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Russian President Vladimir Putin
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Vladimir Putin tem coordenado as operações a partir de Moscovo

Anadolu Agency via Getty Images

Vladimir Putin tem coordenado as operações a partir de Moscovo

Anadolu Agency via Getty Images

Defender separatistas pró-Rússia, reagir a avanços da NATO, "desnazificar". Afinal, porque é que Putin invadiu a Ucrânia?

Para perceber o que se passa na Ucrânia, importa olhar para os dois lados. Na Rússia, Vladimir Putin usa vários argumentos para justificar a guerra — do suposto nazismo à defesa legal contra a NATO.

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A invasão da Ucrânia por parte da Rússia tem sido (quase) unanimemente caracterizada no Ocidente como injusta e ilegal, feita com base em argumentos falsos ou falaciosos. Todavia, na Rússia o cenário é diferente. Moscovo tem uma lista de argumentos a favor da guerra — ou melhor, da operação militar especial — na Ucrânia, classificando-a como uma ofensiva necessária para proteger o povo russófono oprimido por Kiev, para se defender contra os avanços do Ocidente, para manter pura a cultura russa na região e para desnazificar a Ucrânia.

Ao longo dos últimos meses, Vladimir Putin tem puxado de vários argumentos para justificar as suas intenções militares na Ucrânia, dependendo do público a quem se dirige e do momento do conflito. Falando para o Ocidente, acusa a NATO de escalada belicista e argumenta que a Rússia tem de garantir a sua própria segurança. Internamente, faz paralelismos entre o regime ucraniano e a Alemanha nazi e galvaniza o apoio popular comparando o prometido êxito militar na Ucrânia à vitória soviética sobre os nazis em 1945. Pelo meio, apela à identidade cultural e religiosa do povo russo, fortemente influenciado pela Igreja Ortodoxa Russa, para retratar o povo ucraniano como naturalmente pertencendo à esfera de influência de Moscovo. E, falando aos ucranianos, Putin assume-se como libertador de um povo oprimido por um regime neonazi.

Para perceber o conflito, importa naturalmente olhar para os dois lados. O que vai, então, na cabeça de Vladimir Putin? O Observador faz uma viagem pelos argumentos usados pela Rússia para justificar a invasão da Ucrânia.

Argumento 1. Proteger a região pró-Moscovo de Donbass

No dia 21 de fevereiro, três dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia, Vladimir Putin fez aquilo que muitos temiam que viesse a ser o gatilho para o início da guerra: reconheceu formalmente as regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, como países independentes, assinando como eles acordos de cooperação e amizade. Depois, discursou ao país, num ato de revisionismo histórico em que reescreveu vários capítulos da história da região e apresentando como inevitável a já mais que esperada ofensiva militar contra a Ucrânia.

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Muito do atual conflito entre Rússia e Ucrânia explica-se pela história das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, bem como a da Crimeia.

No primeiro caso, Donetsk e Lugansk estão no centro das tensões entre Rússia e Ucrânia desde há um século, tendo sido um dos grandes palcos da Guerra Civil que se seguiu à Revolução de 1917. Depois da guerra, as duas regiões ficaram integradas na República Socialista Soviética da Ucrânia e, sob a política nacionalista de Lenine, foi promovida a cultura e língua ucranianas na região. Sob Estaline, na década de 1930, a região mudou de figura. Estaline pretendia promover a língua e a cultura russas em toda a União Soviética, impondo a predominância da Rússia sobre toda a região. A chamada “russificação”, que passou pela promoção da língua e da cultura russas, mas também pelos horrores das deportações forçadas e da grande fome, afetou duramente a região de Donbass.

