“Génesis” é o título do livro publicado agora, um ano após a morte de Henry A. Kissinger, em que este, em conjunto com Craig Mundie e Eric Schmidt, duas personalidades há muito ligadas à indústria das tecnologias (o primeiro ocupou cargos executivos na Microsoft e foi conselheiro de Obama, o segundo é o presidente da Alphabet, empresa mãe da Google da qual também foi CEO), reflete sobre um dos maiores agentes de transformação do nosso tempo: a Inteligência Artificial. O que é, o que representa mas, sobretudo, que efeitos vai ter no quotidiano.
No excerto que o Observador publica, os co-autores debruçam-se sobre a Política enquanto ciência social no passado e no futuro. Primeiro, procuram contextualizar o fenómeno político na vida das sociedades, observando como, apesar de todas as transformações ocorridas, a prática política mantém-se inalterada, os respetivos efeitos permanecem e as falhas apontadas são, em muitos casos, as mesmas. Por outro lado, Kissinger, Mundie e Schmidt admitem que a Inteligência Artificial terá, inevitavelmente, potencial de mudança quanto à forma como a política é exercida. A questão, defendem, é como: se tal acontecerá de acordo com a “alma humana”, como escrevem ou se a ausência de “constrangimentos” ditará efeitos imprevisíveis.
Henry A. Kissinger (1923-2023) foi um dos agentes políticos mais poderosos do século XX — foi sobretudo um nome decisivo nos acontecimentos que moldaram o mundo depois da Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria. Ocupou cargos de enorme influência nas administrações dos presidentes americanos Richard Nixon e Gerald Ford e foi distinguido em 1973 com o Prémio Nobel da Paz, pelo papel que desempenhou no final da Guerra do Vietname — ainda que no meio da muita polémica, motivada pelos efeitos gerados pelas suas decisões em relação a operações militares no sudeste asiático, na América do Sul ou na Indonésia. Morreu aos cem anos, ao comando da consultora de geopolítica que criou depois de deixar as atividades governamentais.
A liderança humana é mais arte do que ciência. Contra probabilidades por vezes insuperáveis, alguns líderes conseguiram resultados excecionais. Na história moderna, entre esses líderes improváveis e bem‐sucedidos contam‐se Deng Xiaoping na China, Alexander Hamilton nos Estados Unidos e Lee Kuan Yew em Singapura. Os três desencadearam forças sociais subjacentes latentes que escapavam ao controlo de uma qualquer dada pessoa. Deng fundiu o capitalismo com uma antiga burocracia meritocrática que não tinha uma doutrina económica viável; Hamilton permitiu que uma nova filosofia política se espalhasse por uma vasta fronteira em condições de ausência de entidades políticas unificadas. Lee forjou uma ilha de excelência exigindo que ela ascendesse não obstante recursos muito limitados.
Todos estes três líderes combinavam espantosos poderes mentais com uma intensa força de vontade e carisma pessoal. Na linguagem política e noutras formas de retórica persuasiva, os atores humanos tendem a projetar visões para o futuro das suas sociedades que – para usar a expressão de Aristóteles – são uma parte logos (lógica), uma parte ethos (autoridade individual) e uma parte pathos (ligação emocional). Estas estratégias – em parte morais, em parte psicológicas – são essenciais para a criação e sustentação de identidades culturais unificadas e de sistemas políticos coerentes. Os líderes são, as mais das vezes, contadores de histórias, animando audiências e agitando almas.
Mas a tendência humana para o emocional e o estético pode também ser uma desvantagem. Até os líderes mais sábios, movidos pelo instinto e temperados pela prudência, governam por vezes com base em paixões fugazes. Os governos (tal como as empresas, as igrejas e as famílias, todas elas organizações concebidas e geridas por seres humanos falíveis) são uma combinação imperfeita de tradição herdada e experimentação.
Nas democracias ou nas autocracias, no terceiro mundo ou no primeiro, no passado ou no presente, os seres humanos são praticamente os mesmos. A passagem do tempo ainda não produziu inovações significativas na maneira como nos governamos. Continuamos a utilizar as mesmas instituições que os nossos antepassados já utilizavam há milhares de anos. É certo que ainda nos encontrarmos dependentes de princípios do nosso passado distante não é necessariamente uma coisa má, nem deveria ser particularmente surpreendente, uma vez que a sabedoria dos antigos serviu muitas vezes de inspiração conceptual e de base prática para as nossas sociedades mais bem‐sucedidas. Mas essas sociedades podem ser mais a exceção do que a regra. Porque por muitas vezes que figuras excecionais tenham adaptado a tradição histórica para o melhor, um número ainda maior fez que a história pendesse para o pior.
