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Antes de ser Papa, Ratzinger foi arcebispo de Munique

Getty Images

Antes de ser Papa, Ratzinger foi arcebispo de Munique

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Abusos na Igreja. Bento XVI voltou atrás com a palavra sobre um caso que conhecia: é o fim da credibilidade da Igreja?

Antes de ser Papa, Ratzinger foi arcebispo de Munique — e agora está sob a mira de uma investigação independente sobre o modo como geriu casos de abusos. Até já teve de se desmentir publicamente.

Terça-feira, 15 de janeiro de 1980. Nos escritórios da arquidiocese católica de Munique e Freising, situados no centro da cidade alemã de Munique, é dia de reunião do Ordinariato, o órgão administrativo da liderança eclesiástica da região da Baviera. É uma reunião de rotina. Todas as semanas, o vigário-geral (o clérigo responsável pela gestão quotidiana da arquidiocese) senta-se à mesa com os vários diretores de serviço da instituição, maioritariamente leigos que assumem pelouros como a tesouraria, os recursos humanos, a educação, as obras solidárias, as nomeações dos padres ou a manutenção dos edifícios eclesiásticos.

Há, contudo, mais alguém sentado à mesa da reunião administrativa, nesta terça-feira de 1980. Joseph Ratzinger, então com 52 anos, está no seu terceiro ano como arcebispo de Munique e Freising, a diocese onde nasceu, cresceu e se tornou padre e teólogo. O Papa Paulo VI nomeou-o arcebispo e cardeal em 1977, com apenas 50 anos, uma idade significativamente precoce para um cargo desta responsabilidade. Ratzinger quer estar a par dos assuntos da arquidiocese que lidera. Em cima da mesa, na reunião do Ordinariato, está um tema quente: o caso do padre Peter Hullermann, recém-chegado da diocese de Essen, no noroeste da Alemanha, a 650 quilómetros da capital bávara.

O jovem sacerdote Peter Hullerman tinha abusado sexualmente de um rapaz de 11 anos na sua diocese de origem, forçando-o a práticas de sexo oral. Quando soube da história, a família da criança denunciou o caso à Igreja, mas a diocese de Essen não levou a denúncia à polícia. No final da década de 1970, não era essa a prática habitual entre as autoridades eclesiásticas. Imperava, pelo contrário, acalmar os ânimos em torno do caso e afastar o sacerdote dali. A diocese de Essen, à época liderada pelo bispo Franz Hengsbach, decidiu recorrer à rede de contactos interna da Igreja Católica e mandar Hullerman para Munique, onde deveria ser submetido a uma terapia psicológica destinada a curá-lo das suas tendências para a pedofilia.

Começava, assim, um longo e intrincado caso que viria a manchar irremediavelmente a imagem de Joseph Ratzinger — já que ainda hoje parece difícil descortinar o que o Papa alemão sabia e não sabia sobre um caso que se revelaria muito complexo. Em declarações ao Observador, o padre alemão Hans Zollner, especialista no combate à crise dos abusos de menores na Igreja Católica e um dos operacionais do Papa Francisco para a proteção dos menores, diz que Ratzinger terá de assumir as responsabilidades pelas declarações que prestou nos vários momentos de toda esta história. E mais: a própria credibilidade da Igreja foi, mais uma vez, colocada em causa com mais uma falha de “sinceridade” e “consistência” dos seus líderes.

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J.Ratzinger in the Academy of Sciences, moral and politic in Paris, France on November 08, 1992.

Joseph Ratzinger, antes de ser Papa Bento XVI, foi o arcebispo de Munique e Freising

Gamma-Rapho via Getty Images

O caso resume-se em poucas linhas. Como sempre acontece dentro da Igreja, a movimentação de um sacerdote católico no território não é alheia à jurisdição do bispo do lugar de destino. Na maioria dos casos, a mudança de um padre é previamente combinada entre bispos — e o sacerdote estabelece relações com a diocese de destino, onde passa a exercer as suas funções sob a jurisdição de um novo bispo. No caso específico de Peter Hullermann, a questão era mais complexa. Não se tratava de uma simples rotação geográfica: o sacerdote trazia uma história conturbada e o seu destino havia sido escolhido em função do acompanhamento profissional especializado que fora programado para ele.