President of Russia Putin recognizes DPR and LPR

Putin e os líderes das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk no dia da assinatura dos acordos de cooperação, antes da invasão da Ucrânia

Anadolu Agency via Getty Images

Atualmente, apesar de a região de Donbass (genericamente composta pelos dois distritos de Donetsk e Lugansk) pertencer à Ucrânia, a língua mais falada é o russo e até a moeda mais comum é o rublo. Na região verifica-se um grande sentimento pró-Rússia, manifestado frequentemente por intenções separatistas, por uma grande oposição à ocidentalização da Ucrânia e por desejos de pertença à Federação Russa.

No caso da Crimeia, a história da península é ainda mais conturbada. A região era até 1954 parte da República Socialista Federativa Soviética da Rússia, mas foi nesse ano transferida para a jurisdição da República Socialista Soviética da Ucrânia. A decisão foi tomada por motivos pragmáticos (a construção de uma barragem no rio Dnipro ficaria facilitada se toda a região afetada estivesse sob a mesma jurisdição), mas também por motivos políticos: a passagem de um ponto estratégico como a cidade de Sebastopol (o porto-base da frota do Mar Negro, símbolo do poderio naval soviético) para a Ucrânia deixaria Rússia e Ucrânia unidas por um laço inquebrável.

Novamente, também no caso da Crimeia a língua e a cultura russas se mantiveram predominantes, apesar da transferência para a jurisdição ucraniana.

O colapso da União Soviética em 1991 e a subsequente independência da Ucrânia deixaram estas três regiões — maioritariamente russas do ponto de vista linguístico, cultural e até religioso — dentro do país recém-formado, alimentando tensões separatistas que se têm arrastado ao longo das últimas três décadas.

Estas tensões foram-se adensando à medida que a Ucrânia se foi aproximando cada vez mais do Ocidente, especialmente devido às intenções de Kiev de se juntar à União Europeia.

O inverno de 2013 marcou um ponto de rutura neste assunto. A poucos dias da data para a qual estava agendada a assinatura de um acordo de associação entre a Ucrânia e a UE (um primeiro passo rumo ao aprofundamento das relações entre Kiev e Bruxelas, com vista a uma eventual adesão à UE), a assinatura foi cancelada depois de o então Presidente ucraniano, o político pró-russo Viktor Yanukovich, ter cedido à pressão de Moscovo. O cancelamento da assinatura do acordo motivou enormes protestos no país, que ficaram conhecidos como a Revolução de Maidan (devido ao nome da praça onde decorreram, a Praça da Independência), que se prolongaram entre 2013 e 2014 e levaram à deposição de Yanukovich.

Em resposta, a Rússia decidiu anexar unilateralmente a península da Crimeia e organizou um referendo (não reconhecido internacionalmente) segundo o qual, supostamente, 97% da população da Crimeia apoiaria a entrada da região na Federação Russa e o rompimento com Kiev. A ONU também não reconhece a validade do referendo e a grande maioria da comunidade internacional continua a considerar que a Crimeia, embora controlada efetivamente pela Rússia, é parte da Ucrânia.

A anexação da Crimeia incentivou grupos separatistas pró-Rússia a intensificar a insurgência nas regiões de Donetsk e Lugansk, dando origem a uma guerra sangrenta na região de Donbass entre os separatistas e as forças ucranianas, que se prolonga há oito anos. Durante esse período, foram feitas duas tentativas de alcançar a paz na região, o primeiro e o segundo acordos de Minsk, que nunca foram verdadeiramente implementados na sua total extensão e foram frequentemente violados.

Até ao início de 2022, antes da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, os oito anos de guerra na região de Donbass já tinham matado cerca de 14 mil pessoas, incluindo civis.

Aos olhos de Vladimir Putin, as regiões de Donetsk, Lugansk e Crimeia são livres de escolher juntar-se à Rússia e as suas populações estarão a ser as grandes vítimas de uma política nacionalista ucraniana. Esta tensão aprofundou-se nos últimos anos, depois de Kiev ter aprovado leis no sentido de privilegiar a língua ucraniana sobre a língua russa (falada como língua materna por uma parte substancial da população ucraniana), num país em que ambas as línguas convivem habitualmente até na televisão. Em 2019, o Presidente Petro Poroshenko assinou uma lei que atribuía à língua ucraniana um estatuto especial e a tornava obrigatória para os funcionários públicos, militares, médicos e professores. Em 2021, uma nova lei que obrigava todos os jornais ucranianos a serem impressos na língua ucraniana, foi retratada pela Human Rights Watch como potencialmente discriminatória face aos ucranianos russófonos.