A nossa consistência política pode em parte dever‐se à circunstância de sermos humanos – alternadamente leais e caprichosos, humildes e ambiciosos, generosos e egoístas. A nossa volubilidade é mais evidente nos sistemas autocráticos, em que os caprichos de um governante podem prevalecer sobre a coerência demonstrada por outros; a resultante exploração da riqueza nacional e a militarização da justiça são transgressões fáceis de condenar, mas difíceis de eliminar. O nepotismo – que promove a exploração acima mencionada e agrava o militarismo – corrói a fé dos cidadãos que desejam melhorar a condição do Estado e a sua própria situação. Os suficientemente desesperados e corajosos para exigir uma mudança de política – quanto mais uma mudança de regime – devem estar dispostos a sujeitar‐se a uma luta injusta. Os instigadores de revoluções sangrentas são com frequência vilipendiados no imediato, mas – quando bem-sucedidos – glorificados e saudosamente lembrados a longo prazo.
Infelizmente, também a democracia pode ser vulnerável, embora de uma maneira mais subtil, às irracionalidades humanas. Apesar da ausência de um status de liderança formalmente herdado, o poder democrático pode ser autoperpetuado. O pressuposto da igualdade, acompanhado pela abstração dos deveres individuais das responsabilidades sociais, pode substituir‐se à gradação e à moderação, resultando na absolvição total ou na reprovação total. E, numa época de saturação mediática, é difícil procurar a sabedoria da democracia por trás do ruído. As ideias virais podem assumir uma influência inesperada.
Há problemas que parecem afetar sem exceção todos os sistemas humanos. Avaliar exaustivamente o caminho para uma política perfeita exige o conhecimento de inúmeros fatores esotéricos; com recursos limitados e uma ciência social imprecisa, os resultados divergem muitas vezes da conceção original. Tanto nas autocracias como nas democracias, os políticos – eleitos ou nomeados – podem tomar decisões em parte influenciadas pelo potencial de promoção do seu próprio poder ou lucro. O dinheiro leva aqueles que governam o mundo a comportar‐se de uma maneira previsível ou, na ausência de dinheiro, de uma maneira imprevisível.
O reconhecimento e a avaliação do desfasamento entre as nossas expectativas e a realidade têm frequentemente dependido da capacidade de observadores perspicazes, muitas vezes à distância – por exemplo, Thomas Carlyle (sobre a França), Alexis de Tocqueville (sobre a América) e Oswald Spengler (sobre o Ocidente) –, para articular o que, para alguém «de dentro», pode parecer uma falha óbvia mas a que não sabe dar um nome. Acontece, porém, que todos nós, humanos, somos «de dentro» no que respeita à história política coletiva. A falta de variedade nos nossos modos históricos de governação, juntamente com a aparente incapacidade de imaginar alternativas compatíveis com os nossos valores civilizacionais, tem limitado a inovação política. A IA, como elemento externo e perturbador, pode abrir novas possibilidades, mas o custo e as vantagens das alternativas que oferece não estão ainda claros.
Governar pela Razão
Se e quando a IA começar não só a processar informação com objetivos políticos mas também a tomar decisões políticas, novas questões vão pôr novos problemas à sabedoria política convencional. E a ciência política nem sequer oferece palavras orientadoras para uma tal mudança. Como poderá um observador avaliar a «superioridade» de uma decisão estratégica tomada por uma IA na ausência de interpretação da lógica através da qual a IA a tomou? O resultado, claro, só poderia ser métrico. Mas a falta de um registo definidor dos princípios de ação faria que algo muito significativo se perdesse, sobretudo para os historiadores.
Em muitos casos futuros, os humanos poderão discordar dos planos gerados pela IA não por esses planos serem insensatos mas porque as razões que fundamentam uma decisão da IA se situam para lá da sua compreensão imediata. Pode ser particularmente natural querer impedir ou adiar um resultado em que os humanos perdem não só o controlo temporal sobre os processos de tomada de decisão das máquinas (a capacidade de intervir), mas também a compreensão lógica desses processos (a capacidade de interpretar), mesmo depois do facto consumado.
Nas situações em que a liderança humana e da IA divirjam ou discordem em matérias de política de Estado, que julgamento deve prevalecer? Será que a resposta muda caso se torne evidente que a orientação da IA, mais do que a opinião humana, tem efetivamente em conta a concretização dos objetivos humanos no futuro distante, sendo por conseguinte mais vantajosa?