A arquidiocese de Munique fora previamente informada da chegada de um padre problemático oriundo do noroeste do país. O que fazer com ele? Na reunião daquela terça-feira, 15 de janeiro de 1980, esse foi um dos assuntos centrais. Mas, quarenta anos depois, continua a pairar uma névoa difusa sobre o que aconteceu no encontro. Numa altura em que emergem novos dados sobre o modo como a arquidiocese de Munique lidou com os casos de abuso sexual de menores ao longo da sua história, a imagem da instituição está hoje irremediavelmente manchada — mas também a de Joseph Ratzinger, que quase três décadas depois viria a ser eleito Papa e que agora se vê enredado numa grave polémica. Afinal, o que sabia Bento XVI?

Igreja alemã no centro da crise dos abusos

Até ao início de 2022, a história do padre Peter Hullermann parecia estar esclarecida e o Papa alemão aparentava estar ilibado de qualquer falha naquele episódio. O caso veio inicialmente a público em 2010, altura em que um grande turbilhão de escândalos de abusos assolou a Europa, com destaque para os casos da Irlanda e da Alemanha. A história surgiu inicialmente numa notícia do jornal Süddeutsche Zeitung, que expôs os crimes de Hullermann e o modo como eles foram mantidos em segredo durante várias décadas pela estrutura eclesiástica.

De acordo com o que foi noticiado na altura, Peter Hullermann abusou de um rapaz de 11 anos na diocese de Essen e a estrutura eclesiástica, quando soube do caso, decidiu mandá-lo para Munique, onde seria sujeito à tal terapia psicológica. Porém, quando chegou a Munique, Hullermann foi acolhido pela arquidiocese liderada por Joseph Ratzinger e colocado ao serviço de uma paróquia, onde manteve o contacto direto com crianças. Nessa paróquia de Munique, Hullermann voltou a abusar de crianças — crimes pelos quais seria julgado e condenado a 18 meses de prisão com pena suspensa em 1986, numa altura em que Joseph Ratzinger já havia abandonado Munique e rumado a Roma, para começar uma carreira no topo da hierarquia da Igreja que o levaria à eleição pontifícia em 2005. Mas, mesmo depois dessa condenação, Peter Hullermann manteve-se em funções: só quando o Süddeutsche Zeitung publicou a notícia é que o padre foi suspenso.

A notícia de 2010 colocou pressão sobre Ratzinger, que era o Papa em funções quando o escândalo eclodiu: efetivamente, era ele o líder da arquidiocese de Munique quando Hullermann, um pedófilo conhecido pela Igreja, foi colocado ao serviço de uma paróquia sob a sua jurisdição. Contudo, o Vaticano rapidamente desviou as atenções recorrendo a um argumento expectável: a dimensão da diocese. Com mais de 700 paróquias, mais de 800 padres e mais de 16 mil funcionários, a arquidiocese de Munique é suficientemente grande para que seja legítimo acreditar que nem todas as decisões de gestão são pormenorizadamente analisadas pelo cardeal arcebispo. Ratzinger teria assinado a nomeação confiando no trabalho da sua estrutura.

A notícia de 2010 colocou pressão sobre Ratzinger, que era o Papa em funções quando o escândalo eclodiu: efetivamente, era ele o líder da arquidiocese de Munique quando Hullermann, um pedófilo conhecido pela Igreja, foi colocado ao serviço de uma paróquia sob a sua jurisdição.

O padre Gerhard Gruber, que em 2010 era já um idoso de 81 anos e que na década de 1980 ocupava o cargo de vigário-geral da arquidiocese de Munique, deu o peito às balas e sacrificou-se em nome de Bento XVI, assumindo a responsabilidade total pela nomeação. “Lamento profundamente que esta decisão tenha resultado em ofensas contra jovens e peço perdão a todos os que sofreram com ela”, disse o ex-vigário. O Vaticano apressou-se a vir a público dizer que a afirmação de Gerhard Gruber ilibava por completo o Papa Bento XVI, que na altura assumia a liderança dos esforços de combate aos abusos na Igreja.