Estas leis foram aprovadas no âmbito de um esforço mais alargado por parte de Kiev no sentido de reavivar a cultura e a língua ucranianas, sobretudo no contexto do conflito com a Rússia — um esforço que tem dado argumentos a Moscovo para se queixar de um “genocídio”, tanto físico como cultural, cometido pela Ucrânia contra a população russófona do leste do país.

O reconhecimento formal da independência de Donetsk e Lugansk por parte de Moscovo foi o passo final neste caminho de escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia. Ao assinar acordos de cooperação militar com as duas regiões, Moscovo deu-se a si própria argumentos para iniciar aquilo a que insiste em chamar “operação militar especial” no território ucraniano: defender países “amigos” ou regiões de um atacante externo, a Ucrânia — mesmo que essas regiões sejam parte integrante de um Estado autónomo, soberano e independente.

Argumento 2. A defesa legal contra o avanço da NATO

Mas a guerra lançada por Vladimir Putin contra a Ucrânia não é apenas contra a Ucrânia: é contra todo o Ocidente, representado pela NATO e encabeçado pelos Estados Unidos. E, aos olhos de Putin, há argumentos legais para o fazer.

Um deles reside no artigo 51 da Carta das Nações Unidas: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente à autodefesa, individual ou coletiva, se ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais.”

Outro deles prende-se com um conceito antigo, o da “indivisibilidade da segurança”. Trata-se de uma designação com décadas de história, firmada em vários acordos internacionais assinados pela Rússia, e que se pode resumir como a ideia de que a segurança de um Estado é indissociável da segurança de todos os estados da região. Trata-se de um conceito com alguma abrangência na sua interpretação, o que tem motivado discórdias internacionais. Mas, aos olhos de Putin, há uma derivação simples do conceito: para reforçar a sua segurança, um país não pode colocar a segurança de outro país em causa.

E, para Putin, é precisamente isso que o Ocidente tem vindo a fazer ao longo das últimas três décadas.

Desde 1949, a NATO (a Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança defensiva criada pelos aliados depois da Segunda Guerra Mundial) já foi alargada oito vezes, aumentando de 12 para 30 o número de Estados-membros. Os alargamentos mais preocupantes para a Rússia foram, naturalmente, aqueles que ocorreram desde a década de 1990 e que expandiram a aliança para o espaço de influência da ex-União Soviética. Países como a Polónia, a Hungria, a Estónia, a Letónia e a Lituânia contam-se entre os muitos Estados da Europa de leste que já se juntaram à NATO nos últimos 30 anos, levando a aliança ocidental literalmente para as fronteiras da Rússia.

Para a Rússia, o alargamento da NATO até às suas fronteiras é uma ameaça existencial — e Moscovo tem insistido na ideia de que os sucessivos alargamentos violam os votos formulados na década de 1990 pela NATO de não se expandir para oriente. Aliás, essa tem sido uma das grandes exigências de Moscovo em todo este conflito: que a NATO assine um compromisso escrito em como não procurará expandir-se para leste.

epa09889843 Russian President Vladimir Putin chairs a meeting on the situation in the oil and gas sector via a videoconference at the Novo-Ogaryovo state residence outside Moscow, Russia, 14 April 2022.  EPA/MIKHAIL KLIMENTYEV / KREMLIN POOL / SPUTNIK / POOL MANDATORY CREDIT

Putin ordenou a invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro

MIKHAIL KLIMENTYEV / KREMLIN POOL / SPUTNIK / POOL/EPA

A vontade demonstrada pela Ucrânia de aderir à NATO é, para Moscovo, a derradeira ameaça existencial, deixando a aliança militar ocidental liderada pelos EUA literalmente à porta da Rússia — o que violaria o tal princípio da indivisibilidade da segurança, uma vez que a Ucrânia reforçaria a sua segurança à custa da segurança russa. Vladimir Putin não se coibiu de o dizer com todas as letras naquele discurso de 21 de fevereiro que antecedeu a invasão da Ucrânia.