A parte utilitária da intuição humana estaria inclinada a aceitar uma avaliação orientadora a longo prazo gerada por uma IA, sobretudo se essa IA fosse capaz de explicar a fundamentação das suas decisões. Mas, mesmo assim, poderiam surgir situações em que os humanos protestariam contra uma política que, apesar de assegurar a longevidade da espécie e a de pessoas ainda não nascidas, seria prejudicial para os que vivem aqui e agora. Do mesmo modo, a IA poderia aceitar resultados racionais, como a solução de conflitos militares, que fossem politicamente inaceitáveis para todas as partes envolvidas. As probabilidades de rebelião declarada seriam muito elevadas. Mesmo que o conceito de governação pelas máquinas fosse aceite, e mesmo que a lógica das máquinas fosse explicada, e mesmo que as decisões das máquinas fossem racionais, benéficas e superiores em diversos graus, poderíamos continuar a ser ingovernáveis. Entre os humanos, só as políticas que incorporem um elemento do intangível são sustentáveis. Como Tolstoi escreveu, «Se admitirmos que a vida humana pode ser regida pela razão, a própria possibilidade de vida é destruída.»
Esses elementos não racionais da experiência humana – a história, acima de tudo, mas também a estética, o carisma e a ressonância emocional – podem, em certo sentido, impedir resultados ótimos, mas são também fundamentais para os nossos grupos políticos. O governo apenas pela razão pode dissolver nações. As IA demasiado racionais e os seus parceiros humanos podem rapidamente perder o controlo ou causar a desintegração das estruturas de poder em que cooperam.
Por outro lado, a IA pode ser mais valiosa e mais necessária precisamente onde a sua lógica parece estranha, contraintuitiva ou simplesmente errada. Embora as IA possam ser utilizadas para acelerar a resolução de problemas no sentido de soluções conhecidas – expandindo as opções humanas graças a uma velocidade que evita os custos políticos do atraso –, talvez a sua principal utilização seja pensar no que não temos capacidade para ponderar e encontrar soluções totalmente novas. Na realidade, pode ter sido um dos principais objetivos da sua criação.
Mas também esta atitude acarreta riscos, proporcionais à abertura a oportunidades que oferece. Não deixa aos humanos qualquer base para corrigir ou ignorar as decisões potencialmente inaceitáveis e anteriormente inimagináveis de uma IA ininterpretável. O impulso para não lhe estorvar a ação cresceria, exacerbado pela superioridade potencialmente evidente da sua governação quando comparada com a governação humana do passado. Um governo IA poderia produzir resultados verdadeiramente imbatíveis. Se assim fosse, interromper a sua utilização ou circunscrever o seu âmbito pareceria ilógico – sobretudo no contexto da competição geopolítica, em que a abstenção de utilização parece‐ ria assegurar desvantagem.
Do mesmo modo, os líderes humanos que se habituassem a resultados superiores proporcionados pela IA ficariam dependentes dela para afirmar a sua própria legitimidade. Além disso, a IA pode também desenvolver os seus próprios preconceitos: se um líder humano leal a um parceiro de IA quisesse manter‐se no cargo para lá do seu mandato, iria a IA intervir para impedir essa violação do protocolo?
Um novo ato
Quando examinamos o registo histórico, talvez o que nos pareça mais notável não seja a quantidade de mudança que vemos na política mas, pelo contrário, a ausência de mudança. Persistem hoje os mesmos arquétipos de liderança que têm existido desde há milhares de anos: o trágico príncipe-herói, o conselheiro velhaco, o fiel lugar-tenente, o bobo da corte, o mestre‐bonecreiro a puxar os cordelinhos na sombra, o mercenário indigno de confiança. Se a política é um teatro, estas personagens familiares ajudam‐nos a explicar o de outro modo inexplicável e dar vida ao de outro modo arcano.
Antes de Catarina ser grande, Jaroslau sábio, Ivã terrível ou Suleimão magnífico, nenhum deles era nenhuma destas coisas. E nós admiramos estes líderes em parte porque a História deu testemunho das respetivas evoluções individuais. Vemos com particular admiração aqueles que, nascidos em circunstâncias desfavoráveis, souberam à custa de pura convicção libertar‐se das grilhetas da adversidade e ascender ao topo das suas sociedades. O rei mameluco Iltutmish, vendido como escravo pelos próprios irmãos, que lhe invejavam a beleza física e a inteligência, iria servir mercadores de escravos usbeques e afegãos em Bukhara e Gázni antes de ser comprado por um comandante escravo gúrida num mercado de Deli. Volvidas apenas duas décadas, ele, o escravo de um escravo, subiria nas fileiras até ao serviço do sultão, fundando uma «dinastia de escravos» no topo do reino dos seus antigos senhores.