Doze anos volvidos, a história dos abusos de menores na arquidiocese de Munique volta agora a estar sob escrutínio internacional — e, por conseguinte, as responsabilidades pessoais de Bento XVI voltam a ser questionadas.

O longo processo de redenção dos crimes sexuais da Igreja Católica alemã começou em 2014, quando uma comissão independente nomeada pela Conferência Episcopal se lançou ao trabalho numa complexa investigação histórica que abrangeu o período entre 1946 e 2014. O inquérito demorou quatro anos a ser feito e não foi um processo pacífico: a comissão independente queixou-se de falta de colaboração de algumas dioceses alemãs (incluindo duas que terão mesmo manipulado ou destruído documentos). Ainda assim, os investigadores conseguiram reunir cerca de 38 mil documentos, obtidos de 27 dioceses, e chegaram a conclusões aterradoras: naquele período de quase 70 anos, foram identificadas 3.677 crianças vítimas de abusos perpetrados por, pelo menos, 1.670 membros do clero. O relatório levou o cardeal Reinhard Marx, à época presidente da Conferência Episcopal, a declarar: “Muita gente já não acredita em nós.

A divulgação do relatório nacional levou várias dioceses a seguir o exemplo da Conferência Episcopal e a iniciar investigações independentes geograficamente concentradas. Em março de 2021, a publicação do relatório referente à diocese de Colónia fez eclodir um novo escândalo. Entre 1975 e 2018, foram identificadas pelo menos 386 vítimas de pelo menos 243 padres abusadores. A grande conclusão do documento, com 800 páginas, foi a de que durante décadas houve “encobrimento sistemático” dos casos de abuso. Na sequência do caso, o arcebispo de Hamburgo, Stefan Hesse, demitiu-se, uma vez que já tinha trabalhado na arquidiocese de Colónia e o relatório foi muito crítico da atuação de Hesse. Sob os holofotes esteve também a atuação do cardeal Rainer Maria Woelki, arcebispo de Colónia. A arquidiocese foi objeto de uma visita apostólica em junho de 2021 e, em setembro, Woelki esteve em Roma para uma longa conversa com o Papa Francisco, que lhe concedeu uma licença sabática espiritual de seis meses.

Este mês, a crise dos abusos voltou a abater-se sobre a Igreja Católica alemã, com a publicação do relatório da investigação independente relativa à arquidiocese de Munique e Freising. Desta vez, a grande bomba não foram os números (embora estes também tenham sido substanciais: 497 casos de abuso entre 1945 e 2019), mas a acusação feita a Joseph Ratzinger. Segundo o advogado Martin Pusch, da sociedade de advogados Westphal Spilker Wastl (WSW), que foi encarregada de realizar o inquérito, o cardeal Ratzinger terá sido negligente em pelo menos quatro casos de abuso identificados na diocese.

Bento XVI terá encoberto abusos sexuais contra menores quando era cardeal, diz imprensa alemã

Entre esses casos contam-se situações em que padres foram condenados pela justiça civil por crimes sexuais contra menores sem que isso levasse a Igreja a suspendê-los de funções. Mas o caso no centro das críticas a Bento XVI é, sem surpresas, o do padre Peter Hullerman. Afinal, a história continuava mal contada e foi preciso regressar à pergunta inicial: o que sabia Ratzinger sobre o caso?

Bento XVI sabia e não fez nada em casos de pedofilia de Munique, conclui investigação

A pergunta leva-nos de volta àquela fatídica terça-feira, dia 15 de janeiro de 1980, à reunião do Ordinariato da arquidiocese de Munique e Freising. O encontro esteve na mira da investigação independente feita pela sociedade de advogados, uma vez que o caso do padre Peter Hullermann foi um dos mais controversos a afetar a diocese. Imperava saber como foi tomada a decisão de colocar um conhecido pedófilo ao serviço de uma paróquia de Munique, com acesso a crianças e jovens de quem viria mais tarde a abusar — e a ser condenado por isso.