“Os documentos de planeamento estratégico americanos confirmam a possibilidade de um chamado ataque preventivo aos sistemas de mísseis inimigos. Também sabemos quem é o principal adversário dos EUA e da NATO: é a Rússia. Os documentos da NATO declaram oficialmente o nosso país como sendo a principal ameaça à segurança euroatlântica”, disse Putin aos russos e ao mundo naquela noite de fevereiro. “A Ucrânia vai servir como posto avançado para esse ataque. Se os nossos antepassados ouvissem isto, simplesmente não acreditavam. Também não queremos acreditar nisto hoje, mas é o que é.”

“Muitas bases aéreas ucranianas estão localizadas não muito longe das nossas fronteiras. Colocada lá, a aviação tática da NATO, incluindo com armas de precisão, será capaz de atacar o nosso território até à linha de Volgograd-Kazan-Samara-Astrakhan. A implementação de radares de reconhecimento no território ucraniano vai permitir à NATO controlar de modo apertado o espaço aéreo russo até aos Urais”, continuou Vladimir Putin.

O Presidente russo acrescentou ainda, endurecendo a linguagem: “O Pentágono tem vindo a desenvolver abertamente várias armas de ataque terrestres, incluindo mísseis balísticos com capacidade para atingir alvos a uma distância de até 5.500 quilómetros. Se forem lançados a partir da Ucrânia, esses sistemas serão capazes de atingir alvos em toda a parte europeia da Rússia. O tempo de voo dos mísseis de cruzeiro Tomahawk até Moscovo será de menos de 35 minutos; mísseis balísticos a partir de Kharkiv vão demorar sete ou oito minutos; e as armas hipersónicas vão demorar quatro ou cinco minutos.”

“É como ter uma faca apontada à garganta”, resumiu Vladimir Putin. “Não tenho dúvidas de que vão levar a cabo esses planos, como fizeram várias vezes no passado, ao expandir a NATO para leste.”

Antecipando-se a estes alegados planos ocidentais de controlar a Rússia, Vladimir Putin invadiu a Ucrânia preventivamente com o objetivo de deixar uma mensagem clara à NATO: a aliança não pode continuar a expandir-se para leste e deve abandonar a possibilidade de aceitar a Ucrânia — e deve também deixar garantias escritas de que não terá sistemas de armamento nas proximidades das fronteiras da Rússia.

O problema deste argumento? Putin esquece que a escalada belicista está longe de ser exclusiva da NATO ou dos Estados Unidos. E, no que toca à retórica ameaçadora, dificilmente Washington bate Moscovo. Basta lembrar como, em 2018, Putin apresentou um novo míssil balístico com capacidade nuclear, batizado como “Sarmat”, com um “alcance praticamente ilimitado”. “Ninguém no mundo tem algo igual”, afirmou Putin, esclarecendo que a nova arma tornava a Rússia “invencível” e atirando diretamente aos Estados Unidos e à NATO: “O sistema norte-americano antimísseis será inútil e não terá sentido.”

Argumento 3. A revolução de 2014 foi um golpe de Estado e só a Ucrânia é violou os acordos de Minsk

A Ucrânia tem sido uma das grandes fontes de tensão entre a Rússia e o Ocidente — o que se nota especialmente no modo como são enquadrados os acontecimentos de 2013 e 2014.