Claro que a queda do poder pode ser tão inesperada como a ascensão. Nenhum líder tem garantida imunidade contra ser derrubado por uma revolução ou enforcado por conspiração. Seja pelo suicídio como Nero, num duelo como Hamilton ou o assassínio como Gandhi, a grandeza não pode escapar à sepultura.
Como líderes na História, estas figuras partilham o mesmo interesse na ordem e na segurança básicas. Mas como membros da família do homem não estão, como não está qualquer um de nós, livres de inveja, desconfiança recíproca e rivalidade entre imãos. Encontramos as mesmas lutas tanto em nossas casas como nas casas governantes, em gerações de pessoas comuns e em dinastias reais. Podemos compreender com empatia a dificuldade de ultrapassar a inveja e forjar alianças com antigos inimigos – como fez a imperatriz‐viúva Cixi, uma ex‐concubina que acabaria por governar a China –, tal como podemos desprezar a traição do general Mir Jafar, cuja deserção na batalha de Plassey entregou efetivamente o controlo da Índia aos conquistadores britânicos a troco do título mais do que honorário de «Primeiro Nababo de Bengala». Se os líderes fossem demasiado parecidos com deuses, demasiado perfeitos, ou demasiado competentes, não sentiriam ansiedade, desespero, amor ou inveja. As familiares emoções e vulnerabilidades que todos os humanos conhecem também fazem girar a roda das História.
A política humana é ao mesmo tempo louvável e condenável devido à sua proximidade espiritual da nossa política individual. Apesar de ter conquistado a Europa, Napoleão não foi capaz de conquistar o coração de Joséphine; a rivalidade entre John Adams e Thomas Jefferson parece‐nos tão familiar como as nossas quezílias de irmãos. O Guerra e Paz de Tolstoi é tanto a respeito dos principais acontecimentos da História como das vidas individuais que habitam esses acontecimentos. Os homens que no século XV seguiram a jovem Joana d’Arc para a guerra não eram muito diferentes dos que em 324 a.C. se amotinaram em Ópis contra Alexandre, o Grande, depois de ele ter conquistado a maior parte do mundo conhecido. Alternando entre o político e o pessoal, a realidade funde-se na ficção, as crónicas históricas em poemas épicos.
Uma política mecânica não teria esta tensão narrativa. Sem a purga de rivais nem a reaproximação a antigos inimigos, a súbita ascensão ao poder e a rápida queda em desgraça, a atividade dos estadistas tornar‐se‐ia menos relatável, menos emocionante, se não mesmo enfadonha. Sem distinção entre tragédia e comédia, a corte imperial ficaria despojada de drama e intriga.
Alternativamente, a emergência da IA como característica nova poderia representar o incitamento a um novo ato na política humana. Poderia alterar a natureza e a dinâmica dos conhecidos arquétipos humanos. Mas algumas coisas não mudariam. O tempo finito da vida humana garante os nossos arcos narrativos, as nossas ascensões e quedas. A nossa natureza social evoluída dita os nossos amores, ambições e valores morais.
É esta mesma característica imperfeita da nossa política que devíamos ter como objetivo preservar e posteriormente combinar com a perfeição dos sistemas de IA para torná‐los parceiros complementares. A IA, faltando‐lhe as inconsistências da alma humana, será imune a constrangimentos; para o melhor e para o pior, a nossa combatividade tem funcionado como um travão do nosso potencial, mas também como uma fiável restrição do mal que somos capazes de fazer.
O governo humano dos tempos atuais assenta na nossa longa experiência com a contingência histórica. O valor da IA na governação, até agora adormecido, reside no seu conhecimento potencialmente perfeito. Os líderes humanos de hoje deviam preparar‐se para ser os primeiros numa linha de soberanos que vão enfrentar o desafio de procurar um equilíbrio entre maximizar as vantagens – e, em alguns casos, a necessidade – da entrada da IA na governação sem chegarem ao ponto de sucumbir a uma dependência total, descobrindo em vez disso a síntese adequada entre os extremos de despotismo e anarquia, fundindo num todo a vontade dos humanos, o conhecimento das máquinas e a sabedoria da História.