Para reconstituir o processo de tomada de decisão, a comissão independente interrogou o próprio Joseph Ratzinger, hoje Papa Emérito Bento XVI, que remeteu aos investigadores um longo documento de 82 páginas, assinado pela sua mão, com as respostas às questões dos advogados. Nesse testemunho, Bento XVI afirmou que nunca esteve presente naquela reunião de janeiro de 1980 em que foi discutido o destino do padre Hullermann. Ratzinger, que foi arcebispo de Munique entre 1977 e 1982 — ano em que foi chamado ao Vaticano para ocupar o importante cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o organismo sucessor do Santo Ofício) —, reiterava assim a versão com que o caso havia sido encerrado em 2010: não tinha tido conhecimento da nomeação do padre pedófilo.

O relatório final da sociedade de advogados foi publicado no início deste mês. Ao longo de cerca de 1.900 páginas, os investigadores descrevem como a arquidiocese de Munique e Freising lidou com vários casos de abuso de menores e apontam a mira a Bento XVI. Na qualidade de arcebispo de Munique e Freising, em 1980, Ratzinger “esteve disposto a admitir o sacerdote” Peter Hullermann, mesmo tendo “conhecimento da situação”. Ou seja, Bento XVI e as autoridades eclesiásticas de Munique do início da década de 1980 não cumpriram a responsabilidade que tinham para com as crianças e jovens da arquidiocese, concluiu o relatório, usando como prova central um documento formal de nomeação do sacerdote — no qual consta a assinatura de Ratzinger.

A notícia abateu-se com estrépito não só sobre a Alemanha mas, também, sobre todo o universo católico. Bento XVI, o Papa que havia começado a intensa luta da Igreja contra a crise dos abusos (notavelmente com a duríssima carta que escreveu em 2010 em resposta ao escândalo na Irlanda), está agora sob suspeita de também ter encoberto crimes de abuso.

A mentira de Bento XVI

A polémica, contudo, não está ainda totalmente resolvida — e só se adensou na última semana. Quatro dias depois da divulgação oficial do relatório, o gabinete de Bento XVI veio a público admitir que o antigo Papa tinha prestado informações erradas aos investigadores alemães. A informação, que voltou a chocar o mundo católico, chegou através de um comunicado assinado pelo secretário particular de Bento XVI, o arcebispo alemão Georg Gänswein.

No comunicado, enviado à agência de notícias da Igreja Católica alemã, Gänswein explica que Bento XVI recebeu, da parte da firma de advogados responsável pelo inquérito, o relatório final em formato PDF, encontrando-se atualmente “a ler com atenção as informações nele contidas, que o enchem de vergonha e dor pelo sofrimento causado às vítimas”. “Mesmo estando a tentar ler o documento rapidamente, ele pede a vossa compreensão para o facto de, devido à idade e à saúde, mas também à grande dimensão do relatório, a leitura completa demorar algum tempo”, continua o comunicado, prometendo para os próximos tempos um “comentário sobre o relatório”.

Mas a nota de Gänswein chegou às manchetes devido ao parágrafo seguinte. “Contudo, [Bento XVI] gostaria, para já, de deixar claro que, ao contrário do que foi afirmado no inquérito, ele participou na reunião do Ordinariato de 15 de janeiro de 1980”, lê-se na nota. “A declaração em contrário foi, assim, objetivamente incorreta. Ele gostaria de enfatizar que isto não aconteceu por má-fé, mas em resultado de um erro na edição da sua declaração escrita. Ele vai explicar como isto aconteceu no comunicado que há de ser publicado e lamenta profundamente este erro.”

Todavia, Bento XVI insiste que não participou na decisão de colocar o padre Peter Hullermann ao serviço de uma paróquia, mas apenas na decisão de o acolher enquanto realizava os tratamentos psicológicos. “A declaração de que a nomeação pastoral do padre em questão não foi decidida nesta reunião permanece objetivamente correta, como os documentos comprovam. Na verdade, o pedido foi apenas para assegurar o alojamento do padre durante o seu tratamento terapêutico em Munique”, diz ainda o comunicado de Georg Gänswein.