Enquanto o Ocidente reconhece que o que ali aconteceu foi um grande protesto popular motivado pela recusa, por parte do Presidente pró-russo Viktor Yanukovich, em assinar o acordo com a União Europeia, que culminou com a deposição do Presidente, a Rússia classifica os protestos de 2013-2014 como um “golpe de Estado” patrocinado pelos Estados Unidos com o objetivo de implementar em Kiev um governo pró-Ocidente.

O próprio Vladimir Putin o afirmou, em 2016, durante uma intervenção num fórum económico em São Petersburgo. “Porquê apoiar um golpe de Estado na Ucrânia? Provavelmente, a oposição, que está atualmente no poder, chegaria ao poder através de meios democráticos”, disse Putin, referindo-se ao Ocidente e acrescentando que aquele golpe de Estado conduziu a uma guerra sangrenta na Crimeia e em Donbass em que as vítimas foram os russófonos e apoiantes de Moscovo.

O apoio dado pelos países ocidentais aos manifestantes da Revolução de Maidan foi enquadrado por Moscovo como uma prova de que o Ocidente não só estava por trás do alegado golpe de Estado como considerava a Rússia um alvo a abater.

At the Euromaidan Barricades in Kiev, Feb 2014

A revolução de 2014 foi batizada com o nome Maidan por ter tido o seu palco central naquela praça de Kiev

Getty Images

Durante a guerra em Donbass, que se seguiu à anexação da Crimeia efetuada como resposta à deposição de Viktor Yanukovich, Moscovo acusou reiteradamente a Ucrânia de ser a responsável pelas violações dos acordos de paz de Minsk. Os acordos, inicialmente alcançados devido à mediação da Alemanha e de França, foram efetivamente violados por ambos os lados, tendo a guerra continuado até hoje.

Em declarações ao jornal britânico The Guardian, a investigadora Valerie Morkevičius, especialista em ética do conflito, explicou que ambos os lados cumpriram apenas parcialmente os acordos. Do lado da Ucrânia, o acordado era a atribuição de um estatuto de autonomia às regiões de Lugansk e Donetsk. Kiev começou, efetivamente, um processo de descentralização, mas não foi suficiente para cumprir o acordo de paz. “Os ucranianos dizem que isso representaria um privilégio de Donbass em relação ao resto da Ucrânia”, explicou Morkevičius.

Já Moscovo também nunca cumpriu efetivamente a sua parte do acordo, que implicava a retirada de todas as forças estrangeiras da região. “A Rússia nunca o fez, mas continuou a negar que as suas forças lá estavam”, disse ainda Morkevičius ao The Guardian.

Estes argumentos levam a Rússia a sustentar que a Ucrânia e o Ocidente estão alinhados numa política anti-Moscovo, que resultou num golpe de Estado para expulsar o líder pró-russo da Ucrânia em 2014 e que se tem materializado numa guerra de genocídio contra os russófonos do leste da Ucrânia — motivo pelo qual a Rússia tem o dever de intervir em defesa dessas populações.

Argumento 4. A Ucrânia é governada por nazis e a Rússia tem de a “desnazificar”

É talvez o argumento mais bizarro de todos, sobretudo tendo em conta que a Ucrânia é atualmente liderada por um Presidente judeu, russófono e que perdeu parte da sua família no Holocausto. Mas tem sido um dos grandes argumentos da Rússia de Putin para invadir a Ucrânia: trata-se de um país governado por nazis e neonazis, que tem de ser “desnazificado” pela intervenção da Rússia.

Trata-se de um argumento retórico com grande peso na Rússia, um país que ainda hoje carrega o trauma da guerra contra os nazis na Segunda Guerra Mundial — ou a Grande Guerra Patriótica, como é chamada na Rússia (e, antes, na União Soviética) a frente de guerra no leste europeu. De facto, o desprezo pelos nazis é um dos grandes elementos que cimentam a identidade russa. O dia 9 de maio é um dos principais feriados nacionais da Rússia: celebrado como o Dia da Vitória, assinala o dia em que as tropas soviéticas derrotaram os nazis em 1945. Por isso, o dia 9 de maio tem inclusivamente sido apontado como a meta de Vladimir Putin para a guerra na Ucrânia, repetindo em 2022 o grande feito heróico do fim da Grande Guerra.

