A narrativa histórica que muitas vezes prevalece na sociedade sobre determinados acontecimentos pode ser uma mistificação complexa, moldando a forma como os vemos e o que sentimos em relação a eles. Sobretudo se não os vivemos na primeira pessoa ou não tivemos contacto próximo com quem os viveu.
Com o passar dos anos sobre a Revolução de Abril, que no próximo ano comemora meio século, essa mistificação começa, naturalmente, a cobrir os factos e a afetar a forma como são percecionados pela sociedade portuguesa.
Daí as discussões politicamente enviesadas a que se assiste com cada vez mais frequência sobre a importância relativa das datas que fizeram a revolução – sobretudo o 25 de abril (de 1974) e o 25 de novembro (de 1975), mas também, em certa medida, o 11 de março (de 1975).
Nada melhor, por isso, do que procurar informação junto de quem viveu na primeira pessoa essas datas, de quem testemunhou e contribuiu de forma próxima para esses momentos históricos de uma época complexa, que transformou o país e contribuiu decisivamente para a implementação da democracia que temos hoje.
“Abril em Novembro”, de Rui Salvada, é uma obra que se debruça, precisamente, sobre este tema. O autor, nascido em Beja em 1943, comandou a 21ª Companhia de Comandos na Região Militar de Moçambique, que teve participação relevante na Operação Nó Górdio, tendo sido agraciada com a Cruz de Guerra de 1º Classe. Na vida civil foi Adjunto do Ministro do Trabalho, Amândio de Azevedo, no Governo do Bloco Central (Mário Soares / Mota Pinto). Em 1985, foi eleito Deputado nas listas do PSD (Distrito de Lisboa), onde se manteve até 1995, tendo presidido à Comissão Parlamentar de Trabalho e integrado as Comissões de Revisão Constitucional e de Defesa.
Rui Salvada começa por relembrar uma frase de Virginia Woolf: “Nada acontece até ser contado”. Motivado por um encontro com os seus camaradas de armas, em que se aperceberam da desconformidade histórica entre o que viveram na época e a perceção da sociedade, parte para uma reconstituição fundamentada dos factos, através de entrevistas e de uma pesquisa aturada.
Na obra, ordenada cronologicamente e selecionada conforme as conversas que teve com os protagonistas, Salvada questiona o papel e a propriedade que o PCP assume sobre o 25 de abril e a luta pela liberdade, realçando o papel das Forças Armadas no sucesso da Revolução. De seguida, põe em causa a narrativa corrente sobre o 11 de março de 1975, apelidando-o de “armadilha” e “história mal contada” com o intuito de acelerar o processo de descolonização e impedir a formação e entrada em exercício da Assembleia Constituinte. Finalmente, atribui o 25 de novembro à tentativa de criação de um “Portugal terceiro mundista” ao serviço das forças comunistas internacionais e realça o papel de Jaime Neves nos acontecimentos desse dia – foi o então coronel, à frente do regimento de Comandos da Amadora, que comandou o ataque que obteve a rendição das chefias da Polícia Militar, no quartel da Calçada da Ajuda, evitando uma guerra civil e contribuindo para a consolidação da democracia.
“Abril em Novembro” é uma obra extensa, com mais de 400 páginas, recheada de documentos e testemunhos históricos, que oferece um olhar pessoal, que faz perguntas e dá respostas sobre três momentos cruciais da História de Portugal, para desafiar ideias instaladas e tentar aproximar a perceção corrente daquilo que, verdadeiramente, foram os motivos, os acontecimentos e as consequências dos eventos ocorridos entre abril de 1974 e novembro de 1975. E é, por isso, uma obra de leitura, se não obrigatória, pelo menos muito recomendável.