A imagem de Bento XVI já estava fragilizada com a publicação do relatório inicial, que não poupava nas críticas ao antigo Papa — mas o comunicado admitindo a falsidade das informações prestadas à comissão independente afundou ainda mais Joseph Ratzinger. Resta saber se as dúvidas lançadas sobre a credibilidade de Bento XVI se vão estender à Igreja Católica, que se debate com a crise dos abusos de menores desde o início da década de 1980 e que vê agora a imagem de um segundo Papa pessoalmente abalada pelo escândalo.

A credibilidade da Igreja está em risco?

Muitas pessoas acreditam que a credibilidade do Papa Bento XVI ficou abalada pelas respostas nas 82 páginas que enviou à sociedade de advogados, que foram assinadas por ele”, diz ao Observador o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos homens fortes do Papa Francisco para a luta contra os abusos de menores na Igreja Católica. Hans Zollner, padre, teólogo e psicólogo, é um dos mais destacados especialistas na proteção dos menores na Igreja. Membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores (criada em 2014 pelo Papa Francisco), o jesuíta alemão foi chamado pelo chefe da Igreja para organizar a cimeira de bispos de 2019 sobre o assunto e hoje viaja por todo o mundo para colaborar na formação das comissões diocesanas de proteção de menores — esteve, por exemplo, em 2021 em Portugal para dar formação aos bispos portugueses sobre o tema.

Hans Zollner foi também um dos muitos especialistas ouvidos pela comissão independente que fez o relatório sobre a diocese de Munique. “A sociedade de advogados pediu-me aconselhamento na parte não jurídica do relatório”, diz o colaborador do Papa Francisco. “Pediram-me os meus comentários acerca das suas conclusões sobre a teologia e os processos institucionais da Igreja que ajudam a lutar contra os abusos e o encobrimento.”

Pope Benedict XVI and Pope Francis

O Papa Francisco tem reservado um lugar de honra a Bento XVI nas celebrações no Vaticano

Mondadori Portfolio/Archivio Mar

O início da crise contemporânea dos abusos de menores na Igreja pode ser situado, concretamente, no início da década de 1980, quando o caso do padre Gilbert Gauthe, no Louisiana, EUA, se tornou público e abriu uma ferida que nunca sarou. Pelo contrário, aprofundou-se ao longo dos últimos quarenta anos, à medida que por todo o universo católico se foram multiplicando escândalos, processos judiciais, investigações internas e relatos de encobrimentos sistemáticos de casos de abuso que mancharam todo o século XX da Igreja Católica. A crise abarcou, até agora, os pontificados de três papas — João Paulo II (1978-2005), Bento XVI (2005-2013) e Francisco (desde 2013) — e os dois primeiros já se viram pessoalmente implicados nos escândalos.

João Paulo II foi o primeiro. Começou por demorar vários anos a dar resposta à crise que eclodiu no início da década de 1980. Em 1995, quando viu o seu amigo Hans Hermann Groër, cardeal de Viena, envolvido num caso de abusos, optou por desvalorizar o caso e classificar as acusações como uma “tentativa de destruição” da Igreja. Ao mesmo tempo, escolheu sempre não ver os crimes do padre mexicano Marcial Maciel, considerado um dos mais infames pedófilos da história da Igreja, recebendo-o frequentemente no Vaticano. Mas o grande escândalo abateu-se sobre a memória de João Paulo II em 2020, quando um relatório do próprio Vaticano deu como provado que o Papa polaco sabia das acusações de abuso contra Theodore McCarrick quando o nomeou para cardeal de Washington. McCarrick viria a ser o primeiro cardeal demitido por abusos sexuais de menores, tendo sido demitido do estado clerical. João Paulo II foi canonizado em 2013 — e a divulgação do relatório fez levantar a dúvida entre os fiéis: a Igreja terá sido demasiado rápida a elevá-lo aos altares?

Bento XVI, por seu turno, apesar de nunca ter conseguido gerar nos fiéis católicos a empatia do seu predecessor, tem sido genericamente reconhecido como o primeiro Papa a abordar a crise dos abusos sexuais de menores como um problema radicalmente grave que exige uma resposta igualmente radical da Igreja. Isso ficou particularmente claro na carta que escreveu em 2010 aos católicos da Irlanda, país que na altura atravessava o seu grande escândalo de abusos de menores. “Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos“, escreveu Bento XVI na parte da carta dirigida “aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens”.