Moscovo tem repetido as acusações de nazismo contra o governo de Kiev, essencialmente, como modo de galvanizar o apoio popular dentro da Rússia.

As acusações de nazismo têm sido repetidas por Vladimir Putin e por várias figuras do círculo próximo do Presidente russo. Recentemente, como conta o The New York Times, um deputado russo apelou à criação de uma “versão moderna do tribunal de Nuremberga” para julgar os líderes ucranianos depois da “desnazificação” da Ucrânia e até a televisão estatal russa exibiu recentemente imagens de enforcamentos de nazis depois da Segunda Guerra Mundial. A narrativa de Putin procura enquadrar a sua liderança da Rússia como uma continuação do que a União Soviética deixou inacabado.

“Esta propaganda é uma tentativa de deslegitimar a Ucrânia aos olhos do público russo, que considera a guerra contra a Alemanha Nazi o seu maior momento, e também aos olhos dos ocidentais que talvez não saibam muito mais sobre a Ucrânia à exceção do facto de ser ao lado da Rússia”, disse recentemente à Liga Anti-Difamação (organização de luta contra o antissemitismo) o professor de história do judaísmo David Fishman. “Esta propaganda não é nova. Há anos que a Rússia tem sublinhado a atividade de um grupo marginal de ucranianos ultra-nacionalistas para estigmatizar toda a Ucrânia.”

“Sim, há alguns membros destes grupos ultra-nacionalistas que têm usado a insígnia nazi, têm feito saudações de Hitler e usado uma retórica antissemita, mas são politicamente insignificantes e não representam a Ucrânia”, disse ainda. “Os partidos políticos que os ultra-nacionalistas apoiam receberam pouco mais de 2% de votos nas eleições de 2019. A Ucrânia é uma democracia imperfeita, mas sem dúvida é uma democracia, e não é, de todo, um regime nazi.”

Entre os exemplos frequentemente apontados pela Rússia como prova de que o regime ucraniano é nazi encontra-se o polémico Batalhão Azov, uma milícia paramilitar fundada em 2014 por voluntários, alguns dos quais com proximidade à extrema-direita, que combatiam as forças russas na região de Donbass e, mais tarde, formalmente integrada nas forças armadas ucranianas. O Batalhão Azov está sediado na cidade de Mariupol, no sul da Ucrânia. Recentemente, Zelensky deu palco a um combatente do Batalhão Azov durante o seu discurso no parlamento grego, o que causou grande polémica na Grécia.

O recurso a analogias com o nazismo para justificar a invasão da Ucrânia tem sido duramente criticado pelo mundo judaico. Recentemente, um grupo de académicos judeus publicou uma carta aberta classificando a retórica de Putin “factualmente errada, moralmente repugnante e profundamente ofensiva”.

“Como qualquer outro país, [a Ucrânia] tem extremistas de direita e grupos xenófobos e violentos. A Ucrânia também deverá fazer mais e melhor para confrontar os capítulos mais negros da sua história dolorosa e complicada. Ainda assim, nada disto justifica a agressão russa e a distorção grosseira da imagem da Ucrânia”, escreveram os académicos.

