O próprio Haidai terá recebido telefonemas de números russos com convites para se aliar às forças de Moscovo e com ameaças. Esses convites e ameaças foram feitos a todos os líderes políticos e militares da região de Lugansk, mas só três responsáveis aceitaram aliar-se aos russos. Um deles foi, justamente, o autarca de Milove, a vila que sempre se sentiu do lado errado da fronteira.