As palavras de Bento XVI foram ainda mais profundas na mensagem que deixou às vítimas: “Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de evitar os vossos sofrimentos. É compreensível que vos seja difícil perdoar ou reconciliar-vos com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos sentimos.”

Ainda durante o seu pontificado, Bento XVI intensificou a luta da Igreja Católica contra a crise dos abusos sexuais. Só nos últimos dois anos da sua liderança, Bento XVI demitiu quase 400 sacerdotes devido a crimes de abuso. Acabaria por renunciar ao cargo em 2013, por considerar que a idade avançada já não lhe permitia responder eficazmente aos graves problemas que a Igreja Católica enfrentava — e foi Francisco quem tomou as rédeas do combate aos abusos, criando a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores e, mais tarde, criando as novas regras que nos últimos três anos têm obrigado as instituições da Igreja a reinventar-se por todo o mundo para responder à crise.

Mas as novas revelações sobre a situação na Alemanha podem colocar em causa também a credibilidade do Papa Bento XVI — e, por extensão, a credibilidade da própria Igreja na luta contra os abusos de menores.

Para o padre Hans Zollner, porém, é preciso cautela na análise das contradições de Bento XVI. “Tornou-se claro que não foi ele, pessoalmente, quem escreveu as respostas. Sim, ele tem de assumir responsabilidade por elas, porque as assinou, mas o maior dano foi feito por aqueles que prepararam o texto. Ainda assim, temos de nos lembrar de que a própria sociedade de advogados disse que isto não é um julgamento sobre o que o cardeal Ratzinger ou o Papa Bento XVI fez, mas para a Igreja e para muitas pessoas além dele.”

"Toda a gente, em qualquer cargo ou posição tem de estar preparado para ser responsabilizado pelo que faz ou não faz para proteger os menores e as pessoas vulneráveis."
Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores

O especialista e colaborador do Papa Francisco concorda que “toda a gente, em qualquer cargo ou posição” dentro da Igreja “tem de estar preparado para ser responsabilizado pelo que faz ou não faz para proteger os menores e as pessoas vulneráveis”, incluindo os Papas, e reconhece que Bento XVI poderá ter sido excessivamente cerebral nas suas respostas à comissão independente, não sublinhando a dimensão humana da tragédia dos abusos. “É verdade que há algumas palavras, nas 82 páginas e nas declarações seguintes, que indicam a empatia do Papa Bento XVI e o seu reconhecimento das feridas das vítimas de abuso. Mas, no geral, muitas pessoas teriam esperado que a resposta do Papa Bento XVI desse mais espaço e atenção às feridas morais e espirituais infligidas às vítimas. Não nos podemos esquecer de que o Papa Bento XVI foi o primeiro Papa a encontrar-se com vítimas de abuso. Infelizmente, este lado dele não marcou o tom da resposta.”

E, com isso, a credibilidade da Igreja continua a afundar-se. “Isto não é algo específico da Alemanha”, nota Zollner. “Temos visto isto a acontecer há vários anos noutras partes do mundo, como os EUA, a Austrália, a Irlanda e, mais recentemente, a Polónia.” Quanto ao caso de Bento XVI, será preciso esperar pela declaração que o Papa Emérito pretende divulgar quando tiver terminado de ler as 1.900 páginas que compõem o relatório sobre Munique. Mas Zollner deixa um aviso: “Sempre que a confiança dos fiéis e do público em geral na sinceridade e na consistência dos líderes da Igreja é estilhaçada, a transmissão da fé fica em risco.”

Perante uma Igreja com a credibilidade em risco, a solução está nos próprios ensinamentos da Igreja, defende o jesuíta alemão. “Tivemos tantos santos e grandes exemplos de caridade e serviço na história da Igreja. Isso não significa que tenhamos de ser perfeitos em tudo, mas as pessoas precisam de ver que admitimos os nossos erros, tentamos ser melhores e fazer aquilo que pregamos.”

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