A retórica russa tem, efetivamente, sido disparada em todas as direções. Recentemente, o investigador Maksymilian Fras, da London School of Economics, compilou na sua conta de Twitter vários dos alvos que já foram caracterizados como nazis pelo governo russo: além da Ucrânia e dos ucranianos no geral, contam-se nesta lista o Japão (por não considerar o Batalhão Azov um grupo terrorista), o líder do partido alemão CDU (por considerar “bárbaros” os crimes de guerra russos na Síria), o projeto jornalístico de investigação da corrupção OCCRP (por investigar empresas russas), a Suécia (por ter anunciado um bloqueio contra navios russo), a Lituânia (por querer homenagear as vítimas ucranianas da guerra), o próprio Zelensky (por lembrar a cooperação entre União Soviética e os nazis na Segunda Guerra Mundial), a seleção de futebol ucraniana (por gritar “Glória à Ucrânia), a Estónia (por remover do espaço público um monumento soviético), a Polónia (por se opor à ideia de que a invasão de 1939 pela União Soviética foi uma libertação) e até o Canadá (por financiar o exército ucraniano).

Este argumento é ainda mais surpreendente quando são bem conhecidas as relações entre a Rússia de Vladimir Putin e alguns grupos neonazis. Uma das relações mais conhecidas é a proximidade entre o Kremlin e o Grupo Wagner, uma milícia privada batizada justamente em nome do compositor alemão, o preferido de Adolf Hitler. O alegado fundador do Grupo Wagner, o militar e ex-operacional russo Dmitry Utkin, teria um fascínio pela Alemanha nazi e usaria tatuagens nazis, incluindo a cruz suástica e a águia nazi. São conhecidos também os relatos segundo os quais os militantes do Grupo Wagner deixavam símbolos nazis nos locais onde combatiam.

Mas o Grupo Wagner é apenas um de vários grupos paramilitares neonazis apoiados tacitamente pelo Kremlin — que, além de apoiar grupos neonazis, também é conhecido por dar refúgio a militantes neonazis fugidos de outros países. É o caso de Rinaldo Nazzaro, que coordena a organização neonazi norte-americana “The Base” a partir da Rússia, como noticiou em 2020 a BBC. Já durante a invasão da Ucrânia, um atleta russo de 15 anos, Artem Severiukhin, que ganhou uma prova de karting competindo sob a bandeira de Itália, festejou a vitória com uma saudação nazi — o que lhe valeu uma investigação disciplinar por parte da Federação Internacional de Automobilismo.

“Putin não combate o neonazismo. Ele nutre-o, o que torna as suas manipulações sobre a Ucrânia ainda mais repugnantes”, resumiam recentemente num artigo para a NBC os autores norte-americanos Ali Soufan, antigo agente do FBI, e Nathan Sales, diplomata e antigo governante. “A Ucrânia não está livre dos seus extremistas domésticos, mas as alegações de Putin são desinformação pura. Na verdade, o homem forte da Rússia tem apoiado neonazis e supremacistas brancos há muitos anos, incluindo mercenários e separatistas que travam guerra na Ucrânia desde 2014.”

Argumento 5. Rússia e Ucrânia são um só povo, unido pela história, e é preciso corrigir a separação

Frequentemente, quando se pronuncia sobre a necessidade de intervir militarmente na Ucrânia, Vladimir Putin traz à baila um nome histórico muito conhecido da região: o Príncipe Vladimir, o pai do cristianismo na Rússia e fundador daquilo a que hoje Moscovo classifica como um “povo único”, e por isso indivisível, da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia.

Vladimir I, ou Vladimir o Grande, foi o líder do povo Rus que em 988 aceitou o batismo cristão como moeda de troca pelo casamento com a irmã do imperador Bizantino. Depois, batizou todo o povo Rus em Kiev — o “Batismo de Kiev” ainda é considerado o momento fundador da civilização russa e ucraniana — e deu origem a uma história de mil anos de um povo que evoluiria para se tornar naquilo que hoje é a Rússia ocidental, a Ucrânia e a Bielorrússia.

Como o Observador explicava num artigo histórico publicado em março, o argumento religioso segundo o qual ucranianos e russos são um único povo tem sido reiteradamente usado por Vladimir Putin como justificação para a entrada na Ucrânia — e o patriarca de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa e um dos mais poderosos aliados de Vladimir Putin, tem contribuído decisivamente para consolidar esta retórica, usando a sua influência dentro e fora da Rússia para dar credibilidade a esta narrativa.

Em nome de Putin, do Filho e do Espírito Santo. Como a Igreja Ortodoxa russa ajuda na guerra

É neste ponto que Vladimir Putin e a religião convergem. Segundo a narrativa oficial russa, o Ocidente vive atualmente num clima de corrupção e colapso moral, com a negação dos valores tradicionais cristãos e da moral familiar — e com a abertura à homossexualidade. Moscovo, que se auto-retrata como a “terceira Roma”, depois de Roma e Constantinopla, assume então um papel de defensora da moral cristã, pelo menos no seu território de influência.

Perante a “ocidentalização” da Ucrânia — o patriarca de Moscovo chegou mesmo a dizer que a existência de paradas gay na Ucrânia era um símbolo de como o Ocidente estava também a levar aquele país ao colapso moral —, Moscovo tem de intervir para defender aquele país, tradicionalmente e espiritualmente ligado à Rússia, do declínio moral imposto pelo Ocidente.

A anexação da Crimeia em 2014 é o exemplo mais paradigmático de como a Rússia tem usado este argumento de uma suposta reunificação cultural e identitária para justificar as suas verdadeiras intenções: obter acesso a um ponto de enorme importância geoestratégica, como é a península da Crimeia, com um acesso privilegiado ao Mar Negro. Mas a Rússia está praticamente sozinha quando considera aqueles territórios ucranianos como naturalmente seus: logo em 2014, a ONU declarou o referendo da independência da Crimeia como inválido e condenou a Rússia por violar a integridade territorial da Ucrânia. Em várias ocasiões, as Nações Unidas já exigiram à Rússia que retirasse as suas tropas da Crimeia. E praticamente nenhum país do mundo reconhece a Crimeia como parte da Rússia — à exceção de alguns aliados clássicos, como Cuba, a Síria ou a Nicarágua.

Argumento 6. O Ocidente também invadiu países

Moscovo não se tem furtado a apontar a hipocrisia do Ocidente quando condena a invasão da Ucrânia, apontando sobretudo para os bombardeamentos da Jugoslávia por parte da NATO no final da década de 1990 ou para a invasão do Iraque pelos EUA em 2003 com base numa justificação (a existência de armas de destruição maciça) que se viria a revelar falsa.

A questão da Jugoslávia e da independência do Kosovo tem sido particularmente apontada por Putin como um exemplo da hipocrisia do Ocidente. “No discurso de 21 de fevereiro, em que anunciou o reconhecimento por parte da Rússia das Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk, Putin referiu o bombardeamento por parte da NATO da Jugoslávia e o apoio ao Kosovo como ponto de contacto e justificação”, escreveu recentemente na Foreign Policy a investigadora Jade McGlynn, especialista em estudos russos.

“Do ponto de vista dele, aparentemente, a NATO fabricou um genocídio falso no Kosovo para legitimar a sua intervenção; agora, está apenas a fazer o mesmo. Isto não serviu apenas para dar um precedente, mas também para enviar uma mensagem: se o Ocidente pode redesenhar as fronteiras do Kosovo, então nós podemos redesenhar as fronteiras das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk”, acrescentou McGlynn. “As analogias do Kremlin comparando o leste da Ucrânia e o Kosovo ilustram que o objetivo do governo russo ao atacar a Ucrânia é reinstalar a arquitetura de segurança da Guerra Fria, para que o Ocidente deixe de ter o poder exclusivo de redesenhar fronteiras e mudar regimes.”

A invasão do Iraque por parte dos EUA em 2003 também tem sido usada para expor a hipocrisia do Ocidente em relação à invasão da Ucrânia. Naquele ano, também se registou a invasão de um país por parte de outro, com base num argumento falso — e os EUA, que não fazem parte do tratado que rege o funcionamento do Tribunal Penal Internacional, nunca foram julgados por quaisquer crimes de guerra ali cometidos.

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